21 de março de 2013

Quem te ouve?


Inaudito

Ninguém te escuta
Ninguém te lê
Ninguém te entende
Ninguém te quer
Sequer para te foder
como o culpado frequente.

É a sobrevida, amigo
bicho, lixo, carrapicho,
ainda a respirar, ofegar, resfolegar,
tentando ser a outrem peste.

Mas em desgraça nem vírus se instala,
No máximo bactérias e abscessos
te desfiguram, sem dores –
As feridas e suas cicatrizes
são histórias a incorporar,
Então um leguelhé encontrou sentido –
as chagas prestaram favores.

Cometes os teus deslizes
sem notar que são carcarás
expungindo a tão seca terra
dos fortes e fartos fedores,
Seu barulho pouco incomoda
os distraídos em lares perdidos,
Eles nada leem, veem ou ouvem
que não lhes seja de suma importância.

Mas essa utilidade causa repugnância
aos enfermos do decaído mundo:
Sem máscaras acham-se os sãos.
Contra o padrão nada pode um nauseabundo!
Ah, onde hoje se encontra
a esconsa campana

dos vulgos sadios?
 
 
O Cofre

Empurrei o cofre até o meu limite
E tentei empurrar mais um pouco
Segui empurrando...
Em-pur-ran-do
 
Apenas parei quando a loucura interveio
Meu rosto contorcido não era mais de um feio
Era o de um exótico ouvinte
Que gesticulava sem falar,
Ou seria sem parar?
 
Tiques nervosos expressavam confusão mental,
Foram tentativas de ordenamento
Ainda que atabalhoadas,
A meu fiel público: os quatro ventos,
Demanda muito usual.
 
Aos chistes sempre seguiram
Sorrisos nervosos
Gargalhadas, farofada.
Então derrotei meu terrível,
Abominável e temível oponente:
O Nada!
 
Vislumbro-me insano,
Minha condição sine que non,
Para me sentir vivo e bem,
Não mais um neném,
Pra nunca mais ser bebê.
 
Agradeço ao maçarico –
Derreteu certas conexões,
Fundiu oblíquas terminações
E abriu o cofre em meu peito.
Descobri que sou rico.
 

 

17 de março de 2013

Você Quer?!


O Cão e a Dona

 
Eu me arrastei até você,
Das pernas delgadas, lustrosas, folgadas,
Feito um cão adestrado,
Feito o cachorro que sei que sou.
 
Então você me pôs na coleira,
Puxando-a meigamente quando queria
E abruptamente quando eu pedia.
Era o amor, entre lambidas e afagos.
 
Eu farejava suas unhas quebradas
E me afastava ao cafungar esmaltes.
No banho as sombras escorriam
Sobre sua face borrada,
Intensificando sua beleza cinzenta.
 
Fiel, lati para toda e qualquer ameaça,
Fui a um canto sempre que ordenava;
Abanei o rabo para seus queridos,
Mas também para meus comparsas.
 
Fiz cara de quem caiu da mudança
E faz de tudo por tigela de leite.
Foram ardis de felino manhoso,
Cuja verdade nunca alcança.
 
Realizei gracinhas por ser torto,
Implorei por não ser direito.
Você fingiu e me aceitou de volta;
Enfim praticou o crime perfeito:
Veneno em meu favorito prato!
 
 

Sobrequerer

Se querer fosse poder
As pessoas morreriam
De tanto sentir prazer

4 de março de 2013

Redação Juvenil


Minha Mão

 

Eu tenho certeza de que a minha mão é a parte do corpo que mais vejo. Ela está bem diante da minha fuça, todo dia, e às vezes me sinto enjoado dela, mas esses são os momentos que nem eu me aguento. Conheço cada veia que se mexe, ossinho que se destaca quando forçado, unha, pelo e digital, sei quando estalar os dedos e o som que fará – é claro que tudo nas devidas proporções. A expressão famosa deveria ser alterada para “conheço isso como o dorso da minha mão”, mas talvez não soasse tão bem quanto a original. Constatação estranha essa (conhecer em minúcias a própria mão), pois a mão dos outros é uma das últimas coisas a ser notada. Talvez a mão seja o umbigo egoísta que entra em contato com o mundo, mas que passa despercebido e só quem é íntimo o conhece e o toca. Diferente é nosso rosto, que só nos é conhecido diante de um espelho, e ao contrário dos vaidosos, raramente me olho diante dele, exceto quando saio do banho – nesse caso é sempre. É por isso que quando alguém critica minha barba, meu cabelo, meus cravos ou outra imperfeição eu nem ligo, pois atento-me a minha mão.

A mão é quase o símbolo do tato, apesar da pele cobrir o corpo inteiro. É com ela que costumamos coçar, tocar o outro e os objetos, sentir o calor ou o frio, segurar ou empurrar os pesos da rotina, pegar ou largar o que nos interessa ou não, como numa partida de tênis. É com ela que tomamos muitas decisões, mesmo que seja um mero ato final, como assinar, apertar um botão ou digitar um texto. Azar de quem não tem as sutis ranhuras na ponta dos dedos, visto que sente menos a textura dos objetos.

Os ombros carregam aquilo que os braços rapidamente fadigariam, mas as mãos, na soma, carregam muito mais peso que imaginamos antes de parar para refletir. Atlas se auxiliava dela para suportar o mundo. Quem sabe se deixasse esse labor tortuoso apenas às suas costas, tornar-se-ia mais insensível e corcunda, abandonando as pessoas a destinos mais miseráveis? Quem sabe essa ausência de mãos guiando-nos não tenha tornado cada ser humano mais mesquinho e infeliz? Quem sabe a linguagem de libras não deveria ser matéria obrigatória nas escolas, como português, inglês e espanhol? Quem sabe mais apertos de mãos reduziriam a violência?

Já me aconteceu de tanto olhar para as mãos, focando em seu tamanho avantajado, que cheguei a sonhar com uma delas inchada e descomunal, como no clipe Everlong, utilizando-a como um superpoder. Desperto, fica difícil imaginar como seria a minha vida sem uma das mãos, ainda mais sem ambas, ou mesmo com elas, mas incapaz de utilizá-las. Teclados, cordas, folhas, coisas grandes e pesadas, coisas miúdas e sutis, e no que mais eu encoste e nem me recorde por parecer tão banal, tudo isso seria como algo inatingível, um holograma que não posso pegar, pois apenas vislumbrado e que escapa inevitavelmente entre os dedos, feito água da cascata. Acordar um dia e não ver as minhas queridas mãos onde deveriam estar seria sufocante, traumático, doloroso, sofrível, desesperador. Seria pior que perder a língua ou o nariz ou talvez a perna. O quê, a mão é mais importante que a perna? E por que não? Além do fator estético e da rápida locomoção, uma perna não tem muita utilidade. Muletas, próteses e cadeiras de roda estão aí para rapidamente substituí-la, enquanto a mão exige muito mais avanços tecnológicos. Mesmo com todas as bactérias e toda a sujeira que se infiltra e se espalha por ela, os momentos de prazer advindos do toque da mão compensa uma enfermidade passageira; não há anticorpos para um regozijo perdido, ninguém largaria um osso saboroso porque ouviu avisos de que ele pode fazer mal, mesmo trazendo tantos outros benefícios.

“A mão que afaga é a mesma que apedreja”, já dizia o verso, a mão contaminada é a mesma que traz o antídoto e a cura, sem ela seria como morrer de desgosto, pois fora impossibilitado viver plenamente. Se os olhos são a janela da alma, as mãos são a porta; o primeiro serve principalmente para notarmos o que está distante e não podemos trazer para perto, ou ainda para facilitar os passos e o manuseio, mas há tantos animais que se locomovem bem sem eles, servindo-se de outros sentidos como radares; já a mão é primordial para o que está perto. Podemos dispensar os olhos quando estamos ao lado de quem amamos, tocamos seu corpo e permitimos que informações além da obviedade da visão adentrem em nosso espírito. Se eu quero algo perto de mim, puxo-o com uma das mãos, quase sempre com a direita, devido ao fato natural de ser destro – muito me admira quem sabe escrever com ambas as mãos e não se atrapalha ao usá-las, não tive a disciplina dessa prática motora. Então, abraço-o ou apenas deslizo sobre ele.

Talvez as virtualidades não me prendem justamente pela impossibilidade de tocá-las. Acho que a tecnologia demorará muito ainda para transformar o mundo 2-D em 4-D (3-D seria ainda virtual), e talvez nem compense tamanho esforço, apenas o teletransporte supriria esse agudo anseio de aproximar o que está longe das nossas mãos, contudo perto dos olhos. Há muito menos graça em simplesmente observar do que tocar, como seria bom se primeiro tocássemos o que desconhecemos, para enfim vermos o que era. Mas quem anda vendado dentro de casa? Sem as mãos nos enganamos mais facilmente, talvez a partir dela haja uma chance de captar a energia, a essência, o âmago das coisas e das questões. Infeliz daquele que a perdeu ou não a usa. Infelizes dos árabes larápios que tiveram-nas decepadas, carregando o estigma social e a tristeza de praticamente perder o sentido do tato – sofrimento duplo num lugar por si só sofrível.

Tudo bem que já existem próteses para substituir qualquer membro perdido, mas não é a mesma coisa. Sem essa muleta evoluída o sujeito ainda sentirá aquele pedaço faltante de seu corpo coçando, formigando ou latejando, e com ela, mais realizará tarefas grosseiras, como andar, segurar ou acenar. Duvido que um dia cheguemos à perfeição de uma mão natural, com todos os seus filamentos e nervuras mandando sinais alucinadamente a uma mente consciente que só quer saber do básico, mas que tem o potencial de sentir muito mais que o corriqueiro ou os comandos biônicos. Com estes corre-se sempre o risco de perder algo mais que a sensibilidade dos dedos.

Bizarrices acontecem, como a síndrome da mão alheia, um pedaço de nós pode agir contra a nossa parte preponderante, a que chamamos de eu – nunca duvide do que uma porção importante sua seja capaz de fazer. Cada dedo pode vir a ser um tentáculo, um punho cerrado carrega uma grande energia potencial, uma mão aberta pode proferir um tabefe ou um golpe mortal, fisicamente ou não. Agradeço a esse conjunto de carpo, metacarpo e dedos, sem ele eu seria menor do que já sou. Com ele, carrego inúmeras possibilidades de vida ou morte, que talvez se comparem somente ao cérebro e ao coração. Doravante, prosseguirei sentindo o mundo e aperfeiçoando-me.
 
P.S.: Sem P.S. dessa vez, rá!