21 de setembro de 2012

Medo do feio


Ninguém gosta de ser medroso. Alguns podem, no máximo, dizer que gostam da sensação intensa transmitida pelo medo (o caçador de aventuras), da adrenalina disparada (o viciado em emoções) ou da certeza de estar vivo e lutando por algo (o fugitivo), nem que seja só para escapar. Porém ser medroso contumaz é o covarde, o fracasso, o inerte. Sufocamento, paralisia crônica, vômitos, afasias ocasionais, lapsos de memória e desmaios são sintomas de uma doença grave, e quem buscará esse sofrimento angustiante? Os hipocondríacos inventam enfermidades pelo prazer da cura, dá poder. Como contraponto ao derrotado, enfrenta-se os medos e segue-se adiante. A origem deles, na verdade, pouco importa, provavelmente foram ocasionados por traumas na infância, pelas tenebrosas histórias contadas por quem queria aterrorizar ou se aliviar ou então pela ansiedade que o desconhecido provoca. De fato, é improvável que não haja alguém que não se choque com algum episódio, animal ou objeto, horripilante, imprevisto ou grandioso. Mas não é porque houve uma aflição instintiva que aquilo se transformará em fobia, existem níveis do medo.  

Quero unir essa idéia do medo com a da beleza, para ser mais exato, com a feiura. Nós só julgamos algo como feio se isso nos desperta ameaça ou repulsa, portanto queremos distância dele, mesmo sem sabermos exatamente o motivo. Creio que é por nossa exclusiva atração pelo belo, que nos será bom e conveniente, de algum modo. Mas, se acabamos convivendo com várias coisas desagradáveis, por conseguinte, como explicar essa incongruência? São acasos e questões culturais. O garoto vai aprendendo desde cedo o que deve ser valorizado e o que deve ser rejeitado, tendendo a optar pelo que lhe é mais aprazível; contudo, a vida não se resume a flores e fadinhas. O bicho papão e os invasores parecem estar sempre à espreita. Contudo, as coisas pelas quais não se tem controle vão se acomodando, sendo adaptada pela pessoa, que alterará seu ponto de vista perante o antigo incômodo. Ao menos enquanto ela tiver amor-próprio; a vida gosta de quem gosta dela.

Aliar-se à beleza – o que o indivíduo, mas sobretudo seu grupo, julga belo – é elevar o poderio, a autoestima ou o bem-estar do ser. E quem não quer essas coisas, não é mesmo? Falar em teleologia pode ser reacionário ou antiquado, porém a felicidade como o objetivo da vida é quase uma unanimidade, apesar dos inúmeros e heterogêneos grupos sociais no mundo. Associar uma vivência feliz com os imperativos de verdade, justiça e solidariedade é um desafio que quase todos se impõem, à exceção dos que maldizem a vida e dos nefastos – infelizes incuráveis. Dessa associação ao belo surge o bom, uma vez que é desejável e aumenta a força, ou seja, há uma relação muito estreita entre a estética e a ética. Por outro lado, é difícil saber o que veio primeiro, se o feio ou o medo: teme-se a feiura e acha-se feio o que desperta temor. No entanto, como explicar o fascínio de muita gente pelo grotesco e pelo perigoso?

Ao afrontar os receios ou o paralisante, elimina-se a covardia. Maturidade exprime a perda de medos. Quando se está na terna infância se é destemido, pois o menino se acha o dono e o centro do mundo; ao perceber a própria fragilidade e impotência diante do exterior, ele passa prontamente a acumular temores. No processo (adolescência), o garoto vai se livrando deles, ou ao menos fingindo, com seu lado negro devidamente camuflado, até se tornar um adulto intrépido, arriscando-se a realizar suas vontades, senão será um pusilânime completamente resignado e esperando que outrem satisfaça suas aspirações – seria timidez doentia. Nem sempre é fácil tirar os fantasmas quase fossilizados de dentro de si, não é incomum ter que se exercitar perspicaz e insidiosamente contra as associações que neutralizam e sufocam. Através do contato constante com o repugnante (genericamente falando) a aversão vira indiferença. Ao mesmo tempo vão-se o feio e o medo.

Essa mudança de visão estimula novas sinapses, que definirão o modo como se depara e encara as situações e os objetos do mundo. Decorre disso o ecletismo, a malemolência e a coragem de superar o que vier pela frente, ou quase tudo, afinal ninguém é invencível. É inevitável que o mundo se torne mais belo, pois encontrar algo terrível, logo feioso, seria raro. Pode ser que haja uma indiferença excessiva, uma insipidez ubíqua, porém basta despertar a vontade de realizar e de conquistar para brotar de novo aquela sensação de estar diante do sublime, não no sentido kantiano de desinteresse, quase monge, mas na afecção que fortalece. É nietzschiano: a fruição estética da vida é que estimula-a e fornece seu sentido. O artista compreende os dois pólos (negativo e positivo ou belo e feio ou bom e mau) e acaba ampliando sua perspectiva, com experiências que o permitem sentir melhor o fenômeno e construir afirmativamente sua existência, apesar da ambigüidade.

O medo é efeito de uma angústia exacerbada, que se caracteriza por: desproporção entre o estímulo externo e a reação da pessoa, algo um tanto paranóico; discrepância entre as manifestações corporais e mentais, a pessoa não sabe direito onde está, o que fazer e como se sente; e desarmonia interna. A partir desse esquema vemos que o belo não condiz com os temores, pois ele se caracteriza pela harmonia e proporção, ao menos no sentido clássico – podemos configurar a arte moderna saída de uma tensão desejada, e não descontrolada -, portanto um sujeito destemido, razoável e sensível poderá ver as coisas com seus óculos de filtros estéticos. Andar numa terra de ninguém e repleto de dilemas só gera mais apreensão. Querer e não querer, ser e não ser, fazer e não fazer, e tudo o mais que paralisa; nada é solucionado, enquanto a fobia infla e germina na cabeça e no peito, sendo perceptível, e também não! Não pode a fronteira entre fantasia e realidade ser delimitada, e nem se almeja isso, é mais seguro delirar. Escarro e escárnio: sem responsabilização não há ousadia ao proferir juízos estéticos, é só perdigoto saindo da boca.

Nem tudo é permitido, algumas coisas devem continuar feias, pois se elas são prejudiciais não há como se tornarem belas. O que não é válido para si nem para a sociedade ficará à parte, execrável. A polêmica é o modo pelo qual essa taxação ocorreu: se houve uma reflexão ética ou se foi automática, pelo habitual preconceito, que carrega consigo seus bodes expiatórios, contra o incomum e o alvo fácil (o indiscutivelmente feio). Mas nenhuma questão ética é de resposta fácil, soluções simplistas merecem a desconfiança de qualquer um ligeiramente cético. O esclarecimento e a flexibilidade ajudam a dissipar as nuvens negras da tempestade infinda.

Etnias primitivas costumam aproximar-se do tenebroso. É aquele velho ditado maquiavélico: “tenha seus amigos por perto e seus inimigos mais ainda”. É questão de reconciliação, controle e diplomacia. O morto volta a ser um membro prestativo. O desafeto passa a se ambientar, a fim de se tornar mais um amigo, ou ao menos alguém minimamente querido. Pela troca de experiências ambos aprendem muita coisa. Então vemos carrancas, caveiras, esqueletos, pinturas que gritam, mostram os dentes e agitam. O ritual é contagiante, a morte deixa para trás o que não voltará, o morto e o medo enterrados descansarão após a passagem, o “demônio” não será mais “o coisa ruim”, pois apenas um ser incompreendido e afastado. A repetição dá previsibilidade, a re-encenação habitua o povo às personagens. O vermelho deixa de ser fogo que flagela, é paixão que anima; o preto não é mais as trevas que capitula o ser e leva-o ao vazio, torna-se sobriedade; a faca que mata também alimenta. A simbologia é mera questão de reposicionamento e a feiúra, de domesticação – à exceção dos tabus e dos monstros intocáveis e impronunciáveis que nos rebaixam.

“Quem ama o feio bonito lhe parece”, realmente, no mínimo ele será “bonitinho e simpático”. O autoengano nos engaja a continuar perto dessa beleza peculiar, pois do contrário seria autodesprezo – sem doses de fé nenhuma civilização vingaria. O amor colore (quase) tudo em volta. Não há como gostar e trazer para perto algo que deveria ser considerado feio e assim continuar sendo. É antinatural se associar ao que ameaça, se alguém se mutila é porque não suporta mais o fardo da vida, ou seja, perdeu a esperança na própria potência. Faltará pouco para o suicídio se não houver um grande amparo. Às vezes é só isto que o inditoso almeja: chamar atenção dos outros à própria miséria, impedindo a felicidade geral. Para muitos é insuportável notar a alegria alheia sem encontrar-se nesse estado. Emergem o ódio, a evitação, a confusão, a rejeição e a fria e doce vingança. A tática empregada é a de prejudicar o grupo para que mais alguém se afogue ou para que esse tristonho enfim consiga comandar alguém ou algo para então cuidar um pouco de si.

Envenenar, isto é, sabotar a coisa até então envolta pela aura de beleza é um grande teste para saber se ela continuará bela e se o observador aguçará seu senso estético. O grotesco deixa de ser assombroso, não há mais anomalias incompreensíveis, destarte pode-se passar para uma próxima etapa – talvez a algo mais grotesco, em tudo há níveis. Dessa forma, o monstro não crescerá a ponto de ser impossível de enfrentá-lo. Ficar sem chão não é o fim do mundo. O estranho, o exótico e o bizarro incomodam (fazer o quê?) e despertam um instinto de proteção e afastamento, que na verdade se resume a etnocentrismo; uma mente aberta, um espírito convidativo e uma pitada de fibra impregnam o sujeito de audácia para enxergar beleza onde poucos ali a veem. 


1 de setembro de 2012

A marra do urbano



Um indivíduo quanto mais jogado no mundo, sem apoio e sem ser foz de rios de expectativas, mais precisará compensar essa falta de background com marra, a famosa marra de malandro. Não falo apenas de garotos de rua de nossas metrópoles ou mesmo de cidades menores com falta de planejamento social. Quero abranger todas as pessoas que não herdaram uma tradição, que não receberam educação além da formal, que não carregam sobrenomes ou comunidades nas costas, nos rostos, na pele, na roupa, na valise ou em outro tipo de bagagem. E não se trata aqui da maioria da população ocidental? Quem consegue detalhar sua árvore genealógica além da 3ª geração ou tem um objeto qualquer com mais de 80 anos? E nem precisa possuir uma obra de arte, que antes não valia um tostão e hoje vale uma nota preta, simplesmente por ser relíquia e símbolo de uma época pouco compreendida. Basta haver estórias de vovô para contar aos filhos, netos ou sobrinhos.
Sem a tradição o que restou de nós? A vida, ou seria sobrevida? Se não houver um abraço desesperado numa metafísica fajuta de feirante, com suas mentiras adaptadas a “novas eras”, a efêmera existência perderia seu sentido, não é mesmo? Ela jazeria ali, em convulsões, se debatendo em delírios, sejam histéricos, melancólicos, hiperativos ou depressivos, dependendo do surto diagnosticado na época – moda de consultório. Triste de quem perdeu todas as suas raízes e não encontrou um solo fértil ou não possuía ímpeto para semear sua exótica semente. Triste também de quem se apegou à primeira árvore que pareceu promissora, com frutos bonitinhos à primeira impressão, mas que depois se revelou improdutiva, às vezes justamente por ela acolher hospedeiros demais – exércitos de pragas irrequietas! Triste, enfim, de quem cavou a própria cova; ao menos a natureza dele cuidou. Há tristeza em toda parte do árido terreno niilista, após a derrocada da clássica moral.
Contudo, vejo que a maioria, ainda que instintivamente, luta por um bom lugar ao sol. Como proceder, depois de perceber que seguir as cartilhas da autoridade ludibriadora não alcançou boa posição? É insuficiente segui-las, pois não somos organizados e imparciais como detalhadamente constava nos relatórios. O paraíso terreno (leia-se sonho americano) é dos espertos. Pouco adianta ser melhor aluno e não possuir talento e nem ser posicionado pelos bem relacionados (o tal background citado). Pouco importa ser um pulha a vida inteira se a sorte lhe sorriu e a isca foi mordida na hora certa; é bom para ele e pior pro resto. É incrível como tantos sonham em ganhar na loteria a fim de “resolver a vida” (dispenso comentar acerca das conseqüências da fortuna repentina) e como filmes de planos mirabolantes de assalto a banco ou desvio de contas financeiras cativam o público em geral (a inveja, a ganância e a preguiça não abandonam mesmo nossos bons cristãos). Aparentemente, a vida fácil, regada a champanha, mordomos, secretárias e piscina na cobertura, é a meta de cada projeto de pequeno burguês; para chegar lá, se não for o filho do dono, passa-se a perna nele.
Mesmo que se desista desses sonhos grandiosos, dos roteiros de Stallone ou Jet Li, das megalomanias juvenis sem fundamento além da idolatria, o mínimo que se quer é isto: destacar-se na praça, passar de invejoso para invejado. Entra, então, o título do texto e nosso assunto principal: a marra do urbano. Por que só a dele? Porque só na cidade ela faz sentido, a vida campestre, cabocla ou rural, ou mesmo a indígena, é mais previsível, os papéis sociais são mais bem definidos e o script da vida foi como que escrito de antemão, povoando o imaginário dos habitantes. Dessa forma, por que teimar, revolucionar ou recusar tais costumes? Que os incomodados se retirem. Que os acomodados se reiterem. É o cenário clássico: anos e anos de fluxo harmônico, gente pacífica e satisfeita com a rotina. Não é preciso de marra, visto que cada membro é rapidamente identificado. O indivíduo liberal carece de sentido, a pessoa não irá se empenhar por glória ou fama exclusiva, por que ela representa muita coisa: família, vila, etnia ou classe. Pintar uma imagem com a aquarela do marketing pessoal seria vender poesia para analfabetos. Nenhuma cultura se forma a partir de esforços inúteis isolados.
Do outro lado, na cidade grande, o que se passa? É a lei da selva de concreto, cada um por si tentando se salvar, claro que sob a máscara da habitual hipocrisia para não causar danos fatais a colegas e demais transeuntes dispersos. Atrás da fachada do corporativismo as coisas se complicam, pois sobre o tapete competitivo as proteções acabam servindo de estímulo a tapetes serem puxados, se os seus respectivos donos não se precaverem de antemão. E as promessas são de pouca serventia sem provas materiais. A primazia da honra é substituída pela da melhor reputação. De fora, parecem babuínos se revezando no poder. Através da estratégia da marra, da pose, da aparência VIP, o cidadão consegue algo: sua posição, ao menos enquanto durar o castelinho de cartas. Ele afugenta os demais marrentos e prospecta outras escaladas. Como não havia muito que perder lá no começo, o peso nas costas é quase todo selecionado. Os ousados que não têm a quem prestar contas mal sentem o peso de suas mochilas durante a jornada do alpinismo social. Sem as tralhas da herança de gerações zelosas, podem poupar tempo nas paradas burocráticas, e passam incólumes.
Ao mesmo tempo em que se precisa ouvir para aprender lições, preenchendo o escasso caderno de anotações, precisa-se também falar (e muito!), ainda que não se diga uma só frase inteligente ou informativa, desde que seja espirituosa e crível. O mundo está cheio de gente querendo ser seduzida, ansiando por lorotas bem contadas. O mundo orgânico progride, em grande parte, devido a esses mutualismos, pouco importando quem é o mais beneficiado, desde que ambos se sintam ajudados. O ambiente dos seres ilógicos evolui através das falácias; sejam elas difundidas, o verde passará a brilhar nos olhos de quem quer vê-lo. Achar um equilíbrio entre as entradas e saídas de dados, da maneira mais eficiente possível, visando sempre se destacar e se fazer influente, é uma obsessão ao marrento. Este afastará de si os entendidos, ele não poderá jamais assimilar pretensões não marrentas – compreensível incompreendido. Sobretudo, não se deve parecer triste ou humilhado, nem derrotado, no máximo permite-se passar por vítima, a fim de ser acudido e a justiça refeita. O coitado é o primeiro a ser esmagado pelo frio trator metropolitano – a compaixão foi reposicionada como coadjuvante nas lendas infantis. E dela logo as crianças se esquecem.
O ator se descobre diretor. Não há mais ninguém lhe apontando a posição exata e o caminho ao tesouro. Porém, esse diretor inexperiente não sabe como se ordenar, e se atrapalha ao comandar os outros. Nesse inesperado momento de passada de bastão, qual é a tática infalível? Fingir importância, elevar matreiramente a auto-estima a ponto de o outro possuir menos dúvidas sobre a capacidade do marrento do que este teria consigo. E o vaidoso passa a se convencer justamente por esse feedback. Mas que joguinho de Lego com peças floreadas de falsas expectativas! É uma questão prática: vale a reputação e a capacidade de influenciar com menor hesitação. Nessa intensa e pretensiosa disputa social, onde quem se vende melhor lucra mais, o mundo gira feito roda solta, pois seu eixo é imaginário. Entretanto, sem qualquer movimento ou ilusões o ato de encarar o vazio seria insuportável. E o tédio predominaria num recinto de faces com expressões blasés num chá das 5. Portanto, deixemos essa marra a quem for de direito exercê-la, apesar de depararmos, após retirarmos o manto sobre a carcaça, com mais uma cena triste: competidores arfando por carniça. Enquanto isso, a esperança sustenta fragilmente um projeto ético por uma sociedade mais autêntica.