16 de dezembro de 2012

Vontades, Instituições e Ética


Desde que o homem compreendeu que suas vontades são insaciáveis – elas podem ser efetivadas e acalmar a pessoa, mas retornam após um curto período de satisfação e euforia – e que um indivíduo conflita com seu semelhante, ou um povo com seu vizinho, para garantir os próprios anseios (em geral os mais imediatos), líderes entenderam que precisavam regular as ações das pessoas a fim de manter alguma ordem e força do grupo, com fins de sobrevivência, esse imperativo biológico. Em decorrência disso nasceram leis, regulamentos, dogmas, éticas, interditos, etc. Colocaram de um lado os vícios e de outro as virtudes. Os orientais foram mestres na dominação da vontade e muito antes dos pretensiosos europeus perceberam que para haver coesão comunitária e evitar os lobos conterrâneos precisavam elaborar filosofias e cartilhas rígidas, regulando as condutas dos aldeões cada vez mais apinhados, antes sequer destes agirem. Num território com pouco alimento para tanta gente, a saída, enquanto se desenvolviam tecnologias mais eficientes para colheita, lavoura e armazenamento, foi garantir a segurança do povo em detrimento da liberdade. Então as religiões inventaram que liberdade é não ser escravo do corpo, essa frágil matéria cheia de desejos tirânicos, mesquinhos e sem fim, que insiste em perturbar a alma. Comande sua mente, mantenha-se tranqüilo, permaneça sereno e atingirá o nirvana, sem os aborrecedores conflitos terrenos. Todos (a princípio) aceitariam a doutrina pregada diariamente, não discutiriam com a autoridade diretamente enviada pelos deuses e se resignariam com o pouco, mas suficiente, que possuíssem. A idéia de ciclo lhes era lugar comum, apesar de estar sob a alcunha de destino (dharma ou karma). Sem dúvida foi uma práxis útil, pois certas culturas perduraram e se tornaram milenares.

Não estou querendo dizer que esse foi o único motivo das vitórias sucessivas, após tormentas e invasões regulares; desafios que todo vivente enfrenta, como que para provar que merece estar vivo, favorecendo o aperfeiçoamento genético. Porém, é difícil negar sua importância à resistência ante a entropia. Também não quero pregar a estratégia quase sempre bem sucedida de repressão social através de manipulação psicológica em prol de líderes com objetivos nem um pouco democráticos. Por mais que os fins possam justificar os meios, atualmente toda decisão autoritária e impositiva gera focos de revolta, maiores ou menores, eficazes ou frouxos. Cada cultura que defenda seus interesses e prossiga com seus valores, apesar da globalização tender a homogeneizá-los pela primazia da economia, do capital e do consumo. Contudo, vejo que apontar a um caminho único, facilmente identificável e com promessas de felicidade seduz os incautos e necessitados (a maioria) por um pedaço de madeira qualquer para não se afogarem nos oceanos niilistas que cobrem igualmente quase todo o planeta. Essas garantias de satisfação imediata são infalíveis, apesar de danosas para quem um dia se ver marionete. Todavia, uns pensam que viver bem é não se perturbar e outros, que é realizar as aspirações. Em ambos os casos é preciso haver paciência.

O que fazer doravante com essas vontades? Toda ação interfere no ambiente e na sociedade, podendo nesta o fato se dar de forma indireta. É angustiante tomar ciência do potencial de corrosão e destruição que cada um carrega. Isto é, o outro deve ser levado em conta; a ética do libertário é a mesma do tirano, com diferença de escala apenas. Ignorar isso é tentar se imiscuir da culpa de ser mais um ferrando com o mundo já tão judiado. Olhem eles aí, os judeus, que tanto entendem de reprimir as vontades em prol de um deus corporativista e severo com os infiéis, bastante idêntico aos seus eternos rivais muçulmanos. Nessa briga de Jeová contra Alá, a humanidade é derrotada, como sempre aconteceu – os gregos e os nórdicos bem o sabem. Viver com os olhos voltados para o céu, se não for astrônomo com assistentes vigiando as condições dos equipamentos, é correr o risco de ser picado por uma víbora matreira e vil. A evolução não diz que os mais fortes e inteligentes vingam, esse privilégio é dos mais aptos, quase sempre os mais baixos e sacanas. O ser humano, por sorte ou não, está num nível de poder escapar em boa medida dessa grande lei. Os memes falam mais alto que os genes, contudo quase toda moral existente nos grandes povos privilegiou o comportamento de rebanho domado, ou seja, ignóbil – é o preço de ser animal social. Por outro lado, a visão progressista defende uma consistência cultural baseada tanto em idéias quanto em atitudes, com a devida reflexão posterior para ajustar o melhor rumo, sob pena do povo se tornar afetado ou bruto. A problemática está em saber quem terá mais poder: os progressistas ou os conservadores?

Fiz o primeiro passo, que consistiu em compreender, ainda que ligeiramente, o ponto de vista de cima, isto é, o da estrutura: as instituições precisam de alguma maneira seduzir, manipular ou conduzir (ou outro termo mais adequado) seus membros numa direção pra atingir objetivos e valores pré-traçados. Hobbes, Maquiavel, Marx e Weber talvez sejam os pensadores mais notáveis dessa perspectiva. Sem essa arbitrariedade reguladora haveria o risco de anarquia e de barco à deriva, pois confiar nos homens, por si só conseguindo uma convivência pacífica por meio de acordos tácitos e isentos de tabus seria acreditar num nível divino da “natureza humana”, que sabemos ser deveras passional e selvagem. E mesmo a razão não me parece suficiente a evitar o caos e a barbárie, pois sem questionamentos éticos e políticos (sempre relativos), ela é estéril e mecânica, capaz de cometer atrocidades, como a ciência nazista ou soviética, ou ainda segundo futuros distópicos narrados por filmes e livros de ficção científica. Agora quero abordar a visão de baixo, do humano ordinário, que introjeta essas ordens de cima e tenta repassá-las, mas que inevitavelmente se vê diante de dilemas por causa de sua vontade que vai de encontro aos deveres da boa convivência.

O homem não é um elefante que observa tudo de cima e anda devagar, a cuidar de seus parentes e tentando ser discreto, apesar de sua grandiosidade. Nós estamos mais para pavões, papagaios, raposas, cordeiros, lobos, alces, macacos, abutres, ratos e gralhas. Gostamos de aparecer, demonstrar mais importância do que temos, falar sem muita capacidade para tanto e se for preciso voar em cima das sobras. Não é muito fácil convencer as pessoas de que elas são fracas e pequenas sem apelar para a subserviência a um senhor qualquer, fantasioso ou sanguíneo. Apesar dessa pequenez humana há muito que ser feito, o existencialismo tratou muito bem sobre esse tema. Menos pretensão, metafísica e arrogância e mais senso prático. A ciência já nos situou no mundo, restando às filosofias explicar sobre as inúmeras possibilidades de viver melhor e mais livre.

Entre as filosofias que tratam sobre a vontade posso citar estas: budismo, estoicismo, hedonismo, epicurismo e cristianismo. É claro que há muitas outras, mas vou me ater a essas. O budismo, o estoicismo e o cristianismo, grosso modo, compartilham a idéia de que é preciso controlar ferrenhamente os desejos, a ponto de evitar que eles nasçam, por mais difícil que isso possa parecer. Os desejos nos afastariam do que é realmente importante (as virtudes) e nos levariam ao mau caminho (dor e existência infeliz, aqui ou além). Essa defesa do desapego e do asceticismo se torna cada vez mais difícil em um mundo que bombardeia os transeuntes de informações, banais ou nobres, e estimula-os para consumirem. O hedonismo defende o prazer acima de tudo, único bem disposto de sentido, num voluntarismo exacerbado que obviamente privilegiaria os mais fortes e protegidos (piratas ou reis), pois cada passo dado em direção à liberdade, ou libertinagem, é um passo atrás à segurança (a sua ou a dos outros). Nesse caso está mais alinhado com a ideologia capitalista. Já o epicurismo seria um meio termo entre a retidão moral e a devassidão. Ele aceita o prazer como um bem, pois o homem é dotado de várias sensações que exigem afagos, no entanto vincula esse prazer à tranqüilidade do espírito, uma vez que satisfeitos os desejos (rigorosamente selecionados) a pessoa se tornaria mais feliz e virtuosa, instruindo demais companheiros a segui-la.

Em suma, é difícil ficar indiferente perante os fatos da vida, e mesmo que se consiga não há garantia de vida feliz, a menos que haja uma convicção de que a única felicidade possível é aquela quando se consegue não desejar (ataraxia). Também não há garantias de satisfação plena com desejos insistentemente renascidos e penosamente realizados, a música do Rolling Stones toca até hoje, a comprovar que a maioria concorda que não dá para obter satisfação plena, uma vez que o tédio se instala e o vício se presta a dominar o sujeito quando ele menos espera. É um jogo sem vencedores, há no máximo consciência limpa por haver coerência em seguir princípios e normas. Os maquiavélicos riem com os objetivos alcançados a qualquer custo, mas com a condição de desconhecerem os estragos lá do caminho. Já os beatos e monges sorriem sem mostrar os dentes, jurando contentamento ascético. Questão universal e antiga, respostas relativas e contingentes.

Eu queria não passar vontade, mas passo. Talvez a virtualidade conquiste tantos adeptos ansiosos justamente pelo alívio imediato. Eles descarregam suas frustrações, preenchem a carência com atenção superficial e controlam o momento, ignorando as conseqüências, até porque na hora elas são de fato imperceptíveis. Mas tudo volta, os orientais sabem disso há muito tempo. O mundo dá voltas. As coisas passam, mas alguma substância permanece; metamorfoses ocultam o caráter original. Tudo tem um preço, é bom se conscientizar dos possíveis efeitos de cada ação. Assim como a ignorância é uma bênção: os olhos não veem, o coração não sente e o sono é longo e contínuo.
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P.S.: Ando um pouco desanimado para escrever essas coisas frívolas e de parco embasamento e resultado prático. Venialidades que muitos outros já escreveram, enquanto eu simplesmente repasso ao vento ou aos bytes, ignorando as origens e os leitores. Porém, se eu não escrevesse seria ainda pior, pois acho melhor ser um incompetente do que um incapaz ou inativo.

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