Você reclama ou
reclamou de várias coisas, mas agora se vê aí, limitado por suas escolhas e
incapaz de reclamar de si mesmo, pois julga sempre ser consciente e responsável
pelo que faz. Você então lê sobre o poder do inconsciente e sobre a consciência
e o eu como mitos construídos para evitar a loucura e identificar alguém para
honrar ou punir. Você então percebe o abismo diante de si e gostaria de se
jogar lá dentro, mas sua educação burocrática o impede de fazer escolhas intempestivas
e abusivas. Portanto você se tornou insensível às emoções que antes, via
lampejos, cativaram-lhe, mesmo a indignação pelos erros alheios (agora
facilmente tolerados), e tudo por causa das repetições, essa praga que martela
ao homem os fatos do mundo e o sentido da vida, como se o hábito fosse a maior
necessidade e causa de prostração que pode haver. O hábito lhe habita e não há
nada que você possa fazer, a não ser andar pelado pela rua, mas isso seria um
crime, além de alvo de chacota, por maior que seja seu pinto e por mais belo que
seja seu conteúdo. Você não admite ouvir sons que deixam os outros em transe,
os jovens especialmente, porque isso é se entregar ao império dos sentidos e do
efêmero, como se as suas manias não tivessem a mesma intenção de alucinar e ao
mesmo tempo sentir seu firme papel no mundo. Ou seja, todos querem ter controle
sobre a própria vida, a diferença é que você não admite que esse controle se dê
por fatores externos, como se os objetos que você manipula não o tornassem
escravo de alguma forma. Você apenas permite em sua casa sons que lhe remetem
às antigas e corriqueiras fases de raiva e frustração, prolongando esse estágio
de insatisfação indefinidamente, exceto quando dá brecha às musicas que não
combinam com sua personalidade, mas teimoso que é, recusa-se a dança-las.
Você fica adiando
seus desejos, suas vontades, suas obrigações, como se num dia afortunado fosse
efetivamente realiza-los, de forma intensa e satisfatória, como se ao
finalizá-los lá na frente não surgissem outros anseios e imperativos que sugam
parte desse prazer que sempre escapa pelo corpo, até mesmo nessa
procrastinação, tornada hábito pela promessa de prazer, tão irrisória, mas que
lhe convence. Você não quer pagar pra ver sua incompetência, então prefere
manter o potencial obscuro de grandes feitos, como se as ideias não realizadas
fossem mais do que ilusões e metafísicas, como sempre inventadas para fazer o
homem se sentir superior aos demais (humanos ou não, desde que abaixo dos
deuses). Você finge que toca, que escreve e que pensa, só para não se sentir
incapaz, mas como seus parentes lhe elogiam, você internaliza essa competência
amadora, temendo o fracasso público quando se tornar profissional, pois os
mimos dos interessados pouco valem, então você não ultrapassa a linha do
amadorismo.
Você acumula e
acumula o que já usufruiu, para algum uso posterior, a fim de repetir o regozijo
ou simplesmente captar trechos que marcaram sua vivência, porém raramente
usufruirá desse material estocado na dispensa de seu recinto, e mesmo que venha
a fruir, jamais será a mesma coisa, mas você alimenta essa esperança de que o
prazer nunca irá lhe faltar, por mais ferrado que esteja. Talvez só o desespero
seja capaz de motivar esse gozo intenso de tudo o que é promessa de prazer,
seja nas coisas que já foram usufruídas, seja nas que você guardou para esses
momentos de pânico. Talvez falte a você reconhecer que sua situação é precária,
o suficiente para desesperar-se continuamente, porém isso seria andar à beira
da insensatez, algo angustiante demais para ser suportado em paralelo a outras
demandas, tão exigente de equilíbrio e frieza de espírito. Você quer A junto
com B, por mais incongruentes que sejam, ampliando seu horizonte e reduzindo
seu foco, numa fórmula eficaz para a melancolia, ao gerar inúmeras expectativas
e frustrar a maioria, sem conseguir se contentar com as realizadas, pois
inferiores às deixadas para trás. E mesmo assim você se acha alguma coisa, pois
conseguiu mais que a maioria, e sabe que alguns lhe invejam; compara as vidas e
torce para que elas não se cruzem, no máximo entrecruza olhares; esse ouro de
tolo não é o final de sua mísera existência, então você traça objetivos, para
cumpri-los pela metade.
Você não percebe
que tudo fica para trás, mas que de alguma forma marca o caminho, como pegadas
para algum perito assalariado atestar que você passou por ali, porém isso só
interessa aos forenses, sempre à espreita para ferrá-lo no caso de se tornar
bandido ou por ter feito alguma cagada séria na vida. Parece que você gostaria
de congelar o tempo e esfregar na cara dos transeuntes, tão apressados e
distraídos, sobre a grandiosidade de seus atos, como se eles não quisessem
fazer a mesma coisa, tanto que entopem a internet e a televisão com coisas
fugazes e banais, comprovando que todo mundo quer um espaço no mundo, todavia só
as 24 horas do dia são capazes de limitar esse espaço cada vez mais apertado. “O
que realmente fica dos meus atos nesse mundo natural que parece tão estranho ao
projetado em nossa juventude?”, você pergunta. Eu não sei como lhe responder,
somente asseguro que é assim mesmo, sufocante e cheio de oportunidades, que
permite alegrias aos que não querem mais do que não podem ter. “Eu quero sempre
mais que ontem, mais que hoje, mais que amanhã”, você confirma a famosa música
dos Rolling Stones e impede sua satisfação nessa passagem única por este
fantástico e pequeno planeta.
Você se esquece
de quase tudo o que viu, sentiu e falou, tendo sempre a impressão de que não
viveu, mas saiba que a memória conservada não consegue perdoar, ela rumina
tanto os fatos e ideias que abre as portas para o rancor lá se instalar, pois a
mente tem esse costume de mais se incomodar com um dado ruim do que se jubilar
com um bom, o regozijo se apresenta quando os bons superam os ruins, desde que
não haja uma catástrofe aí no meio. Você jura que quer ser feliz, contudo fica
inventando subterfúgios e se ocupando de obrigações que sua razão tirana
sussurra como as maiores fontes de justiça, nascendo assim a moral que
diferencia o certo do errado, mas que parece muito oposta à vida artística e
autêntica, onde efetivamente está a fonte de felicidade. Você então trava e
adia o sorriso em seu rosto para um momento oportuno, quando as coisas se
encaixarão e tudo fará sentido, como num passe de mágica. Mas você sabe que isso
não existe.
Agora volta a
reclamar das coisas, dessa vez de si, indignado com a própria pequenez, incapaz
de transcender, com os pés fincados na terra e a cabeça boiando no mar ou
flutuando nas nuvens, sempre atrás de algo que na verdade está logo atrás, na
nuca ou na orelha. Então parece ouvir algum chamado, apenas não está pronto
para senti-lo em toda a extensão de sinfonia primorosa. Mas é um começo: melhor
um vislumbre do paraíso do que uma temporada no inferno, porém sem essa segunda
não haveria a primeira – mero efeito de comparação.
P.S.: Às vezes é preciso o anúncio de um peido para fazer florescer um texto.
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