30 de junho de 2012

Maquiagem: a batalha velada


Maquiagem, do francês maquillage, para os afrescalhados é o make up, é a pintura facial e inclusive a corporal. Qual é a finalidade, qual a motivação, o costume, a tradição ou a tendência da moda que impele uma pessoa a se pintar? Afinal, não é tão natural assim, há algo por trás desse fim, que em muitas culturas se tornou corriqueiro, sendo considerado pelos mantenedores da ordem até mesmo falta de decência, de civilidade mesmo, não maquiar a pele, essa coisa tão grosseira – epiderme defeituosa. Esta segunda pele, com claras intenções sociais e retificadores, tenta substituir a pele biológica, herdeira de uma nem sempre bela seleção natural. E haverá sempre uma velha fofoqueira a espalhar discórdia e um afeminado a clamar alegria.

A origem pode ser religiosa (ritualista), como em celebrações de fertilidade e cerimônias fúnebres, ou então guerreira (agonística), ou apenas estética e símbolo de alguma função ou posição social, como é o caso de qualquer adereço e adorno. Sociedades tribais têm por costume se apresentar a suas entidades místicas e protetoras devidamente caracterizadas, visto que seria uma ofensa entrar em contato com o divino como se fosse mais uma atividade do cotidiano, como plantar mandioca ou descascar batata. Ao perceber-se como parte da natureza, com capacidade para alterá-la e até domá-la, o homem precisou de artifícios para simbolizar sua passagem de bicho para civilizado. Essa etiqueta das etnias exige um formalismo, ainda que excêntrico para nós, os “pós-bárbaros”, pois a falta de vestimenta sempre chocou os pudicos e europeus. A selvageria, a bizarrice ou a agressividade para uns é a naturalidade ou a trivialidade para outros. É sempre chocante deparar-se com algo a que não se está habituado. Oh, quantos julgamentos inflexíveis!

O combate é outra coisa importante para os indígenas, é preciso preparar-se e fazer as honrarias e superstições de praxe a fim de não ter consciência pesada e de ninguém alegar negligência por parte do guerreiro. A pintura, assim como a armadura e as insígnias, inspira respeito e dignidade aos fracos e covardes – nítida hierarquia que distingue tipos humanos. Numa guerra só vence quem se arrisca, mas sabemos que todo cuidado pode ser pouco, e fatal. É claro que se mandinga tivesse a força que se pensa, o campeonato baiano acabava empatado, porém o determinismo em vestir a mesma cueca, pisar com o pé direito, fazer o sinal da cruz ou bater na madeira três vezes é anterior, e obviamente superior, ao indivíduo. Quem já se iludiu testemunhar atividades paranormais e macumba pesada não ousará contestar, muito menos desafiar, tal poder.

E na cidade, nos grandes centros urbanos, nas pós-modernas e frenéticas metrópoles, apinhada de gente que se julga muito distante dos índios, do povo do mato? Ah, eles não vivem em comunidade de duzentos habitantes, não caçam nem coletam, eles estudam, pegam engarrafamento e xingam a máquina. Seus símbolos os diferem e coloca-os acima dos demais. Jamais se sentiriam bem se comparando a povos atrasados, cujas referências são os deuses pequeninos, bem aquém do Todo-Poderoso Jeová. Seus ídolos, ícones e paradigmas são justificados, apesar de serem recentes, mas o tempo não prova nada, não é mesmo? A juventude é um bem em si; quem vive de passado é museu e arqueólogo. A sociedade individualista incentiva e (só) gera pessoas únicas, tão diferentes entre si quanto plantas da mesma espécie criadas em ambientes separados. Enquanto crescem e se autoafirmam, os jovens precisam se identificar com algum grupo (tribos urbanas), ou seja, no fundo desejam assemelhar-se, desde que dentro de um estilo visto como descolado e conveniente. É claro que eles se misturam com ressalvas, pois se simplesmente copiassem uns aos outros seriam criticados por falta de personalidade (muitos já desistiram disso, desejando ser covers, com orgulho).

E onde fica a maquilagem, lá do começo, nessa antropologia barata? Ela fica no paralelo que eu faço entre o índio/primitivo e o sujeito urbano. O disfarce continua; esses dois tipos humanos não são tão diferentes quanto se pensa. Ambos são seres instintivos, inseguros e gregários, e talvez sempre serão. A força está no coro, ainda que por aqui ninguém goste de admitir isso. Pois então, por que tantas roupas e marcas, pesados panos e iluminados cosméticos? Quem se importa? Se por lá são os deuses que julgam, por aqui é a Vox populi: voz alastrada que devasta os não convictos, olhares difusos desnorteiam os frágeis confusos. Sentir-se admirável é um imperativo em qualquer lugar, aquele poderoso que concede honrarias e coroas ao bom fiel só muda de nome nas culturas. Você deve saber o nome de seu Imperador, Senhor ou Exu. Ater-se a padrões e normas sociais impossibilita o vôo, pois a ditadura da maioria é conveniente aos medíocres, que aparam as asas de quem sonha em voar. Em paralelo, a mesma multidão exulta-se diante do herói fantasiado na telona.

Sei, estou divagando e fugindo do tema, coisa de indisciplinado. Focarei nas mulheres, sem dúvida as que mais consomem produtos de beleza, e não importa a idade da dama, desde que o desejo seja parecer jovem e atraente (ainda que ninguém concorde). Para elas há uma guerra, que é muitíssimo velada, pois ninguém a declara como tal, e (quase) todos vêem nessas fatídicas disputas de destaque mero empurra-empurra. Há muito vermelho no salão e olhares obtusos em profusão; o batom atiça no outro o desejo, erotismo que só se abranda com beijos. Se para o índio o objetivo é afugentar espíritos maus e parecer perigoso e viril aos animais e entes da floresta, para as mulheres o desígnio é desestabilizar seu alvo (pretendentes ou invejosas) com sua aparência estonteante ou somente adequada à moda, esta megera que substitui por capricho os valores em voga. O agrado transcendental de outrora se tornou a satisfação carnal e material, afinal o prazer é a teleologia da sociedade hedonista, por ora triunfal. Junte-se a isso a necessidade de posse que tacitamente cerca os ambientes badalados e teremos a conduta vaidosa predominante nos círculos sociais burgueses.

Eu vejo a maquiagem como símbolo maior dessa busca quase generalizada em destacar qualidades e esconder defeitos, seja externamente – a imagem é mais nítida e palpável do que uma idéia –, seja da personalidade e do caráter – um bom leitor de linguagem corporal capta as malandragens e sutilezas do comunicador. E mesmo as garotas grotescas, que só se expressam por preto e em muitos casos se encobrem com piercings e tattoos indecifráveis, enquadram-se nesse conceito de passar maquiagem para tentar transmitir preferencialmente as boas informações sobre si. Estas tentam desvalorizar o corpo feminino, principalmente aquele vestido com itens artificiais e mercadorias sintéticas, como arma de conquista, enquanto afirmam a rebeldia, o intelecto ou a polêmica como forma de melhoria social; do outro lado, as modelos e simpatizantes da estética corporal defendem a ética do belo, custe o que custar.

Assim vimos o quanto a beleza é um conceito que muda de acordo com a época, o local e a direção do vento. Pode advir disso: aberrações gradualmente avaliadas com conivência; limites (do que pode ser feito em busca de um ideal etéreo) sempre ampliados, ou mesmo ignorados, e a futilidade, isto é, dedicar-se exclusivamente ao corpóreo (material girl). Os gays adoram isso tudo, é óbvio, poucos são bem resolvidos, sem carregar um mínimo de neurose e frustração pelo repúdio social e, não raro, o familiar também. Enfeitam-se e exigem animação e cores aonde vão. Trocam a tristeza e incompreensão interna pela ousadia e confusão externa. E as mulheres, suas melhores amigas, acabam sendo influenciadas por suas histerias. Torna-se padrão camuflar o que não se quer ver mais. As batalhas são travadas na noite, ganha quem fingir sangrar menos.

Há sempre uma referência a alcançar e uma colega a invejar. Quem se delonga olhando no espelho se ama demais, mas sempre encontra imperfeições a corrigir. Com a verde grama do vizinho e os sorrisos que encontramos no caminho nós nunca cansamos de nos comparar. Mas atenção, um espelho é tão subjetivo quanto qualquer tela impressionista. Então, por maquiar-se qual foi a sua grande conquista?
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9 de junho de 2012

Sobre Autoafirmação


Conquistar a independência pessoal não é uma tarefa das mais tranqüilas. A transição para a vida adulta exige esse abandono da dependência financeira, afetiva e intelectual da família a fim de caminhar com os próprios pés e tomar as próprias decisões perante os imprevistos do mundo. Após essa fase, viria a da interdependência, que é o reconhecimento de que não é possível realizar tudo sozinho, que sempre haverá uma carência, seja por afeto, dinheiro, cuidados domésticos ou apenas por um ouvido para escutar os sonhos, reclames e devaneios do momento. Em ambas as fases a autoafirmação se faz presente na cabeça de cada um (sentimento que às vezes nunca se vai, no caso do inseguro e fugidio) e volta-e-meia dá as caras, lembrando-nos de que as coisas poderiam ser melhores, que faltou alguma dedicação. É claro que crescer sob cobranças facilita o surgimento de obsessões e magalomanias.

Parece que é preciso continuar o bordado e torná-lo mais bonito e pomposo, com uma complexidade crescente, afinal a comparação com algum perito traz aquela inveja de que nós não somos tão capazes de algo, fazer melhor é superar o outro e a si. Aos que perseguem uma carreira profissional, ter salário maior e promoções de cargo – flashes, fama e holofotes – é como receber um sinal de que as coisas progridem conforme planejado. Contudo, haverá sempre um peixe maior, não existe um topo, os limites nós mesmos traçamos, sendo possível indefinidamente alargá-lo, feito um vício. Então, para quê serve essa superação constante? Competitividade para anular a humildade e a inferioridade que insiste em assombrar o vaidoso? Tudo isso só faz sentido quando se relaciona com alguém que se envolve com os efeitos dessas demonstrações de superioridade, e se agrava com a visão das pessoas como objetos, ou mercadorias! Com rótulos, etiquetas e preços a comparação é imediata. Um ermitão ou um cínico pouco se importaria com hierarquias e opinião alheia; orgulhosos demais desconsideram seja quem for: deuses, semideuses, inocentes ou indigentes.  

O macho distinto, o chamariz na multidão, o pavão galanteador ou o gorila provedor, todos esses símbolos que carregam consigo aquela pitada de excelência, ainda que provisória, seduzem os homens, mas também as mulheres, em especial as que assumem um papel social ativo. Porém, é sabido que o falo representa algo mais aos homens, o pavor da castração é quase nulo nas damas, ainda que estas sejam machonas. Emerge, então, essa necessidade de orgulhar-se pela própria grandeza, virilidade e potencial de peripécias, e bem cedo. Não é à toa que gangues são formadas por membros juvenis, em muitos casos imberbes, à procura de desafios a serem superados, ainda que os de fora os julguem como vulneráveis provocadores. Pichações, rachas e quedas-de-braço tentam acalmar esses insensatos com um mínimo de status na panelinha. As conquistas e as posses servem para preencher o vazio interior e acalmar a falta de um selo de qualidade. A zica é alguns se empolgarem e se resumirem à facção, importunando muito mais gente. Todavia, quem não passou por essas fases de rebeldia e vanglória pode se preocupar demais com o marasmo – morreu sonhando.

“Eu queria provar para todo mundo que eu não precisava provar nada para ninguém.” A melhor frase sobre a verdadeira superação da autoafirmação. Mesmo ao ignorar o próximo, se a pessoa se esforçar em provar a si que é boa o suficiente, esse orgulho não terá o mesmo ímpeto de quem fez essa prova e também recebeu olhares e elogios, ou até críticas, de outrem. Vejam os autistas, eles não estão se autoafirmando, eles apenas cumprem seu dever internalizado, indiferentes a terem-no executado. Narciso tampouco se deixava abater pelos paparicos alheios, só ele valia (em juízo e em beleza), pensou ter-se tornado divino, o tal; ingênuo, tamanha adoração para tornar-se um vegetal. Mas, de resto, os vaidosos sem interrupção, nós mesmos, sofremos sem ter do público aprovação. O excesso de crítica, o opróbrio altercado e o ostracismo têm-nos derrubado. Um desarranjo mental acende um alerta, um sinal; atitudes inversas devem ser tomadas, sob pena de sofrimento crônico, amenizado ao ingerir biotônicos. Porém, ser medíocre só por simpatizar pode ser limítrofe.

                Os críticos de música detonam o excesso de firula e de intimismo de artistas com muitos improvisos e arranjos complexos. Simplificar é o caminho, dizem, por que complicar algo que pode ser direto e objetivo? A comunicação em tons maiores e alegres transmite melhor a intenção do músico, mesmo um obscuro. Voltar à simplicidade primitiva aparentemente é uma volta às origens da arte, algo tradicional e mais facilmente digerido e comercializado. Porém, quem se vê diferente dos demais precisa fugir das obviedades, deseja esconder algo dos outros, nem que seja apenas para se sentir imune aos ataques dos ouvintes ou leitores, pois eles jamais captarão o original intuito do interlocutor, que sonha com linguagem privada. É como um mágico que pratica um truque não descoberto, ao menos pelos não especialistas. Ele está simplesmente se pondo em posição superior, nem que seja num trono imaginário – há muitos Napoleões por aí. Ilusionista iludido, pois toda linguagem é pública e carrega consigo inúmeras informações, inclusive as inconscientes. Proselitismo, porém sem essa dose de auto-engano ninguém teria forças para tentar e se aperfeiçoar.

                E quem mais se engana? Quem desconhece a si e, confuso diante do mundo, esse palco giratório sem hora para encerrar os atos, age, ou melhor, reage, só para garantir alguma marca indelével na natureza: sua digital, única e pretensiosamente insubstituível. Atualmente, a identidade do jovem exige um mínimo de posses, conquistas e adereços que simbolizem certas origens, convicções e anseios, facilmente lidos e enquadrados pelo público. Ao seguir esse fluxo do sistema, a tendência é manter o padrão de atuação até envelhecer, claro que com picos e declives, dependendo da inserção social e do impacto do retorno (feedback) sobre esse, até então, jovem. Eu vejo a vaidade como o maior estímulo à autoafirmação do indivíduo; a autoestima é diretamente proporcional à análise interna dos hábitos praticados, analisados, contudo, pela ótica imaginada do outro por ele valorizado. Portanto, externa.

É importante sentir-se engajado para realizar façanhas que beneficiem a sociedade, e ainda auferir com isso elogios e prêmios. Mas ficar obcecado em ter que transmitir um suposto sucesso pessoal é outra coisa. O sucesso é mais sólido e bem visto quando é conseqüência do trabalho do que quando é um desígnio, um alvo, o foco. A maioria é sempre formada pelo comum, o ordinário, porém como as pessoas se sentem obrigadas em ser amadas, mesmo sendo deficitárias de qualidades destacáveis, elas tentam a qualquer custo agradar, resultando nesse excesso de pose e vaidade que verificamos em idas a shoppings e concursos de qualquer bobagem. Sendo assim, o objetivo é mais causar inveja nos frustrados e incompetentes do que autoafirmar-se, no sentido de superar fraquezas. Autenticidade – no que for possível enquanto ser autônomo em relação às influências do cotidiano – é equilíbrio entre vaidade e liberdade, visando progresso pessoal. Já que somos sujeitos no ambiente, e estamos sujeitos ao ambiente, vamos garantir doravante a nossa felicidade, e de quebra alegrando o entorno cheio de vaidosos, de invejosos e de inseguros como nós, cada qual em seu nível de satisfação. Conhece-te a ti mesmo e assevera tua consciência a viver bem, sem tanta severidade. 
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3 de junho de 2012

Nossa irascibilidade corriqueira


É mais fácil destruir do que construir, isso é intuitivo. A existência pessoal nunca está acabada, apesar de todas acabarem. A vida é construída o tempo todo, mas basta um mísero infortúnio, como uma agulha contaminada ou um alucinado de arma em punho, para que a morte se apresente com toda sua perversidade, sempre à espreita para alegria das funerárias, esse serviço funesto que lucra com a tristeza alheia. Toda mudança pode ser vista como uma morte, da convicção, aquela idéia acoplada ao ego. Os impacientes são agressivos diante das transições; quem não percebeu o valor das sutilezas quer passar como um trator sobre o incompreensível, portanto incontrolável e amedrontador, isto é, algo acima de suas forças rudimentares. Os orientais há muito sabem e ensinam a virtude da paciência, estão acostumados com o contato com a natureza, tão grandiosa e sublime quando contemplada em conforto, e com as relações sociais em ambientes sofríveis e apinhados; a vida zen arrefece a agressividade teimosa que a qualquer momento pode irromper como uma bomba.  
Os jovens de hoje, os garotinhos criados em apartamento, em condomínio ou outro lar urbano, quase sempre trancafiados por causa do zelo excessivo de pais atordoados com as notícias alarmantes da violência sempre crescente, apesar de nunca citarem as estatísticas em queda, esses jovens quase não têm raiz, isto é, há pouca tradição transmitida, não sabem de onde vieram e se identificam com algo imediato que lhes afeta. Não é tanto culpa da falta de comunicação dos pais, estes também desconhecem a própria linhagem ou então querem esquecer um passado rural e tortuoso, digno de pena diante de valores burgueses tão em voga nos shoppings, vitrines e anúncios metropolitanos; é mais culpa do acelerado êxodo rural e da falta de mestres, com excesso de ídolos. Voltando ao imediato, quero dizer com isso a influência sobre os jovens de algo que seduz pelo efeito avassalador de causar prazer e liberar frustrações, como é o caso do videogame (item para mim emblemático), ou da Barbie e do sonho de ser princesa contemporânea, no caso das meninas. Nas entrelinhas a indústria transmite sua mensagem a quem não tem discernimento, então os pais acatam, ao notarem o brilho nos olhos de seus rebentos, além de não verem mal algum em compartilhar valores consumistas e vaidosos. E o ciclo segue: é fácil convencer uma mente em branco.
Isso daí levará a que? Onde quero chegar com esse preâmbulo gratuito? Novamente sairei do nada e chegarei a lugar nenhum? Ou desta vez haverá uma conclusão clara e perceptível? Bem, isso depende do leitor, enquanto isso eu tentarei desenvolver minha argumentação. A psicanálise nos ensina sobre a importância dos primeiros momentos de vida, a tal relação quase simbiótica com a mãe, além dos traumas infantis, entre outras teorias para lá de controversas no meio acadêmico. É certo que a saída do conforto da barriga, do colo, dos braços, da casa, quem sabe da cidade, da mãe, ou mesmo do pai, se este criar um laço forte já na primeira fase da vida da criança, essa saída, ainda que temporária, é impactante para uma cabecinha frágil e medrosa. Passa o tempo, a relação com os pais, que em geral é afetuosa e pacífica, vai se revelando mais humana, ou animal, com advertências, violência e erros; a noção de pai herói ou de mãe perfeita vai diminuindo, pois é claro que de perto todos têm defeitos, mas isso não significa que a admiração por eles diminua – nesse ponto se trata de outro processo complexo que não esmiuçarei aqui. Além disso, as informações externas podem chegar com mais força do que a referência paternal, ainda que essa sempre seja um paradigma para quem vive em família. Enfim, quero dizer que mesmo na redoma do lar sentimentos negativos podem aflorar. Com o contato crescente com o mundo dos “outros”, do desconhecido com 1001 possibilidades, esses incômodos sem dúvida aparecerão, pois retira as crianças da zona de conforto, testa-as – atitudes criativas e respostas elaboradas são exigidas.
Com isso, eu chego ao ponto central: nossa reação perante o imprevisto. Qual a primeira impressão que temos diante do que não estamos acostumados e que na maioria das vezes nos deixa acuados, senão perplexos? É a rejeição, a negação, o preconceito, a vontade de eliminar. O ódio é instintivo, suplantá-lo seria exigir uma posição humilde ou desapegada ou compreensiva, ou amorosa (o amor é o oposto do ódio). Porém, somos seres etnocêntricos, não gostamos de admitir que nosso lugar não seja bom, seria uma ofensa pessoal, sem esse auto-engano passional de que nossa nação (etnia, clube, ou algo do tipo) é a melhor, ou ao menos é correta e formadora de pessoas superiores ou preparadas, nossa existência estaria em perigo, haveria crise, um momento de ruptura urgente que deixou tal nação sem sentido. Com o individualismo, esse etnocentrismo, ainda que sem raízes históricas, se acentua, pois o Eu se torna o Deus a cultuar, ofendê-lo seria uma blasfêmia, é mister tirar satisfação.
As religiões em geral pregam a humildade justamente para haver menos guerras, mortes e uma cultura de ódio sem fim. Entretanto, elas se utilizam de discursos simplistas e servis. Também não somos uns canibais, nem tão “homem lobo do homem”, somos seres sociais e solidários, contudo sempre desconfiamos do vizinho. Sem um mínimo de humildade, alteridade e compaixão haveria mais mortes do que nascimentos, o que inviabilizaria a sobrevivência de um povo, ainda mais com armas na mão. Essa lei da selva, ou de pirata como eu prefiro chamar, predomina em locais sem essa lição de humildade, principalmente com homens competitivos e vingativos (a vingança é outra reação odiosa). E por que esse ódio cresce tanto? É justamente pela afronta ao status quo, que muitos preferem chamar de honra. É impossível eliminar isso, é a primeira reação. Uma civilização que busque infiltrar valores transcendentais ou progressistas ou persistentes (no sentido de uma obra que perdure) deverá ter cidadãos educados a superar esse instinto destrutivo. Sem a tolerância resta o enfrentamento, que numa barbárie se traduz em guerra civil, ou na submissão como valor.
A infantilidade das pessoas gera reações agressivas. Talvez eu esteja em defesa de uma sociedade pacífica demais, com valores positivistas e racionais em demasia, porém devo criticar essas pulsões de morte (Thânatos) quando efetivadas – a estupidez humana é sem limites. A educação e a prática da convivência cordial, que servem de exemplos sólidos aos que não têm uma referência prolongada de violência, ou mesmo a estes, parece-me o caminho mais eficiente para uma cultura cortês, disciplinada, em defesa de obras mais elevadas do que brigas de rua. É claro que não há como sonhar em eliminar a agressividade, todavia pode-se sonhar com agressões canalizadas em obras de arte, esporte ou jogos sem feridos. De novo, o videogame como refúgio. Ao se pôr “na pele ou na mente” de uma personagem a pessoa pode fazer o que quiser sem risco de punição, uma situação cômoda, contudo ela passa a compreender um mínimo sobre ver o mundo de outra ótica. No caso dos jogos violentos a raiva contida é descontada virtualmente, costumando ser suficiente para evitar maiores danos.
Por fim, cito o fenômeno das redes sociais. Parece que todos precisam se expor para sentirem que pertencem à sociedade ou mesmo ao mundo. Todos agora precisam ter e demonstrar opiniões, ainda que sejam sem embasamento e homogêneas, na verdade é preferível que sejam semelhantes à da maioria, há menos risco de repreensão. E quais são os usuários mais freqüentes e comentadores? Justamente os jovens, os que se encontram frustrados por não terem realizado ainda algo grandioso, por não terem uma identidade definida, por perceberem o esvaziamento de sentido nas coisas, enfim, por não se sentirem satisfeitos com a própria existência, geralmente parasitária, sendo assim, partem a direcionar suas raivas ao que lhes desconforta, por mais ínfimo e banal que seja. Ato geralmente praticado na covardia do anonimato e no conforto da cadeira do quarto. Ali fica fácil berrar, eu quero ver gritar na cara do traficante que ele é um câncer social, ou ao político que ele enoja o país, ou ao tirano que ele deve morrer, correndo o risco de ser mordido por um cão, ter a mãe morta, levar spray na cara ou levar pedrada na cabeça como os egípcios. Mas não, reclamam que a Microsoft está com layout ultrapassado ou que o Facebook censurou suas fotos.
Raulzito teria vergonha desse povo que só sabe protestar e desafogar sua ira barata sem ao menos ser um latino-americano que sabe se lamentar. Raulzito não aprovaria uma geração pró-sistema e que é metamorfose ambulante, mas que não se admite nem se admira como tal. Geração em que todos têm uma já velha opinião formada sobre tudo sem nem ter tido a oportunidade de confrontar idéias, muito menos tempo de formular juízos. Ou seja, é mais fácil xingar e botar a culpa no bode que rumará ao deserto para alcançar a redenção que essa alcatéia de tolos lobisomens juvenis nunca terá. A ira cotidiana precisa de palavrões. A irascibilidade corriqueira precisa desabafar no boteco ou pela internet, sob pena de acumular chagas que resultarão em melancólicos arrependidos. O rock outrora recebia de braços abertos esses gritos de liberdade e de angústias, porém agora recebe o chororô dos frangotes.
É bom gritar, é bom desabafar, é bom protestar, mas é preciso saber onde fazer, e principalmente como fazer. Os punks já demonstraram sua infantilidade, os emos a sua depressão, os góticos a sua melancolia, entre outros, sempre babacas surgirão reclamando com inveja da felicidade alheia, ainda mais que todos possuem voz e meios de divulgá-la. Apesar da quase obrigatoriedade de ser feliz, ou pelo menos de assim parecer, a sociedade está doente, o aumento do consumo de remédios, drogas e livros de auto-ajuda e a procura por psiquiatras, pastores e xamãs contemporâneos, em parte atesta isso. Sempre nos assemelharemos a uma criança carente e apavorada no escuro. Saber encarar a vida como a tradicional criança em contato com o mundo sempre novo e fascinante é igualmente fascinante. Gritaremos às vezes e até quebraremos alguns vidros, apenas demonstrando nossa incompreensão e fraqueza diante dos desafios. Ambos são naturais, um é fácil e instintivo, já o outro é mais dureza de praticar: o ódio destrói, o amor constrói.