Tive várias aulas sobre Wittgenstein e acabei sendo
influenciado por sua filosofia. Se você não conhece o filósofo, já sabe o que
fazer: pesquise. Num primeiro momento eu teimei em aceitar as suas ideias que
rompiam com a tradição metafísica, em especial a cartesiana, que balizou o
pensamento ocidental devido ao seu bem fundamentado dualismo sujeito e objeto.
Eu mesmo me vi confrontado; a minha pesada bagagem cultural e intelectual de
nada valia: questões éticas, políticas, estéticas, metafísicas e religiosas não
passariam de non sense e falatório
vazio, aquilo que o austríaco chamava de “roda solta”. Ou seja, toda aquela
clareza e convicção dos pensadores ao longo da história de que havia o mundo de
um lado e o sujeito pensante de outro, com a necessária conclusão de que a
realidade era inferida pelo observador, tinha o mesmo valor de conversa fiada
em botequim ou em salão de beleza. Isto é, psicologia popular, porém com
insígnias aos acadêmicos que se julgavam acima da carne seca.
Mais tarde surgiram as polêmicas entre empiristas e
racionalistas, mas isso não importava, pois ambos tinham a referência como
fundamento do conhecimento ou, para usar um termo específico, da epistemologia.
Enquanto as ciências naturais se desenvolviam, paralelamente as ciências
humanas precisavam se encaixar em algum método para garantir algumas certezas,
ou pelo menos se justificar. É claro que sem as pretensões de um saber exato,
afinal seu laboratório são as intranqüilas relações sociais. Assim que padrões
eram descobertos, “naturezas humanas” eram anunciadas, com uma crescente
cobertura midiática. Era como se tudo que saísse do homem possuísse essências,
restando aos cientistas, ou filósofos, descobri-las, ainda que elas se
esquivassem feito galinha matreira. Então a terra se abriu, dragou as ilusões e
fez um estrago no círculo intelectual equivalente a um tsunami ou a uma
hecatombe. Uma perspectiva devastadora talvez no mesmo nível das assombrosas
descobertas de Einstein e de Planck, contemporâneos do também excêntrico
Ludwig.
Esses anos 1920 foram uma aventura mesmo, o pós-guerra 1.0
prometia muito, foi preciso um pós-guerra 2.0, e posteriormente sua derradeira
(tomara) versão 3.0, para o homem receber lições de humildade a fim de não
ferrar com tudo e simultaneamente não viver (ainda) em cenários futuristas, de
odisséias no espaço, de viagens no tempo ou de eugenias com fins para lá de
duvidosos. As perspectivas da vanguarda eram espantosas, bastava o indivíduo
mergulhar de cabeça nas filosofias da época para virtualmente viajar para outra
dimensão, dispensando tecnologia e alucinógenos. O problema é que grupos, ou
antes memes, conservadores exerciam seu costumeiro papel de freio e de visão
dura da realidade insossa. São tantas idéias que precisam vingar e tantas
pessoas com inveja da felicidade e da subversiva criatividade alheia que não
podem permitir contínuas ameaças ao status quo; para ambas o mais provável
efeito dessa dança das cadeiras é a balbúrdia e a anarquia, ainda que os
reacionários depois de alguns anos ou gerações venham a se adaptar às mudanças
e se insiram no contexto (pós) moderno. Quem pensa devagar precisa viver
devagar, delegando aos aventureiros os riscos da vida perigosa, autêntica e
artística. Esses pioneiros pagam o preço por se desprenderem da embarcação,
deixando a correnteza cumprir seu destino. E eles não ligam por terem sido
molhados e, porventura, terem engolido água, pois às vezes só uma enxurrada
pode retirar do espírito as crostas da tradição.
Voltando... Wittgenstein reduziu as questões filosóficas a
esclarecimento lingüístico, deixando o filósofo como mero limpador das vidraças
– ou seriam lamparinas? – textuais. No máximo a sua inovação viria de perguntas
perspicazes e pertinentes. É claro que a galera deu chilique, afinal todo mundo
perderia o emprego e a pompa do dia para a noite, restando contar aos alunos
sobre história da filosofia e praticar a exegese sobre os calhamaços acumulados
até então, pois a especulação em busca das verdades já era. Sim, desapareceram:
a verdade, a essência platônica ou mesmo aristotélica e as perguntas do tipo “o
quê é isso”. E daí? Através dos jogos de linguagem as pessoas continuariam a se
entender. Cada palavra, cada frase, cada contexto, cada prática, cada passo na
teia argumentativa forneceria significados, muitas vezes únicos e na maioria
dos casos efêmeros, mas que teriam sua efetividade. Assim como nem tudo na vida
é gravado fidedignamente pela memória, os significados de cada jogo realizado
entre duas ou mais pessoas são intercambiáveis, como uma bexiga passada de mão
em mão que ora enche, ora esvazia, até um engraçadinho acabar com a
brincadeira. As regras gramáticas, apesar de postas a priori a fim de
possibilitar um entendimento universal, não impedem a criação de outras regras
durante o uso. É como o futebol, que começou com certas instruções básicas e
hoje é jogado de várias maneiras, com a exigência do gol e da bola no pé para
haver um vencedor no final, no caso de ser algo mais que uma brincadeira.
Doravante, todo dono da verdade passou a ser ridicularizado
por quem compreendera o relativismo das questões humanas. A verdade está aqui,
no mundo, cabendo à linguagem proferi-la, com o homem sendo seu humilde
porta-voz, não há o que ser feito a fim de colocá-lo num pedestal como gênio da
nação. É claro que o poder, a grana e outros artifícios continuaram a seduzir
vários incautos para prosseguirem com as homenagens magníficas em direção da
vanglória – fato compreensível, porquanto a maioria das pessoas é maleável e carente
e utiliza lógicas pouco rigorosas. O Geninho foi uma pessoa esforçada que
captou os fatos com os recursos disponíveis e com uma lógica impecável. Houve
mais um avanço da ciência, viva! Agora, o que isso significa para a vida de
bilhões de pessoas deste planeta? Pouca coisa.
O que realmente interessa aos terráqueos dotados de
articulação simbólica não são as questões científicas ou filosóficas, são
aquelas não naturais e bastante existencialistas. Eles irão invariavelmente
adotar uma postura sujeita a contestações sem fim, pois é sem referência e está
aquém de verificações. Mas sua vontade pessoal, e conseqüente satisfação,
bastariam como réplica. Quem estrutura a própria vida fugindo das contradições
passará por apuros, com chances de entrar em pane rapidinho. Abraçar uma
filosofa por inteiro demanda várias compromissos, do contrário transbordariam
incoerências. As filosofias não concorrem entre si, cada pessoa pode puxar um
pouco de cada uma delas, atentando-se às incongruências práticas desse
ecletismo. Não há progresso aí, há o que o estruturalismo ensinou: fases
históricas de desenvolvimento que podem se comunicar e que dispensam
hierarquias. Tanto é que mitologias milenares vigoram em todos os pontos do
planeta onde existam grupos sociais atrás de “virtudes” e “bem-estar”.
Essa metafísica é importante, mas não enquanto busca por
verdades, e sim por sentido. Cada um tem preferências, gostos e afeições – algo
mais subjetivo seria impossível –, logo é bobagem querer padronizar os
costumes. Haverá sempre arbitrariedade, tanto para um indivíduo solitário
quanto para um líder autoritário. Dar valor a certo costume é garantir a sua
verdade (no sentido de convicção) ou reconhecer que esse hábito é verdadeiro é
valorizá-lo? Confrontar juízos é comparar entre as opções disponíveis o que é
melhor para a própria vida, assim vão sendo consolidadas convicções e rumos, só
após percorrer esses caminhos a pessoa poderá julgar a própria conduta. Os
projetos devem ser traçados – é bom lembrar que deixar de escolher é uma
escolha – para no fim serem frustradas ou garantidas as expectativas. Com o
preenchimento delas ao longo da vida a pessoa obterá muitos significados, entre
eles o da alegria à existência, que talvez seja o anseio mais universal de
todos: felicidade sem remorsos. Contudo se nada disso tiver sido feito, a
tentativa de inércia máxima continuará válida. Não há garantias para além do
querer, há apenas o esforço de se conduzir bem e a esperança de atingir bons
resultados. É nesse subjetivismo que a ética, avessa à verdade objetiva, inevitavelmente
atinge a todos, responsabilizados por seus atos sociais. Olvidar não se pode
das punições institucionais, tácitas ou expressas, pois mesmo que todo
pensamento correto seja válido (não há pecado) nem toda ação é válida, pois com
ela perturbamos terceiros, avulsos à ética do agente.
Joguemos, enfim, a escada fora, sabendo separar o que é a
estrutura lógica que fornecerá epistemologias, que são de pouco valor ao cidadão
do mundo, e o que é jogo de linguagem e da existência, que muito diz e valora,
só podendo ser objetado por alguma contradição intrínseca que nem dará curto
circuito no caso de autoengano. Por outro lado, as referências tradicionais
(Deus, Ciência, Estado e Leis) batem em nossa cabeça o tempo todo com seu
atiçador de lareira importuno, lembrando-nos de que a civilização cobra seu
preço: o mal-estar dos impulsos necessariamente reprimidos. Sorte de quem age e
se projeta contentemente. Ele é compreendido e se compreende, dribla o niilismo
que sai por uma porta e entra por outra, e ainda preenche a sua vida e a dos outros
com sentido. Sentido diverso daquele de até então, empurrado goela abaixo, e
agora arbitrariamente (também consensualmente!) construído, em parte à revelia
dos poderes vigentes, com fins de satisfação cínica. Sem os rigores de
metodologias cartesianas, mas pragmático, o sujeito falará o que o mundo (não
uma cultura isolada) permite pensar e praticar. Por fim, é aconselhável agir
sem hipocrisia, seguindo as regras propostas e acordadas, visto estas possuírem
pretensões universais, para os relacionamentos não descambarem em sofismo:
ética do vale tudo, jogo social bárbaro e sem sentido além de violência
gratuita, acusações ou vandalismo. No mundo e na linguagem está todo o segredo
da realização. Isso é o que minha interpretação confusa conseguiu captar e traduzir
para vocês, meus críticos compreensivos.
§Ś
P.S.: Favor perdoar a miscelânea de perspectivas sem aprofundamento, o castelinho ainda está sendo erguido, e sem a devida minúcia de engenheiro.