13 de agosto de 2014

O Ceticismo e as Referências de cada época



Em cada época apela-se a uma referência legitimada socialmente e o cético é a mosca a zumbir, perturbar e confundir os menos convictos de que supostas autoridades bastariam para elucidar o mundo. Os donos da verdade também não gostam da impertinência do cético, levam a interpelação como uma afronta a sua capacidade intelectual e moral, como se eles fossem idiotas ou incultos ou mentirosos. Julgo a dúvida cética como pertinente, apesar de ser incômoda e insolúvel: como garantir que o que é dito, independentemente do contexto, é verdadeiro? Como ter certeza de que as justificativas são suficientes para se alcançar a verdade? Certo é que todo ceticismo radical cai por terra quando se é confrontado com o mundo real, com a vida prática; é preciso agir, e para tanto, é preciso crer intuitivamente em alguns pressupostos, e.g., que há um buraco em minha frente e que eu irei me machucar gravemente se eu ignorá-lo, que eu estou aqui escrevendo estas extravagâncias porque estou afim e não sou marionete de uma inteligência superior.

E quais foram as autoridades históricas? Deus, Rei, Razão, Lei e Método. E no quê se resume o ceticismo? Epoché, i.e., suspensão do juízo. Ora, agir de acordo com as convenções sociais é algo bastante razoável e apropriado, preserva os dentes e põe a cabeça no lugar. Ora, o objetivo da vida é atingir a verdade e comportar-se apenas de acordo com ela? Não me parece. Vejam: ambas as partes (o crente e o cético) afirmam estar certos e costumam agir coerentemente (prática coadunando a teoria), porém só o contexto pode dar a resposta de que tais hábitos estão efetivamente de acordo com a verdade, que é sempre provisória. Mudou o ambiente, mudaram-se os hábitos; mudou o vestido, mudou a autoestima. Se a verdade do universo existe, ela não nos é acessível, é o limite kantiano em ação: nosso aparato mental apenas nos permite saber do que é passível de ser captado, apesar dos aparelhos tecnológicos terem evoluído enormemente até então. No fim das contas o que legitima um dono da razão enunciar verdades é seu pertencimento a alguma linha canônica vigente, por exemplo, à mecânica quântica, à newtoniana ou à ptolomaica. Teorias existem aos milhões, porém somente uma ínfima parte vinga e convence à elite intelectual, até que é falseada e substituída por outra que reina por poucos ou muitos anos. Em suma, via proposições toda conclusão faz sentido internamente, mas é objetada facilmente de fora como silogismo.


Quero adiantar que não estou me posicionando em favor do relativismo. Sou um racionalista, portanto, penso ser possível se aproximar do conhecimento acerca do funcionamento do universo, que é indiferente às vontades humanas. Porém, a dúvida cética é uma pedra no sapato que é melhor deixar num canto, para não atrapalhar a brincadeira. Do contrário, seria melhor desistir de estudar e cair na farra.


Quero sair agora do campo epistemológico e me aproximar da área histórica. Qual é o sentido das cinco autoridades enunciadas logo acima? Deus foi a autoridade durante a Idade Média, era tanto o objetivo das reflexões como o meio de se atingir qualquer verdade, via iluminação. Em seguida, isso passou a ser privilégio dos reis, incluo a santidade papal nesse conjunto. Posteriormente, a razão foi a grande referência (fundação da Idade Moderna), ainda que a princípio se tenha tentado conciliar teologia com racionalismo (vide Descartes, Leibniz, Pascal e Malebranche) - na prática a categoria anterior continua subsistindo, com menos força, mas à espreita para voltar a se afirmar e, com sorte, predominar. Até que veio o Iluminismo e defendeu a razão como a verdadeira iluminação, e não as revelações miraculosas e arbitrárias da divindade. Seguiu-se disso a necessidade de estruturar as sociedades via Estado laico, e não mais o teocrático, a saída foi a invenção de legislações, do direito civil. Como negar que a lei tenha sido uma boa proposta? A fim de garantir alguma coesão social, universalizou os ideais da nação e puniu quem deles se desviava. Ora, a legitimação não estava mais em outra instância, mas aqui mesmo, reclamar falta de participação ficava mais difícil. Após, veio o positivismo e, por fim, o método científico. A ciência hoje às vezes faz o papel de Deus lá atrás: “Não sou eu quem diz, é a ciência!” Dessa forma, imiscui-se da parcialidade jocosa e joga nas costas do discurso cientificista as verdades proferidas, muitas vezes sem cuidado, com um pedantismo típico dos homens, os mestres do subterfúgio. Cuidado com os novos ídolos!

Se antes era a intuição que revelava verdades, agora é a razão potencializada, pretensamente isenta de psicologismos, que cumpre essa função. E qual é o maior atributo da razão? Proceder por partes. Ratio significa dividir. O que está sendo levado às últimas consequências pela ciência, cada vez mais especializada e com mais dificuldade de unificar discursos que se tornaram herméticos. A “teoria de tudo” na física é o maior exemplo, não se percebe uma solução satisfatória à vista, o horizonte está nebuloso. Antigamente, a intuição encontrava respostas às dúvidas mais inquietantes da natureza, os homens inclusos. Intuir é sentir por dentro; a solução chega num átimo, há iluminação de tudo ao mesmo tempo agora. Não há conceitos, a linguagem é dispensada, o processo não ocorre por partes, o que dificulta ao sujeito moderno (ao pós-moderno também, mas menos) compreender tal metodologia.

Isso tudo é como o pensamento selvagem em conflito com o do antropólogo, conseguirão eles se entender? Quem irá fazer concessões e sair de seu mundo confortável em prol do diálogo e da compreensão? Quem abdicará de suas verdades para adentrar na verdade esquisita/excêntrica? Quanto a isso, o sujeito racional terá mais facilidades, afinal está acostumado a proceder por partes e a dissimular. Contudo, logo ele voltará ao que é valorizado por seus contemporâneos: o método. Enfim, a verdade parece absurda a quem não está pronto para compreendê-la. Bom mesmo é estar flexível e atento, apto a captar as mais diversas verdades, pois aparentemente saímos do contato com elas enriquecidos, assim como alegam os crentes após acessar o divino. Noto nessa jornada homérica a persistência da nostalgia do mundo das ideias (perfeito e tranqüilo). O homem é carente e ambicioso. E em que implica isso tudo? Que saber é poder e todos o almejam.


11 de agosto de 2014

Sobre a falta de iniciativa

É incrível a falta de iniciativa da grande maioria das pessoas, tão lacônicas, quase que zumbizando. Talvez preocupadas demais com seu mundinho, não ligam para o que é novo e com potencial de entusiasmar; e o management ainda vem com seu discursinho cobrando por motivação – mas como? O sistema instaura o comodismo. Seguimos o fluxo, deixando nossa autenticidade escondida em algum baú recôndito de nosso coração. É tão cômodo ser rebanho, com o pessoal detentor de autoridades, com os formadores de opinião, com os donos do poder, ditando a nossa vida, escolhendo por nós, confortando-nos em nossa menoridade. Como há gente acanhada que dá seus gritinhos de vez em quando só para se sentir vivo, quando na verdade isso não passa de lapsos psíquicos ou sintomas de alguma patologia crônica, disfarçada a ponto de nos impedir de desconfiar da enfermidade.
O cristianismo sempre pregou, ainda que geralmente de forma velada, a resignação como forma de preservar a alma das impurezas do mundo; sabemos que essa moral tinha fins mais políticos, para evitar revoltas contra seu aparelho pouco dinâmico e deveras tirânico. Pertencemos, sem dúvida, a uma sociedade com valores cristãos, e essa aceitação passiva ao que vem de cima e à “vida é assim mesmo” resultou nesse comodismo geral. Para mim é sintoma de sociedade doente, quiçá anêmica. Isso é o modo décadent de agir, porém andando satisfeito com a própria mediocridade, desde que permita uma comparação que eleve ligeiramente a pessoa, como por exemplo possuir um óculos mais escuro, um topete mais firme ou um brinco mais brilhante. Eu mesmo às vezes me pego contaminado com a moléstia da apatia, ficando conformado com o curso das coisas. A tentação da inércia é imensa e ubíqua... Que diabos: ânimo, meu caro! Só se vive uma vez, não faça da vida uma série de pequenas mortes. De que adianta ter uma joia que fica guardada na gaveta?

A falta de comunicação e de relacionamentos mais densos e ao mesmo tempo extensos favorece esse cenário desanimador. É a partir da troca de ideias e do confronto com visões de mundo opostas a sua que a personalidade se enriquece. Não é cumprindo uma rotina, encerando o chão, girando em círculos, repetindo compulsivamente uma ação qualquer, ainda que prazerosa, que adquirimos conhecimento, civilidade ou insights. É preciso se incomodar, de preferência diariamente; após se deleitar, dê preferência a novos desafios e perturbações que irão fortalecer seu caráter e expandir suas experiências, retirando o véu da ignorância e deixando-o preparado para o inusitado e o improviso. Procedendo dessa maneira, um dia esse conjunto de atos se tornará um hábito, então a moleza natural da decadência do corpo será compensada pela perspicácia do espírito, o que sim faz jus à alcunha “comportamento motivador”. Se você não tem critério para saber o que é melhor pra sua vida, você jamais escolherá algo repleto de sentido, pois ele será útil àqueles que lhe manipularam psicologicamente, é claro que de forma muito sutil. Autoconhecimento e senso crítico se fazem, portanto, imperativos, contudo é algo que o sistema abomina – afugenta fiéis.
Mergulhar a fundo é para poucos. Quem sabe é isso o que explica esta repentina indignação. Andar pela borda da piscina olímpica é fácil, difícil mesmo é convencer os outros a vestirem a roupa de banho e percorrem toda a extensão e o volume da água fluorada e refrescante. Quem sabe o excesso de informações e de contatos tenha deixado a galera superficial, pondo só uma gota de suor em cada parte, como um investidor precavido que nunca dá all-in numa jogada apenas. Pintei grosseiramente o cenário, quem sabe o leitor tenha me entendido e pintado o restante do quadro com tintas mais frescas. Espero que isso tenha ocorrido e eu tenha despertado uma ínfima parte de seu senso estético, ético e político. Afinal, é disto que se trata este texto: receba a tela, o pincel e o esboço dos outros, mas imprima suas cores vibrantes e seu estilo de pintar. As impressões e as consequentes expressões devem ser únicas, apesar de essa ideia parecer tão contracorrente. Nada mais motivador que a arte. E nada mais angustiante que o mecanicismo – err, se você ainda não se tornou máquina...

kin çoçjnou

P.S.: Texto ligeiro, escrito em uma hora somente, talvez um recorde, para meus padrões. O tempo urge, ando sentindo Cronos me devorar insistentemente. Aproveitei a inspiração e a bem-vinda iniciativa, aplicando o ditado de não deixar para amanhã...

4 de agosto de 2014

Relação entre Tolerância e Indignação



O presente trabalho expõe significados e exemplos sobre a tolerância e a indignação. O objetivo é esclarecer sobre cada um dos termos e tentar estabelecer um vínculo, saber qual é a relação que existe entre eles. Não que eles sejam antônimos, mas não costumam andar juntos. Quando não há tolerância costuma haver indignação, como se fosse um cansaço após tanta permissividade ou como se a tolerância tivesse encontrado seu limite, e vice-versa: quando sobra indignação a tolerância não costuma estar presente, afinal ninguém reclama do que está bom e correto. Espero que esta exposição seja útil e que o leitor tolere possíveis falhas, lapsos, erros gramaticais e imprecisões históricas, que sua indignação se dirija a eventos mais importantes.

Primeiramente, quero discorrer rapidamente sobre o significado desses dois termos. Indignação é simplesmente uma revolta ou um estado de ânimo irritado; o indignado deseja corrigir injustiças e se vingar de alguma forma de quem a causou; ela tende a ser boa quando leva a uma ação isolada, quando sai da reclamação inócua para a solução do problema, quando não se resume a encontrar explicações estapafúrdias nem a uma vida de perpétua indignação; ela tende a ser ruim quando se deixa levar pela imaginação e inventa cenários que não condizem com a realidade e podem levar a uma injustiça ainda maior que aquela que a motivou. Tolerância originalmente se referia à liberdade religiosa, a permitir que aqueles que professavam crenças e seguiam ritos diferentes da religião predominante pudessem crer e praticar o que seu Deus pedia ou líder religioso pregava; posteriormente, tolerar teve seu sentido ampliado para respeitar qualquer divergência de pensamento ou diferença de atributos corporais ou origem social, ou seja, o termo se vinculou à ética e à política em geral, se confundindo com questões acerca da liberdade, do preconceito e da inserção social; a tolerância pura/irrestrita pode levar ao conformismo.

Tolerar é suportar o que não lhe agrada, permitindo que o outro faça, seja ou goste do que bem entender. Tolerar é saber que as pessoas são diferentes e há inúmeras possibilidades de vivência e que isso não significa que esse outro é superior, inferior ou danado, mas que apenas adota um estilo de vida diferente da maioria. Tolerar é preferir a paz à guerra, é saber lidar com conflitos e opiniões das mais variadas e opostas e ainda assim ser capaz de “deixar passar”, pois viver sem um mínimo de riscos é impossível. Tolerar é o que deu origem à modernidade, ao processo de não implicar, não perseguir e nem matar os estranhos ou estrangeiros, só porque eles aparentam ser uma ameaça ao status quo. Tolerar é notar que o crescimento populacional e a democracia devem necessariamente passar pelo respeito mútuo e pelo fim de práticas medievais e bárbaras como a tortura e o derramamento de sangue por motivos fúteis, como usar quipá, chapéu alongado ou crucifixo invertido. Enfim, tolerar é estar aberto às mudanças, ao movimento contínuo do devir, ao fluxo incessante de informações que trespassam e afetam a todos, apesar de muitos tentarem ignorar essa força que exige humildade dos seres conscientes.
A tolerância foi um assunto recorrente no começo da Idade Moderna, devido ao processo histórico da Reforma e Contra-Reforma, que ocorreou nesse período e afetou a Europa inteira. Foi uma época de transição, um momento de crise que exigia reflexões e mudanças de comportamento. O pensamento religioso sempre teve dificuldade em lidar com as diferenças; opiniões divergentes eram tidas como afrontas, pois se o ideal, a perfeição, existe, ele deve ser buscado e quem o recusa será um herege, um maldito que se recusa a seguir os desígnios da divindade. Se as ideologias não forem seguidas à risca isso faria ruir a causa maior, que é a conservação da própria religião. Tendo isso em mente, fica fácil entender o porquê do fanatismo ser tão comum em seu seio. Exemplo maior é a Inquisição católica – qualquer pessoa minimamente culta e compassiva sabe que foi uma época terrível, quando morreram inúmeros inocentes, cujos crimes forjados serviam para que o medo reinasse e a Igreja parecesse poderosa como antes fora. O número de protestantes aumentava sem parar e representava uma ameaça ao imenso poderio que se esfacelava, alguma medida parecia imperiosa, aniquilar com os dissidentes foi a solução radical instaurada. Foram tantas mortes e atrocidades que até mesmo de dentro da igreja pensadores passaram a questionar, ainda que em sigilo, as práticas cruéis e as almas queimadas ad majorem gloriam Dei. O grupo de “indignados” foi crescendo até gerar os iluministas, que condenavam essas práticas de forma veemente e defendiam maior tolerância e racionalidade para organizar a sociedade.

Filósofos precursores como Espinoza, Montaigne, Jean Bodin e John Locke se debruçaram sobre o tema (a tolerância) e escreveram textos que romperam com a tradição teológica, influenciando gerações e tornando-se clássicos da filosofia. Todos defendiam a tolerância como forma de humanismo – é interessante que, no limite, o humanista é um herético, destronando Deus de seu altar fictício. Foi Espinoza quem trouxe a discussão para bases exclusivamente racionais, deixando de forma derradeira de apelar à vontade de Deus para justificar a prática da tolerância, alegando simplesmente que leis violentas e intransigentes não ajudam ao exercício da fé nem a melhorar a sociedade. Locke aprofundou essa ideia e demonstrou que o que realmente importa são as leis civis, i.e., o Estado deve focar naquilo que garanta os direitos dos cidadãos e o pleno desenvolvimento da nação e do intelecto, punindo violações a essas leis – as leis divinas que cada igreja administre como achar conveniente, desde que ela não interfira na jurisdição do Estado. Foi a partir disso que a laicidade estatal e a pluralidade de ideias e valores se tornou possível, terminando nessa miríade de opções tão característica da contemporaneidade, tão decadente e interessante. Não que isso tenha sido o fim da imposição do pensamento único, mas foi o fim de sua legitimação. Se não fosse esse questionamento implacável e essa defesa intransigente da liberdade de pensamento, talvez o Ocidente ainda estivesse sob o jugo sacerdotal.

E onde se encaixa a indignação nesse contexto histórico? O fato é que antigamente era mais fácil se sentir indignado. Se um descontente denunciasse um ímpio à autoridade competente, esta logo tratava de anular e extirpar esse mal, em prol da ideologia vigente. A falta de acesso a visões de mundo destoantes àquela reinante, que não permitia objeções, facilitava o fanatismo institucionalizado. Quando todos são idiotas, ser esperto é danoso; é como o caipira que não suporta o “sabichão metido a besta”. Nesse ponto a ignorância é uma benção, pois não planta a semente da dúvida e ninguém hesita em defender suas convicções, herdadas ou impostas, mas de qualquer forma amplamente difundidas. Porém, quando visões altamente conflitantes se chocam e não se pode fazer nada a respeito – em caso de agressão a pessoa seria processada e/ou iria para a cadeia –, fica mais difícil se sentir indignado. Ou seja, de que adianta ficar indignado se nada vai mudar, se apenas irá crescer um sentimento ruim por dentro a ponto de tornar o indivíduo cada vez mais rancoroso e amargo com um mundo que não corresponde ao que ela julga justo? Hoje em dia ser um eterno indignado é ser um “reclamão”, alguém que incomoda seu interlocutor com um reiterado chororô. Ora, que ele aceite a derrota e faça melhor da próxima vez.

Foco agora no aspecto da racionalidade. Faço uma comparação entre o exercício da razão entre o tolerante e o indignado. A tolerância é claramente um avanço da sociedade civilizada; enquanto ser ainda dominado por seu lado animal, o homem não consegue exercer a tolerância, pois quando a paixão “sobe à cabeça” só muita disciplina e/ou reflexão poderá conter atos desmedidos, como agressão, xingamentos e truculência. Isso é nítido não só quando se compara o homem de hoje com o de mil, dez mil, cem mil anos atrás, mas comparando a criança mal criada, o adulto ignorante, o pequeno burguês mimado e o rei tirano com a criança bem educada, o adulto informado, o eleitor responsável e o governante esclarecido. A principal diferença entre eles é o acesso à informação, o exercício reflexivo, a atenção às questões éticas, a visão das consequências de cada ato do cotidiano e os demais ensinamentos do projeto iluminista enquanto proposta da racionalidade em prol da autonomia e do bem-estar do maior número de indivíduos, que evitam a todo custo uma guerra, especialmente a civil, que destrói as instituições e a identidade da nação. Contudo, uma tolerância indiscriminada seria o perdão cristão, que sorri ao agressor e ainda oferece a outra face para “levar mais tapas”, ela não deve ser almejada, pois quando está em jogo a paz, a liberdade e a existência plena admitir essa tolerância equivaleria à conivência à repressão, seria banalizar o desrespeito e demais comportamentos reprováveis. Nesse caso, é preciso ser razoável, ter bom senso.

Se a tolerância é a razão bem dirigida, a indignação é a razão entregue “ao deus-dará”. A razão encontra-se ali num estágio de confusão, mas como o sujeito precisa de alguma explicação minimamente coerente, vai pensando abobrinhas, achando que seus argumentos são válidos, ou então passa a acreditar no que uma autoridade, uma pessoa instruída ou dissimulada fala. Decorre disso, por exemplo, a proliferação da mídia sensacionalista, que não investiga diligentemente um crime ou um suspeito e parte logo para a acusação, decretando desde logo sua culpa, permitindo que a massa de indignados aponte seus dedos calejados e suas armas enferrujadas aos infaustos meliantes. A imaginação não tem limites, por outro lado a lógica possui intransponíveis limites. Portanto, fácil é simular uma conjuntura, ou até uma conspiração, e crer nela, porque acalmará anseios exacerbados e sequiosos pelo equilíbrio perdido. No entanto, isso raramente estará de acordo com os fatos, que são mais insípidos, indiferentes aos desejos humanos, tão cheios de angústia, culpa e pressa. Dessa forma, a indignação pode ser perigosa se não estiver aliada com uma boa dose de racionalidade. Por outro lado, uma dose de ímpeto pode fazer com que a pessoa ou o povo lute por seus direitos, saindo do marasmo, da alienação e da opressão. Um pouco de indignação traz um sentimento de que se está vivo e algo precisa melhorar. 

Às vezes são aprovadas leis “radicais”, que adotam a “tolerância zero” contra a criminalidade ou até mesmo atos errados e banais, como jogar papel na rua. Quando isso acontece é porque os governantes/legisladores passaram a defender uma moral não condizente à média da população, é como pedir a todos que sejam santos numa terra de pecadores. É mais ou menos o que o cristianismo pregou por anos, internalizando o pecado original e a culpa nos fiéis, que passaram a achar que sua existência terrena estava para sempre condenada e só depois de morto se poderia atingir a felicidade, num paraíso desenhado aos mais ascetas. Haver poucos virtuosos em meio a tantos viciados não pode dar em boa coisa, é provável que no fim a maioria reste contaminada. Um bom regime deve ser ligeiramente superior ao cidadão ordinário e não extremamente superior, tentando nivelar por cima seu povo. As mudanças pretendidas devem ser estimuladas aos poucos e não dessa forma radical, pois deveras coercitiva e ineficiente. Ou as pessoas formarão um rebanho resignado fácil de manipular ou a indignação será geral e ninguém cumprirá a lei, sendo um tiro no pé do projeto inicial, que buscava o melhor dos mundos, um oásis em meio à decadência generalizada. Grande exemplo disso é a Lei Seca americana, que teve motivação religiosa e terminou de forma desastrosa, pois nunca houve tanto bandido poderoso e alcoólatra ignorado pelas autoridades. Nesse cenário de guerra civil velada, o governo se via de mãos atadas, até que revogou a lei e as coisas puderam voltar a alguma normalidade.

É claro que o mundo não é um mar-de-rosas, que as pessoas não são boazinhas e nem que ser feliz é um destino inexorável. É claro que o pacto social se fez necessário para domar o ímpeto das pessoas e demais atos inconsequentes. O contrato social barra (ou pelo menos deveria proceder assim) atos que desestimulam a convivência pacífica entre os homens. Com a regulamentação de leis e com a liberdade de pensamento e de associação acaba ficando mais barato para a máquina estatal, pois aumenta o nível de confiança, gastando-se menos em fiscalizar e reprimir “subversões” que em nada atrapalham o andamento da sociedade. Como Hobbes tinha uma visão extremante pessimista do homem em estado primitivo e Rousseau, uma visão ingenuamente otimista, percebemos como é difícil estruturar uma sociedade. Deve haver uma definição de justiça e do que deve ser estimulado a fim de promover o bem-estar das pessoas que ali vivem, seja de maneira hierárquica ou igualitária; o que importa é haver critérios para distinguir o que é considerado justo e desejável do que é injusto e condenável. A partir disso, temos esses sentimentos rotineiros, como a indignação e a satisfação. A adoção de um conjunto de valores levará a reações das mais diversas. Se se acreditar que tudo está decidido de antemão e não há o que melhorar, dificilmente haverá tolerância, pois qualquer desvio de rota será uma ameaça à perfeição instituída. E se se acreditar no progresso paulatino, é mais provável haver a promoção da tolerância, pois admite-se testes, erros e correções. 

Uma sociedade que esteja aberta a atender demandas de sua população, e consiga responder satisfatoriamente a boa parte delas, poderá ser considerada bem ajustada, enquanto a que se fecha ou que não se importa com o cumprimento das leis poderá ser tido como errática, inepta, injusta, corrupta ou tirana. Não é porque ninguém se indigna que o povo vive bem, assim como é incorreto dizer que um grupo tolerante adora/ama os seus semelhantes. Na verdade, a indignação é um estado de alta insatisfação dentro de um contexto que permite cobranças por justiça e a tolerância é o respeito pelas diferenças. Em ambos os casos há graus de atuação, dentro de uma zona cinzenta difícil de definir onde começa e onde termina cada caso. Certo é que na sociedade contemporânea, permeada por valores ocidentais oriundos do Iluminismo, a intolerância é algo que só deveria ser aplicada aos intolerantes – o não respeito a direitos é o limite da tolerância – e a indignação é algo inevitável, pois temos a todo momento contato com situações injustas, que clamam por reparação. O grande perigo nesse caso é se reduzir a cobranças por ninharias ou encontrar-se num estágio de anestesia, quando não se consegue mais se indignar nem lutar por algo, como se tivesse desistido de melhorar o mundo. Isso mina o espírito democrático e a noção de prioridade. Novamente, recorrer ao bom senso poderá ser de grande valia.

Concluindo, vejo que tolerância e indignação estão em perpétuo conflito. O tolerante tende a se indignar menos e nos momentos em que se sente indignado não costuma traduzir essa revolta em algo grave, como quebra-quebra ou desacato à autoridade. Quem é tolerante tende a ser mais equilibrado emocionalmente, pois seu lado racional é trabalhado o suficiente para brecar reações intempestivas. Já a indignação tende a ser uma intolerância, pois nasceu de um fato que não deveria ter acontecido nem se repetir e a pessoa gostaria de anulá-lo, ou ao menos repará-lo. No entanto, não há uma relação inversamente proporcional entre elas, i.e., se aumentar a tolerância diminuiria a indignação e vice-versa, há somente uma tendência de que isso ocorra. Finalmente, o tolerante, por servir-se mais da razão, tem mais chances de se adaptar ao atual contexto, assaz turbulento e pluralista, enquanto o indignado, por se deixar levar por suas emoções, tem mais chances de se sentir infeliz, turrão e deslocado. Nem tudo a razão consegue controlar, porém ela é útil para corrigir erros pontuais, buscando um equilíbrio entre o descontentamento e o júbilo, seu e dos demais.


P.S.: Trabalho de faculdade escrito com as devidas liberdades acadêmicos de um formando sem compromisso com a reputação de profissional gabaritado e admirado.

2 de agosto de 2014

This Love

(I'd kill myself for you and I'd kill you for myself - uma homenagem à minha canção de amor favorita)



Quem é o tonto?

Quando eu lhe vi
pela primeira vez,
momento em que me perdi
apaixonadamente.
Tentei me aproximar
de você,
sem saber
que seria a causa da minha perdição.

Feito um tonto
eu esperei por você
Feito um tonto
sonhei estar ao seu lado
Feito um tonto
aguardei à sua porta
levando chuva no dorso,
jurando “isso vai ter volta”.

Preparei o meu plano,
lhe avistava de longe
Fiz anotações
da rotina que não era de um monge,
mitigava minha culpa
por cortar sua garganta,
tão branca, tão bela,
cena agora resoluta.

Feito uma tonta
você nem me atendeu
Feito uma tonta
você pensou “esse é mais um”
Feito uma tonta
muito gritou e implorou
com esperanças inócuas,
me oferecendo uma troca.

Feito um tonto
o repórter me chamou de perverso,
desprezível e abjeto,
sem saber que a tudo isso
eu sou tão avesso.

Então no fim
quem foi o tonto?
E aí, quem!
são os tontos?

*x=X¢
P.S.: Ni Hao!