Um indivíduo quanto mais jogado no
mundo, sem apoio e sem ser foz de rios de expectativas, mais precisará
compensar essa falta de background com marra, a famosa marra de malandro. Não
falo apenas de garotos de rua de nossas metrópoles ou mesmo de cidades menores
com falta de planejamento social. Quero abranger todas as pessoas que não
herdaram uma tradição, que não receberam educação além da formal, que não
carregam sobrenomes ou comunidades nas costas, nos rostos, na pele, na roupa,
na valise ou em outro tipo de bagagem. E não se trata aqui da maioria da
população ocidental? Quem consegue detalhar sua árvore genealógica além da 3ª
geração ou tem um objeto qualquer com mais de 80 anos? E nem precisa possuir
uma obra de arte, que antes não valia um tostão e hoje vale uma nota preta,
simplesmente por ser relíquia e símbolo de uma época pouco compreendida. Basta haver
estórias de vovô para contar aos filhos, netos ou sobrinhos.
Sem a tradição o que restou de nós?
A vida, ou seria sobrevida? Se não houver um abraço desesperado numa metafísica
fajuta de feirante, com suas mentiras adaptadas a “novas eras”, a efêmera
existência perderia seu sentido, não é mesmo? Ela jazeria ali, em convulsões,
se debatendo em delírios, sejam histéricos, melancólicos, hiperativos ou
depressivos, dependendo do surto diagnosticado na época – moda de consultório.
Triste de quem perdeu todas as suas raízes e não encontrou um solo fértil ou
não possuía ímpeto para semear sua exótica semente. Triste também de quem se
apegou à primeira árvore que pareceu promissora, com frutos bonitinhos à
primeira impressão, mas que depois se revelou improdutiva, às vezes justamente
por ela acolher hospedeiros demais – exércitos de pragas irrequietas! Triste,
enfim, de quem cavou a própria cova; ao menos a natureza dele cuidou. Há
tristeza em toda parte do árido terreno niilista, após a derrocada da clássica
moral.
Contudo, vejo que a maioria, ainda
que instintivamente, luta por um bom lugar ao sol. Como proceder, depois de
perceber que seguir as cartilhas da autoridade ludibriadora não alcançou boa
posição? É insuficiente segui-las, pois não somos organizados e imparciais como
detalhadamente constava nos relatórios. O paraíso terreno (leia-se sonho
americano) é dos espertos. Pouco adianta ser melhor aluno e não possuir talento
e nem ser posicionado pelos bem relacionados (o tal background citado). Pouco
importa ser um pulha a vida inteira se a sorte lhe sorriu e a isca foi mordida
na hora certa; é bom para ele e pior pro resto. É incrível como tantos sonham
em ganhar na loteria a fim de “resolver a vida” (dispenso comentar acerca das
conseqüências da fortuna repentina) e como filmes de planos mirabolantes de
assalto a banco ou desvio de contas financeiras cativam o público em geral (a
inveja, a ganância e a preguiça não abandonam mesmo nossos bons cristãos).
Aparentemente, a vida fácil, regada a champanha, mordomos, secretárias e
piscina na cobertura, é a meta de cada projeto de pequeno burguês; para chegar
lá, se não for o filho do dono, passa-se a perna nele.
Mesmo que se desista desses sonhos
grandiosos, dos roteiros de Stallone ou Jet Li, das megalomanias juvenis sem
fundamento além da idolatria, o mínimo que se quer é isto: destacar-se na
praça, passar de invejoso para invejado. Entra, então, o título do texto e
nosso assunto principal: a marra do urbano. Por que só a dele? Porque só na
cidade ela faz sentido, a vida campestre, cabocla ou rural, ou mesmo a
indígena, é mais previsível, os papéis sociais são mais bem definidos e o
script da vida foi como que escrito de antemão, povoando o imaginário dos
habitantes. Dessa forma, por que teimar, revolucionar ou recusar tais costumes?
Que os incomodados se retirem. Que os acomodados se reiterem. É o cenário
clássico: anos e anos de fluxo harmônico, gente pacífica e satisfeita com a
rotina. Não é preciso de marra, visto que cada membro é rapidamente
identificado. O indivíduo liberal carece de sentido, a pessoa não irá se
empenhar por glória ou fama exclusiva, por que ela representa muita coisa:
família, vila, etnia ou classe. Pintar uma imagem com a aquarela do marketing
pessoal seria vender poesia para analfabetos. Nenhuma cultura se forma a partir
de esforços inúteis isolados.
Do outro lado, na cidade grande, o
que se passa? É a lei da selva de concreto, cada um por si tentando se salvar,
claro que sob a máscara da habitual hipocrisia para não causar danos fatais a
colegas e demais transeuntes dispersos. Atrás da fachada do corporativismo as
coisas se complicam, pois sobre o tapete competitivo as proteções acabam
servindo de estímulo a tapetes serem puxados, se os seus respectivos donos não
se precaverem de antemão. E as promessas são de pouca serventia sem provas
materiais. A primazia da honra é substituída pela da melhor reputação. De fora,
parecem babuínos se revezando no poder. Através da estratégia da marra, da
pose, da aparência VIP, o cidadão consegue algo: sua posição, ao menos enquanto
durar o castelinho de cartas. Ele afugenta os demais marrentos e prospecta
outras escaladas. Como não havia muito que perder lá no começo, o peso nas
costas é quase todo selecionado. Os ousados que não têm a quem prestar contas
mal sentem o peso de suas mochilas durante a jornada do alpinismo social. Sem
as tralhas da herança de gerações zelosas, podem poupar tempo nas paradas
burocráticas, e passam incólumes.
Ao mesmo tempo em que se precisa
ouvir para aprender lições, preenchendo o escasso caderno de anotações,
precisa-se também falar (e muito!), ainda que não se diga uma só frase
inteligente ou informativa, desde que seja espirituosa e crível. O mundo está
cheio de gente querendo ser seduzida, ansiando por lorotas bem contadas. O
mundo orgânico progride, em grande parte, devido a esses mutualismos, pouco
importando quem é o mais beneficiado, desde que ambos se sintam ajudados. O
ambiente dos seres ilógicos evolui através das falácias; sejam elas difundidas,
o verde passará a brilhar nos olhos de quem quer vê-lo. Achar um equilíbrio
entre as entradas e saídas de dados, da maneira mais eficiente possível,
visando sempre se destacar e se fazer influente, é uma obsessão ao marrento.
Este afastará de si os entendidos, ele não poderá jamais assimilar pretensões
não marrentas – compreensível incompreendido. Sobretudo, não se deve parecer
triste ou humilhado, nem derrotado, no máximo permite-se passar por vítima, a
fim de ser acudido e a justiça refeita. O coitado é o primeiro a ser esmagado
pelo frio trator metropolitano – a compaixão foi reposicionada como coadjuvante
nas lendas infantis. E dela logo as crianças se esquecem.
O ator se descobre diretor. Não há
mais ninguém lhe apontando a posição exata e o caminho ao tesouro. Porém, esse
diretor inexperiente não sabe como se ordenar, e se atrapalha ao comandar os
outros. Nesse inesperado momento de passada de bastão, qual é a tática
infalível? Fingir importância, elevar matreiramente a auto-estima a ponto de o
outro possuir menos dúvidas sobre a capacidade do marrento do que este teria
consigo. E o vaidoso passa a se convencer justamente por esse feedback. Mas que
joguinho de Lego com peças floreadas de falsas expectativas! É uma questão
prática: vale a reputação e a capacidade de influenciar com menor hesitação.
Nessa intensa e pretensiosa disputa social, onde quem se vende melhor lucra
mais, o mundo gira feito roda solta, pois seu eixo é imaginário. Entretanto,
sem qualquer movimento ou ilusões o ato de encarar o vazio seria insuportável.
E o tédio predominaria num recinto de faces com expressões blasés num chá das
5. Portanto, deixemos essa marra a quem for de direito exercê-la, apesar de
depararmos, após retirarmos o manto sobre a carcaça, com mais uma cena triste:
competidores arfando por carniça. Enquanto isso, a esperança sustenta
fragilmente um projeto ético por uma sociedade mais autêntica.
Texto interessantíssimo, muito inspirador, você conseguiu expressar à questão levantada no título “A marra do urbano”. Para quem ler com certeza vai possibilitar boas reflexões.
ResponderExcluirSem a tradição o que restou de nós? A vida, ou seria sobrevida?
É isto aí, adorei de verdade!