3 de abril de 2013

O Bizarro Cindido


Resistir às tentações ou não resistir, cedendo aos comandos do corpo? Quando é que os olhos, a boca e os ouvidos ficam acima da razão? Amor é ética, mais que senso de estética, apesar deste ser o gatilho das relações que, depois da fase da paixão, inaugurará o algo mais; para alguns é transcendental, mas para muitos, nem um pouco. Logo, a razão auxilia no amor, mais do que o inverso, pois este tem no homem efeito quase nulo, pois seria abdicar das vontades tiranas – nada mais ilógico. Ou seja, a promiscuidade é algo bastante racional? Não deixa de ser, desde que os impulsos estejam sob as tramas em prol de uma cadeia de conquistas – ah, essa autoafirmação.

Cadeias, correntes, elos, vícios, ciclos, manias. Gire, rode, circule, incite, consuma. As pessoas juram que estão sendo autênticas, se ao menos percebessem a dose de manipulação que aturam elas seriam menos hipócritas. Talvez de pouco adiantasse, pois as máscaras são sedutoras e todos as vestem, senão a sociedade se digladiaria interminavelmente; o amor-próprio suporta apenas certa dose de verdade (em respeito aos vícios), após esse limite a sanidade se perde. E a guerra é sintoma de orgulho ferido além do suportável, basta os líderes aglutinarem meia dúzia de insatisfeitos para fazer disparar o primeiro canhão da estupidez. Quanto mais intensa é a ação, maior é o recalque acumulado. A ação humana é impulsionada por paixões que entram e de alguma forma precisam sair.

Mas o contrato social, o famoso pacto entre os cidadãos cansados do medo da morte, instaura o controle sobre cada membro. Sem poder agir conforme os desejos, entra em pauta a metafísica, a crença no algo mais, seja religião, nação ou ideologia. Passada essa histeria coletiva, a maioria ainda reluta em descrer nelas, enquanto muitos aceitam a ausência de sentido nas coisas. Percebem que não adianta tentar implementar seus desejos, há muitos interesses em jogo e o seu é somente mais um entre a multidão de sequiosos. Então o capitalismo chega com tudo, como ilusória solução ao niilismo crescente, diz para seus rebentos consumirem e se aperfeiçoa a ponto de não deixa-los descontentes sem novidades interessantes a cada estação. É a produtividade de um lado e a neofilia de outro. O prazer é repetido, o hedonismo se instaura, mas a satisfação passa.

Aspirações podem ser reprimidas em prol de um bem maior, que então se empilhariam como pólvora velha em dinamite esquecida, bastando um pequeno pavio ser aceso para detoná-la. Antes disso, neuroses irromperiam para amansar a besta interna, que deve se regozijar de tempos em tempos. Conversar com máquinas às vezes resolve, pois virtualidades são mecanismos artificiais do cérebro, projetando uma realidade adaptada à fome que em alguma de suas sinuosidades desperta e dispara as sinapses, mas a saciedade é efêmera e fortalece o sujeito. As bombas simplesmente adiam sua explosão.

Aparece a culpa, o senso cristão de que algo está errado. Pecados mortais precisam ser redimidos, do contrário (novamente), a sanidade seria perdida. Autoflagelação, possessão ou depressão, sintomas já corriqueiros num ambiente que os estimulam, mas nunca admite. Não geraria dinheiro, esse mundo precisa hodiernamente de doentes para prosperar, claro que a maioria escorando um no outro, torcendo para não ser contaminada com alguma chaga mortal, e uns malditos bamburrando e sorrindo. Ciclicamente esse modelo se desgasta e entra em crise, porém não há outra alternativa; então outra malandragem, outros slogans, se reinventam, jurando que gastar é bom, é história, mesmo que seja o fim da história. Ah, dali pra frente é relaxar e gozar, o resto está resolvido.

Tolices são compartilhadas e aplacam nervosismos que outrora fizeram surgir gangues em bairros periféricos – viva os games e o pornô. Sentir-se bem é um imperativo, melhor que seja sem prejudicar um desavisado, ainda que o sujeito satisfeito seja um merda: cada vez mais sua mente derrete, irremediavelmente sua personalidade se compromete e seu coração não entra em jogo, jamais compete. O problema é quando a maioria for assim (já é?): a agir na realidade como no mundo virtual. Sem oponentes fica fácil vencer e conquistar. Isso tudo é se aceitar ou um autoerotismo? As pessoas só postam sorrisos, nunca suas verrugas, anseiam por controlar, pois de alguma forma sabem que serão controladas, querem ao menos escolher seu capataz. Que seja na base da intimidação, assim a tortura será menor, e talvez até mútua! Quem não se considera, o outro desconsidera.

O mais importante é não ser deixado de fora, nada pior que a angústia do ostracismo. É melhor a fofoca correr solta do que ninguém lhe notar. A responsabilidade recairá sobre cada ser medíocre, sorte daqueles que jogam a culpa nos outros, aliviam-se. Os que engolem seco e se calam, travam, e travados permanecem. Diante da forquilha, do caminho bifurcado, não conseguem se decidir, quem sabe delegarão sua escolha à manada que vem logo atrás e certamente os empurrarão para a direita ou para a esquerda, para nunca mais poderem escolher o lado de lá. Ao menos experimentarão e terão um dia uma nova chance de ir para A ou B com menos hesitação.

Os convictos, que não se permitem hesitar, causam muita inveja, mesmo que um olhar atento revele a inconsistência de suas convicções, como um instinto que só quer passar por cima do que surge à frente dos chifres tresloucados. Mas será mesmo imprescindível essa legitimação da razão? Não será mais útil ouvir os apelos dos hormônios e dos sentimentos que urgem independentemente de métodos e gélidos esquemas? Todos têm as suas carências, presumindo-se que ninguém é uma máquina que apenas cumpre ordens de serviço. Preencher essas carências com o que parecer urgente no momento é como a maioria age, eticamente ou não.

A ética libertina é um desses casos. Ouvem-se os apelos do tesão e danem-se as incongruências ou as consequências danosas aos edifícios da vivência, como reputação, família, posses, instituições e órgãos. Há sempre um medo latente de ser taxado de safado, ímpio, larápio e sacana, porém isso é fichinha contra os hormônios que entorpecem a mente e tornam a visão turva. Os libertinos fizeram a seguinte pergunta: a dúvida da traição mais freia ou acelera a própria infidelidade? E concluíram que é melhor se livrar desses dilemas, abraçando os acasos da vida. Viver é festar.

Eles enfrentam a dura batalha contra a moral e os bons costumes, além da batalha interna de ter de esquecer tudo o que aprendeu até então, para efetivar as fantasias mais bizarras. Quando uma minoria choca os caretas da sociedade burocrática, os moralistas logo se aprumam para combatê-los. Ser subversivo é difícil, mesmo entre quatro paredes. É impossível haver mutualismo num caso desses, mesmo que a intenção seja boa (de haver comensalismo), pois o orgulho de quem não participa interpreta o fato como uma sacanagem de parasitas sociais que tanto corroem os alicerces da tradição de verniz consumido. Sobra cara-de-pau para dizer que nunca haveria de cometer tais libidinagens e falta a modéstia de permitir que outros contemplem por aí essa beleza de deitar.

Nem todas são humildes em admitir que não são rainhas, contudo ainda podem falar, ainda que com uma voz embargada, o que parece insuficiente. E nem todos são pacientes a fim de suportar as histerias jorradas por princesas sem mais o afã de serem coroadas, e ainda sorrirem, para eles seria suficiente. Refúgios contornam as frustrações. Abstrações auxiliam na sublimação. A falta de sentido prossegue. Pequenas vitórias enganam a autoestima. É essa a bizarrice de sentir-se cindido.

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