I
A racionalidade esquematiza. O
espírito de geômetra compreende o mundo através de estruturas. Porém, esse
mundo é feito de eventos, não de abstrações. Hume nos ensinou que qualquer que
seja a expectativa (por mais racionalmente elaborada que seja), ela será apenas
fruto do hábito. Nas dissonâncias há mais pureza que nos discursos lineares. É
impossível ter certeza de que algo vai acontecer simplesmente porque sempre
aconteceu assim. Não há argumento ou expressão matemática que conteste isso. Atualizações
são constantes e transformações de vez em quando ocorrem. Kant e os
positivistas tentaram contornar essa verdade ingrata, mas a postura cética
humiana é terrível, invencível (ao menos em meu ponto de vista). Que cada um aprenda
a conviver com o imprevisível.
Esse foi o primeiro ponto (a razão
leva ao ceticismo). Ciente ou não desse fato, todo mundo precisa tocar sua vidinha.
No caso de se aceitar esse inconveniente (não ter certeza do que acontecerá em
qualquer situação) a angústia emergirá, o estômago dará sinais de aperto e o
coração dará sinais de arritmia. Três saídas eu vislumbro: viver conforme o
hábito, como se o ceticismo não existisse (como a maioria procede); tentar
fazer tudo com base em certezas (risco mínimo); ou dar um salto de fé (uma
aposta), ou seja, a cada momento de escolher entre ‘para lá ou para cá’, optar
pelo que parece melhor.
Este é o segundo ponto: para
vencer a crise gerada pelo ceticismo esse salto de fé deve ser realizado
constantemente. Essa terceira via parece ser a mais adequada, pois é a que melhor
une razão e emoção. Viver é uma arte, que se expressa soltando os bichos que
desarranjam a psique. Naturalmente queremos encontrar sentido no mundo, se nossa
imaginação for tolhida de voar, restaremos cindidos. É preciso saber: dos percalços
que se pode passar pela vida, da insipidez de uma vida sem riscos e da
esquizofrenia potencializada por repressões customizadas. Não se pautar exclusivamente
nem pela razão nem pelos sentimentos. Agir artisticamente, isto é, conciliar
ambos, criando valores que orgulham. Em suma, quando você se deparar com uma
incerteza, confie em sua intuição, um pouco de esperança não faz mal a ninguém –
retira cascas e lubrifica juntas. Ah, e não chore por más escolhas. Se você for
inteligente aprenderá com elas, a vida é uma escola.
Este é o terceiro e último ponto:
a sequência de escolhas é uma escola frequentada por apenas uma pessoa, que é
tanto aluna como professora. Porém, quem é aluno aplicado? Quem é bom aluno
independentemente de notas, bolsas e elogios? Enquanto se esperar motivações e aprovações
externas esse aluno jamais fará jus a seu diploma. O pior fujão é aquele que
além de declinar de seus compromissos usa algumas vitórias antigas como garantia
a sua prepotência. Tentar ser coerente é uma harmonia mais sólida que ganhar as
coisas no grito. Um é ciente das próprias limitações e se esforça para
superá-las, enquanto o outro não se acha limitado e/ou se acha acima do
próximo. Saber escolher é saber enfrentar qualquer situação.
II
A atual sociedade estimula
escolhas autônomas, ou seja, autênticas? Não me parece. Todo indivíduo carrega
em si um potencial de realizações, a fim de alcançar uma vida feliz. Mas como
ele se encontra? Decrépito, enclausurado, algemado, espelhando contradições;
faz o que não gostaria de fazer, concorda com o que não gostaria de anuir. Aprendeu
as equações e deveria usá-las, mas é incapaz de aplicá-las no labirinto onde se
encontra. E por quê? Nunca lhe ensinaram a inventar soluções, mas a aguardar
por diretrizes. Uma vez solitário
soltará seu grito e terá como resposta apenas o eco da própria voz, atormentada
e angustiada.
Em cima do palco há muita luz e
slogans tremeluzentes – tática para camuflar a masmorra cênica. Aturdido entre tantos
chamarizes é provável que esse sujeito se sujeite ao esquema. Relutará em
duvidar de si, neuroticamente ele projetará a culpa nos outros. Creio que havia
uma alma poética dentro dele; doses de raciocínio lógico, crítico e matemático,
aliadas a porções de um espírito de finesse que atente aos detalhes do cotidiano
que teimam em escapar dos olhos do burocrata calculador, fariam muito bem à
intenção artística. Se isso bastaria eu não sei, mas o deixaria mais esperto – também
mais sábio?
Sujeitado, pensará que os
artistas glamurizados são o melhor da arte, a referência do momento. Contudo,
eles sequer são artistas, são produtos da indústria cultural, como os âncoras
de telejornais e as modelos de passarela. Tenho que discordar desses
comerciantes porque penso que toda arte deveria ser um sopro de contestação ao
sistema. O discurso filosófico poderia dar conta dessa crítica, mas não expressa
a subjetividade da pessoa em desconforto, nem serve como aposta do que é
ligeiramente racional. Sua arte não precisa ser engajada, se for um chiste, um
choro desesperado ou uma reles provocação servirá.
Essa aposta pode ser chamada de pensamento
sugestivo. É o tipo de saber que arrisca porque do jeito que as coisas estão
não está satisfazendo o descontente. O mundo caminha a partir dessas
tentativas. Todos têm intenções, o problema é que para os sujeitos
administrados suas intenções estarão coadunadas com as do sistema. Sendo assim,
a possibilidade de arte neles restará nula. O senso de prioridade os levou ao
comodismo do pertencimento.
O Sistema já está cheio de
defensores e agentes de sua moral hegemônica. Ele não precisa ter como aliados os
artistas, que são em minha opinião potencialmente subversivos. Se a pessoa for
defensora do status quo nada terá a acrescentar
ao mundo da arte, que fique calado nesse ponto. Ela continuará falando, como
repetidora do que foi ensinada a valorizar e a preservar. Seus pensamentos e
suas emoções foram forjados, seu futuro está decidido, seu projeto foi
elaborado em bloco com o de vários outros hipnotizados. Não experimentará a
crise. Atrás de máscaras, viverá como se não houvesse solução melhor.
Por outro lado, se você for
enfrentar essa crise, e desejar superá-la, dê o seu salto de fé. Depois retrate
isso em alguma forma de arte. O mundo da arte irá lhe agradecer. E suspeito que
o do conhecimento também.
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