Ninguém gosta de ser medroso. Alguns podem, no máximo, dizer
que gostam da sensação intensa transmitida pelo medo (o caçador de aventuras),
da adrenalina disparada (o viciado em emoções) ou da certeza de estar vivo e
lutando por algo (o fugitivo), nem que seja só para escapar. Porém ser medroso
contumaz é o covarde, o fracasso, o inerte. Sufocamento, paralisia crônica,
vômitos, afasias ocasionais, lapsos de memória e desmaios são sintomas de uma
doença grave, e quem buscará esse sofrimento angustiante? Os hipocondríacos
inventam enfermidades pelo prazer da cura, dá poder. Como contraponto ao
derrotado, enfrenta-se os medos e segue-se adiante. A origem deles, na verdade,
pouco importa, provavelmente foram ocasionados por traumas na infância, pelas
tenebrosas histórias contadas por quem queria aterrorizar ou se aliviar ou
então pela ansiedade que o desconhecido provoca. De fato, é improvável que não
haja alguém que não se choque com algum episódio, animal ou objeto,
horripilante, imprevisto ou grandioso. Mas não é porque houve uma aflição
instintiva que aquilo se transformará em fobia, existem níveis do medo.
Quero unir essa idéia do medo com
a da beleza, para ser mais exato, com a feiura. Nós só julgamos algo como feio
se isso nos desperta ameaça ou repulsa, portanto queremos distância dele, mesmo
sem sabermos exatamente o motivo. Creio que é por nossa exclusiva atração pelo
belo, que nos será bom e conveniente, de algum modo. Mas, se acabamos
convivendo com várias coisas desagradáveis, por conseguinte, como explicar essa
incongruência? São acasos e questões culturais. O garoto vai aprendendo desde
cedo o que deve ser valorizado e o que deve ser rejeitado, tendendo a optar
pelo que lhe é mais aprazível; contudo, a vida não se resume a flores e
fadinhas. O bicho papão e os invasores parecem estar sempre à espreita.
Contudo, as coisas pelas quais não se tem controle vão se acomodando, sendo
adaptada pela pessoa, que alterará seu ponto de vista perante o antigo
incômodo. Ao menos enquanto ela tiver amor-próprio; a vida gosta de quem gosta
dela.
Aliar-se à beleza – o que o indivíduo, mas sobretudo seu
grupo, julga belo – é elevar o poderio, a autoestima ou o bem-estar do ser. E
quem não quer essas coisas, não é mesmo? Falar em teleologia pode ser
reacionário ou antiquado, porém a felicidade como o objetivo da vida é quase
uma unanimidade, apesar dos inúmeros e heterogêneos grupos sociais no mundo.
Associar uma vivência feliz com os imperativos de verdade, justiça e
solidariedade é um desafio que quase todos se impõem, à exceção dos que
maldizem a vida e dos nefastos – infelizes incuráveis. Dessa associação ao belo
surge o bom, uma vez que é desejável e aumenta a força, ou seja, há uma relação
muito estreita entre a estética e a ética. Por outro lado, é difícil saber o que
veio primeiro, se o feio ou o medo: teme-se a feiura e acha-se feio o que
desperta temor. No entanto, como explicar o fascínio de muita gente pelo
grotesco e pelo perigoso?
Ao afrontar os receios ou o paralisante, elimina-se a
covardia. Maturidade exprime a perda de medos. Quando se está na terna infância
se é destemido, pois o menino se acha o dono e o centro do mundo; ao perceber a
própria fragilidade e impotência diante do exterior, ele passa prontamente a
acumular temores. No processo (adolescência), o garoto vai se livrando deles,
ou ao menos fingindo, com seu lado negro devidamente camuflado, até se tornar
um adulto intrépido, arriscando-se a realizar suas vontades, senão será um
pusilânime completamente resignado e esperando que outrem satisfaça suas
aspirações – seria timidez doentia. Nem sempre é fácil tirar os fantasmas quase
fossilizados de dentro de si, não é incomum ter que se exercitar perspicaz e
insidiosamente contra as associações que neutralizam e sufocam. Através do
contato constante com o repugnante (genericamente falando) a aversão vira
indiferença. Ao mesmo tempo vão-se o feio e o medo.
Essa mudança de visão estimula novas sinapses, que definirão
o modo como se depara e encara as situações e os objetos do mundo. Decorre
disso o ecletismo, a malemolência e a coragem de superar o que vier pela
frente, ou quase tudo, afinal ninguém é invencível. É inevitável que o mundo se
torne mais belo, pois encontrar algo terrível, logo feioso, seria raro. Pode
ser que haja uma indiferença excessiva, uma insipidez ubíqua, porém basta
despertar a vontade de realizar e de conquistar para brotar de novo aquela
sensação de estar diante do sublime, não no sentido kantiano de desinteresse,
quase monge, mas na afecção que fortalece. É nietzschiano: a fruição estética
da vida é que estimula-a e fornece seu sentido. O artista compreende os dois
pólos (negativo e positivo ou belo e feio ou bom e mau) e acaba ampliando sua
perspectiva, com experiências que o permitem sentir melhor o fenômeno e
construir afirmativamente sua existência, apesar da ambigüidade.
O medo é efeito de uma angústia exacerbada, que se
caracteriza por: desproporção entre o estímulo externo e a reação da pessoa,
algo um tanto paranóico; discrepância entre as manifestações corporais e
mentais, a pessoa não sabe direito onde está, o que fazer e como se sente; e
desarmonia interna. A partir desse esquema vemos que o belo não condiz com os
temores, pois ele se caracteriza pela harmonia e proporção, ao menos no sentido
clássico – podemos configurar a arte moderna saída de uma tensão desejada, e
não descontrolada -, portanto um sujeito destemido, razoável e sensível poderá
ver as coisas com seus óculos de filtros estéticos. Andar numa terra de ninguém
e repleto de dilemas só gera mais apreensão. Querer e não querer, ser e não
ser, fazer e não fazer, e tudo o mais que paralisa; nada é solucionado,
enquanto a fobia infla e germina na cabeça e no peito, sendo perceptível, e
também não! Não pode a fronteira entre fantasia e realidade ser delimitada, e
nem se almeja isso, é mais seguro delirar. Escarro e escárnio: sem
responsabilização não há ousadia ao proferir juízos estéticos, é só perdigoto
saindo da boca.
Nem tudo é permitido, algumas coisas devem continuar feias,
pois se elas são prejudiciais não há como se tornarem belas. O que não é válido
para si nem para a sociedade ficará à parte, execrável. A polêmica é o modo
pelo qual essa taxação ocorreu: se houve uma reflexão ética ou se foi
automática, pelo habitual preconceito, que carrega consigo seus bodes
expiatórios, contra o incomum e o alvo fácil (o indiscutivelmente feio). Mas
nenhuma questão ética é de resposta fácil, soluções simplistas merecem a
desconfiança de qualquer um ligeiramente cético. O esclarecimento e a
flexibilidade ajudam a dissipar as nuvens negras da tempestade infinda.
Etnias primitivas costumam aproximar-se do tenebroso. É
aquele velho ditado maquiavélico: “tenha seus amigos por perto e seus inimigos
mais ainda”. É questão de reconciliação, controle e diplomacia. O morto volta a
ser um membro prestativo. O desafeto passa a se ambientar, a fim de se tornar
mais um amigo, ou ao menos alguém minimamente querido. Pela troca de
experiências ambos aprendem muita coisa. Então vemos carrancas, caveiras,
esqueletos, pinturas que gritam, mostram os dentes e agitam. O ritual é
contagiante, a morte deixa para trás o que não voltará, o morto e o medo
enterrados descansarão após a passagem, o “demônio” não será mais “o coisa
ruim”, pois apenas um ser incompreendido e afastado. A repetição dá previsibilidade,
a re-encenação habitua o povo às personagens. O vermelho deixa de ser fogo que
flagela, é paixão que anima; o preto não é mais as trevas que capitula o ser e
leva-o ao vazio, torna-se sobriedade; a faca que mata também alimenta. A
simbologia é mera questão de reposicionamento e a feiúra, de domesticação – à
exceção dos tabus e dos monstros intocáveis e impronunciáveis que nos rebaixam.
“Quem ama o feio bonito lhe parece”, realmente, no mínimo
ele será “bonitinho e simpático”. O autoengano nos engaja a continuar perto
dessa beleza peculiar, pois do contrário seria autodesprezo – sem doses de fé
nenhuma civilização vingaria. O amor colore (quase) tudo em volta. Não há como
gostar e trazer para perto algo que deveria ser considerado feio e assim continuar
sendo. É antinatural se associar ao que ameaça, se alguém se mutila é porque
não suporta mais o fardo da vida, ou seja, perdeu a esperança na própria
potência. Faltará pouco para o suicídio se não houver um grande amparo. Às
vezes é só isto que o inditoso almeja: chamar atenção dos outros à própria
miséria, impedindo a felicidade geral. Para muitos é insuportável notar a
alegria alheia sem encontrar-se nesse estado. Emergem o ódio, a evitação, a
confusão, a rejeição e a fria e doce vingança. A tática empregada é a de
prejudicar o grupo para que mais alguém se afogue ou para que esse tristonho
enfim consiga comandar alguém ou algo para então cuidar um pouco de si.
Envenenar, isto é, sabotar a coisa até então envolta pela
aura de beleza é um grande teste para saber se ela continuará bela e se o
observador aguçará seu senso estético. O grotesco deixa de ser assombroso, não
há mais anomalias incompreensíveis, destarte pode-se passar para uma próxima
etapa – talvez a algo mais grotesco, em tudo há níveis. Dessa forma, o monstro
não crescerá a ponto de ser impossível de enfrentá-lo. Ficar sem chão não é o
fim do mundo. O estranho, o exótico e o bizarro incomodam (fazer o quê?) e
despertam um instinto de proteção e afastamento, que na verdade se resume a
etnocentrismo; uma mente aberta, um espírito convidativo e uma pitada de fibra
impregnam o sujeito de audácia para enxergar beleza onde poucos ali a veem.
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