Para mim – como se nota desde o início, este texto é
bastante pessoal –, a melhor definição de louco é esta: aquela pessoa que vive
em apenas um ou dois tempos mentais. Se uma pessoa normal tem noção de passado,
presente e futuro – mesmo que só exista de fato o presente (vide a noção de
tempo em Santo Agostinho para maiores esclarecimentos) -, quem não possui essa
tríade está biruta. Porém, taxamos de louco uma infinidade de atitudes
peculiares que vão além do âmbito espaço-tempo – estou certo que você deve ter
pensado em inúmeros exemplos. A teoria psicanalítica separou em três os casos
clínicos que dão base às demais psicopatologias, vulgo doido-varrido: neuroses,
psicoses e perversões. O psicótico gera o esquizofrênico, que é tido como
arquétipo de maluco, por ter alucinações sem parar, mas, para mim, doido-de-pedra mesmo é o neurótico. Contudo, nossa
sociedade privilegia o neurótico, o que bagunça a definição de normalidade.
Digo privilegia porque aparentemente ele não incomoda, pelo contrário, é até
bom que ele exista, preso em detalhes e minúcias ele acaba consumindo de tudo,
remédios, álcool em gel, cigarro, fitinhas protetoras e outros badulaques, ou
seja, ele movimenta a economia e camufla a corrosão social.
Vejam o que consta sobre o tema no Wikipedia: “Perversão
vem do latim pervertere, que corresponde o ato ou efeito de perverter,
tornar-se perverso, corromper, desmoralizar, depravar, alterar. É um termo
usado para designar o desvio, por parte
de um indivíduo ou grupo, de qualquer dos comportamentos humanos considerados
normais e/ou ortodoxos para um determinado grupo social. Os conceitos de
normalidade e anormalidade, no entanto, variam no tempo e no espaço [grifão
meu], em função de várias circunstâncias.” O normal precisa ser o repetitivo, o
recalcado, o histérico, cujo arquétipo, para mim, é o burocrata. Enquanto o
psicótico tem ego em excesso e o perverso tem id em demasia, no neurótico o superego
é quem dá as cartas, o que significa favorecer valores morais, externos, superiores,
grandiosos, divinos! Sendo assim, ele não vive de fato, pois não tem
individualidade, e haveria loucura maior do que essa? Não creio. Como, segundo
Freud, “o neurótico é o negativo da perversão” – abaixo eu indicarei links que
melhor esclareçam isso aos curiosos –, o pervertido seria aquele afirma sua
vontade, querendo que as regras morais se explodam, afinal estas afirmam que
ele está degenerado. Ora, ao decadente tudo que cresce é desvio, pois quando se
está caindo até o que está parado parece estar subindo – vejam vídeos de
pára-quedistas e percebam concretamente o que estou falando.
“Ah, mas o perverso é malvado, gosta de tocar o terror e
sorrir como um maníaco canibal”. Pode até ser às vezes, mas isso é mais comum no
psicótico. É preciso também separar o termo perverso de pervertido; o primeiro
tem um sentido mais amplo e de crueldade, enquanto o segundo tem uma conotação
quase que exclusivamente sexual. É importante essa definição porque é no forte
conteúdo moral, de gênese cristã, que eu quero focar, e contestar. Exemplificando,
perverso é Hannibal Lecter e o Curinga, por outro lado, pervertido é a Joe (Ninfomaníaca) e o Marquês de Sade. Há um
infantilismo no pervertido, no sentido de sexualidade mal resolvida, e como
para ser cidadão de bem é preciso ser maduro e abandonar ideias e práticas
típicas da infância, tem-se uma demarcação de normalidade: sujeito maduro
contra o infantilizado. Até que isso faz sentido, mas qual seria o critério de
maturidade? Voltamos às neuroses: regras superiores seguidas à risca que anulam
a individualidade.
É um pouco óbvio que qualquer um evite ir para a cadeia e,
se tiver um mínimo de ética, evite também causar um dano irreversível ao
próximo. Contudo, vejo que o pervertido, com seu lado selvagem à flor da pele, tentará
não se ver tolhido de suas vontades, ainda que bizarras, sendo mais louvável
que o neurótico, pois este pensa viver bem, ainda que tolhido. Quem é forte (de
caráter) consegue driblar o pervertido, que é então visto como excêntrico e
pentelho, porém numa sociedade povoada por fracos e covardes, o pervertido se
torna uma ameaça, afinal é aquele escapa às regras. Como classificar de anormal
alguém que curte pornografia, que é voyeur ou exibicionista, que tem algum
fetiche – qualquer vaidade expressa através do vestuário já seria um fetiche,
pois a roupa se torna um objeto de prazer –, que gosta de bondage ou de um
lance sado-masô? Tudo isso faz parte de uma vida sexual saudável, o problema é
quando se torna uma compulsão, justamente porque aí vira neurose!
O
pervertido, psicanaliticamente falando, é aquele que não abre mão da premissa
universal do falo. “O sujeito de estrutura perversa mantém-se excluído do
Complexo de Édipo e da alteridade, passando a satisfazer sua libido sexual
consigo mesmo, sob caráter narcísico. Tal estrutura dá-se por meio de uma
fixação numa pulsão parcial que escapou ao
recalque [grifo meu], tornando-se uma fixação exclusiva. [...] O que ocorre
na estrutura perversa é a castração edipiana: o perverso não aceita ser
submetido às leis paternas e, em consequência, às leis e normas sociais
(SEQUEIRA, 2009).”
Ou
seja, a perversão nasce da angústia de ser devorado pela mãe (objeto de desejo
durante a fase do Complexo de Édipo) e da recusa de se ver inferiorizado, daí a
importância fundamental do falo, instrumento de poder, de combate à castração e
à frustração por não ser o sujeito dominante. “Para se tornar patológica essa
preferência deve ser de grande intensidade e exclusiva, isto é, a pessoa não se
satisfaz ou não consegue obter prazer com outras maneiras de praticar a
atividade sexual.”
Em
outras palavras, toda pessoa normal é pervertida/tarada, mas só as doentes
sentem prazer exclusivamente quando exercem essa taradeza, o que realmente é
difícil de entender.
E na falta de falo? Então surge o fetiche, esse símbolo-mor
da perversão. O pervertido vê falos até mesmo onde não há um, daí sua tendência
à homossexualidade – daí também sua alcunha deturpada pelo cristianismo, grande
inimigo da sodomia. A cobra é um grande exemplo disso. Os cristãos fizeram da
serpente o símbolo-mor do pecado e a companheira do diabo. Ela rasteja,
evocando nossa animalidade suja, ela dá o bote, evocando a trairagem, ela solta
um líquido venenoso, evocando o esperma, e, além de tudo, ela é fálica. Seja
cobra, seja aranha, o bicho vai pegar, o côro vai comer. Fico com o que diziam
as Velhas (Virgens): “e o que é que a gente quer? A gente quer foder”, “tudo
que a gente faz é pra ver se come alguém”. Ah, mas as máscaras e as etiquetas
sociais querem que não digamos essas frases simplórias, até que elas restem
reprimidas, como bons cristãos que deveríamos transparecer aos outros...
É interessante que a sociedade da informação gera estímulos
e tentações que acabam aumentando o desejo das pessoas em geral, contudo esse
excesso de desejo não pode ser plenamente realizado, seja por restrições
temporais e espaciais, seja por admoestações morais e paternais. Ora, vontade é
instinto, que é voltar ao período pré-civilizatório, que ainda está forte em
nosso ser, portanto, ser perverso é privilegiar a primeira natureza em
detrimento da segunda (a cultura). O melhor texto de Freud, para mim, é Mal-estar da Civilização, que trata
justamente disso, e a minha conclusão é que esse conflito (indivíduo e
sociedade) será eterno, enquanto houver ser humano. Sendo assim, toda tentativa
de controlar a expressão de instintos é uma violência: ou a pessoa aceita
(recalcada) ou se revolta (perversa) ou sublima (desvia a ação) ou enlouquece
de vez. É um pouco óbvio que sublimar parece ser a melhor opção, como costumo
proceder, mas entendo perfeitamente os que são teimosos e birrentos.
Eis a conclusão, sigam meu pensamento lógico: toda pessoa
normal carrega pulsões de vida e de morte (
Eros
& Thanatos), o neurótico quer de toda forma suprimir a segunda e acaba
por sufocar a primeira, enquanto o perverso quer ver o circo pegando fogo, com vida
e morte duelando e ressuscitando em cada ciclo! E qual é o melhor palco para
exercer perversões, aniquilar vidas, gerar prazer e retomar a sede do “quero
mais”? Elementar, meu caro Watson, o sexo. O pervertido não consegue aceitar a
pasmaceira da vida comum, vivida pela metade, ele quer ser o meio, a fonte de
mais prazer, de continuidade e elevação da vontade de potência. Ele admira a
força que emana de si, em especial a do baixo-ventre. Ele não tem vergonha de
repetir a si mesmo “eu quero foder”, talvez se envergonhe com a frase
pronunciada diante de uma maioria que não gosta mais dessa proposição
fundamental da natureza humana. Ao contrário do psicótico, a realidade é
aceita, mas ela não o completa, e para tanto ele ouve o clamor do instinto e se
recusa a seguir ordens sociais, essa caretice sempre à espreita a fim de domar os
instintos do homem, com exceção ao de conservação. Por fim,
para mim, viver é desejar, arriscando foder
(e se foder, por que não?), evitar isso são vis neuroses.
P.P.S.: É comum colocarem uma citação contundente no
preâmbulo, mas como eu sou do contra, coloco-a no fim:
“Nós nos batemos contra o medo de viver, contra o
desejo de pisar fora da corrente; agora podemos descobrir que a doença da razão
era puramente uma tentativa de fugir da vida. O homem, congelado como uma
pedra, na torrencial corrente da vida, vê, como aquele famoso príncipe hindu, a
morte esperando por ele. Então, ele sai da vida. Se viver significa morrer, ele
prefere morrer. Ele escolhe a morte na vida. Escapa da inevitabilidade da morte
adentrando a paralisia da morte artificial. Libertamos ele de sua paralisia,
mas somos incapazes de impedir sua morte; nenhum médico pode fazer isso. Ao
ensiná-lo a viver novamente, ensinamos a ele a mover-se em direção a morte; nós
o ensinamos a viver, entretanto, cada passo que ele dá, o leva mais perto da
morte.”- F. Rosenzweig, Das Büchlein vom gesunden und kranken Menschenverstand.