12 de setembro de 2014

A perversão sob um viés psicanalítico (e pessoal)



              Para mim – como se nota desde o início, este texto é bastante pessoal –, a melhor definição de louco é esta: aquela pessoa que vive em apenas um ou dois tempos mentais. Se uma pessoa normal tem noção de passado, presente e futuro – mesmo que só exista de fato o presente (vide a noção de tempo em Santo Agostinho para maiores esclarecimentos) -, quem não possui essa tríade está biruta. Porém, taxamos de louco uma infinidade de atitudes peculiares que vão além do âmbito espaço-tempo – estou certo que você deve ter pensado em inúmeros exemplos. A teoria psicanalítica separou em três os casos clínicos que dão base às demais psicopatologias, vulgo doido-varrido: neuroses, psicoses e perversões. O psicótico gera o esquizofrênico, que é tido como arquétipo de maluco, por ter alucinações sem parar, mas, para mim, doido-de-pedra mesmo é o neurótico. Contudo, nossa sociedade privilegia o neurótico, o que bagunça a definição de normalidade. Digo privilegia porque aparentemente ele não incomoda, pelo contrário, é até bom que ele exista, preso em detalhes e minúcias ele acaba consumindo de tudo, remédios, álcool em gel, cigarro, fitinhas protetoras e outros badulaques, ou seja, ele movimenta a economia e camufla a corrosão social.
 Vejam o que consta sobre o tema no Wikipedia: “Perversão vem do latim pervertere, que corresponde o ato ou efeito de perverter, tornar-se perverso, corromper, desmoralizar, depravar, alterar. É um termo usado para designar o desvio, por parte de um indivíduo ou grupo, de qualquer dos comportamentos humanos considerados normais e/ou ortodoxos para um determinado grupo social. Os conceitos de normalidade e anormalidade, no entanto, variam no tempo e no espaço [grifão meu], em função de várias circunstâncias.” O normal precisa ser o repetitivo, o recalcado, o histérico, cujo arquétipo, para mim, é o burocrata. Enquanto o psicótico tem ego em excesso e o perverso tem id em demasia, no neurótico o superego é quem dá as cartas, o que significa favorecer valores morais, externos, superiores, grandiosos, divinos! Sendo assim, ele não vive de fato, pois não tem individualidade, e haveria loucura maior do que essa? Não creio. Como, segundo Freud, “o neurótico é o negativo da perversão” – abaixo eu indicarei links que melhor esclareçam isso aos curiosos –, o pervertido seria aquele afirma sua vontade, querendo que as regras morais se explodam, afinal estas afirmam que ele está degenerado. Ora, ao decadente tudo que cresce é desvio, pois quando se está caindo até o que está parado parece estar subindo – vejam vídeos de pára-quedistas e percebam concretamente o que estou falando. 
           “Ah, mas o perverso é malvado, gosta de tocar o terror e sorrir como um maníaco canibal”. Pode até ser às vezes, mas isso é mais comum no psicótico. É preciso também separar o termo perverso de pervertido; o primeiro tem um sentido mais amplo e de crueldade, enquanto o segundo tem uma conotação quase que exclusivamente sexual. É importante essa definição porque é no forte conteúdo moral, de gênese cristã, que eu quero focar, e contestar. Exemplificando, perverso é Hannibal Lecter e o Curinga, por outro lado, pervertido é a Joe (Ninfomaníaca) e o Marquês de Sade. Há um infantilismo no pervertido, no sentido de sexualidade mal resolvida, e como para ser cidadão de bem é preciso ser maduro e abandonar ideias e práticas típicas da infância, tem-se uma demarcação de normalidade: sujeito maduro contra o infantilizado. Até que isso faz sentido, mas qual seria o critério de maturidade? Voltamos às neuroses: regras superiores seguidas à risca que anulam a individualidade.
             É um pouco óbvio que qualquer um evite ir para a cadeia e, se tiver um mínimo de ética, evite também causar um dano irreversível ao próximo. Contudo, vejo que o pervertido, com seu lado selvagem à flor da pele, tentará não se ver tolhido de suas vontades, ainda que bizarras, sendo mais louvável que o neurótico, pois este pensa viver bem, ainda que tolhido. Quem é forte (de caráter) consegue driblar o pervertido, que é então visto como excêntrico e pentelho, porém numa sociedade povoada por fracos e covardes, o pervertido se torna uma ameaça, afinal é aquele escapa às regras. Como classificar de anormal alguém que curte pornografia, que é voyeur ou exibicionista, que tem algum fetiche – qualquer vaidade expressa através do vestuário já seria um fetiche, pois a roupa se torna um objeto de prazer –, que gosta de bondage ou de um lance sado-masô? Tudo isso faz parte de uma vida sexual saudável, o problema é quando se torna uma compulsão, justamente porque aí vira neurose!
O pervertido, psicanaliticamente falando, é aquele que não abre mão da premissa universal do falo. “O sujeito de estrutura perversa mantém-se excluído do Complexo de Édipo e da alteridade, passando a satisfazer sua libido sexual consigo mesmo, sob caráter narcísico. Tal estrutura dá-se por meio de uma fixação numa pulsão parcial que escapou ao recalque [grifo meu], tornando-se uma fixação exclusiva. [...] O que ocorre na estrutura perversa é a castração edipiana: o perverso não aceita ser submetido às leis paternas e, em consequência, às leis e normas sociais (SEQUEIRA, 2009).”[1] Ou seja, a perversão nasce da angústia de ser devorado pela mãe (objeto de desejo durante a fase do Complexo de Édipo) e da recusa de se ver inferiorizado, daí a importância fundamental do falo, instrumento de poder, de combate à castração e à frustração por não ser o sujeito dominante. “Para se tornar patológica essa preferência deve ser de grande intensidade e exclusiva, isto é, a pessoa não se satisfaz ou não consegue obter prazer com outras maneiras de praticar a atividade sexual.”[2] Em outras palavras, toda pessoa normal é pervertida/tarada, mas só as doentes sentem prazer exclusivamente quando exercem essa taradeza, o que realmente é difícil de entender.
              E na falta de falo? Então surge o fetiche, esse símbolo-mor da perversão. O pervertido vê falos até mesmo onde não há um, daí sua tendência à homossexualidade – daí também sua alcunha deturpada pelo cristianismo, grande inimigo da sodomia. A cobra é um grande exemplo disso. Os cristãos fizeram da serpente o símbolo-mor do pecado e a companheira do diabo. Ela rasteja, evocando nossa animalidade suja, ela dá o bote, evocando a trairagem, ela solta um líquido venenoso, evocando o esperma, e, além de tudo, ela é fálica. Seja cobra, seja aranha, o bicho vai pegar, o côro vai comer. Fico com o que diziam as Velhas (Virgens): “e o que é que a gente quer? A gente quer foder”, “tudo que a gente faz é pra ver se come alguém”. Ah, mas as máscaras e as etiquetas sociais querem que não digamos essas frases simplórias, até que elas restem reprimidas, como bons cristãos que deveríamos transparecer aos outros...
             É interessante que a sociedade da informação gera estímulos e tentações que acabam aumentando o desejo das pessoas em geral, contudo esse excesso de desejo não pode ser plenamente realizado, seja por restrições temporais e espaciais, seja por admoestações morais e paternais. Ora, vontade é instinto, que é voltar ao período pré-civilizatório, que ainda está forte em nosso ser, portanto, ser perverso é privilegiar a primeira natureza em detrimento da segunda (a cultura). O melhor texto de Freud, para mim, é Mal-estar da Civilização, que trata justamente disso, e a minha conclusão é que esse conflito (indivíduo e sociedade) será eterno, enquanto houver ser humano. Sendo assim, toda tentativa de controlar a expressão de instintos é uma violência: ou a pessoa aceita (recalcada) ou se revolta (perversa) ou sublima (desvia a ação) ou enlouquece de vez. É um pouco óbvio que sublimar parece ser a melhor opção, como costumo proceder, mas entendo perfeitamente os que são teimosos e birrentos.
                Eis a conclusão, sigam meu pensamento lógico: toda pessoa normal carrega pulsões de vida e de morte (Eros & Thanatos), o neurótico quer de toda forma suprimir a segunda e acaba por sufocar a primeira, enquanto o perverso quer ver o circo pegando fogo, com vida e morte duelando e ressuscitando em cada ciclo! E qual é o melhor palco para exercer perversões, aniquilar vidas, gerar prazer e retomar a sede do “quero mais”? Elementar, meu caro Watson, o sexo. O pervertido não consegue aceitar a pasmaceira da vida comum, vivida pela metade, ele quer ser o meio, a fonte de mais prazer, de continuidade e elevação da vontade de potência. Ele admira a força que emana de si, em especial a do baixo-ventre. Ele não tem vergonha de repetir a si mesmo “eu quero foder”, talvez se envergonhe com a frase pronunciada diante de uma maioria que não gosta mais dessa proposição fundamental da natureza humana. Ao contrário do psicótico, a realidade é aceita, mas ela não o completa, e para tanto ele ouve o clamor do instinto e se recusa a seguir ordens sociais, essa caretice sempre à espreita a fim de domar os instintos do homem, com exceção ao de conservação. Por fim, para mim, viver é desejar, arriscando foder (e se foder, por que não?), evitar isso são vis neuroses.


P.S.: Talvez haja uma parte 2 dessa análise, mais técnica e menos pessoal. Por enquanto é isso. Além das notas de rodapé, fiquem com algumas dicas e links para leituras. Filme De olhos bem fechados (nem todos entenderam a intenção de Kubrick, veja ou reveja-o, ou leia, e.g., http://www.planocritico.com/critica-de-olhos-bem-fechados/). Para ter um resumo da teoria freudiana (buscar em especial sobre “castração”): http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=190 (há inúmeras outras referências). Há ainda este texto de psicanálise: http://www.palavraescuta.com.br/textos/introducao-ao-conceito-de-perversao . Ah, e ouçam um pouco de Velhas Virgens (os neuróticos não sabem como é bom aqui dentro).

P.P.S.: É comum colocarem uma citação contundente no preâmbulo, mas como eu sou do contra, coloco-a no fim:
“Nós nos batemos contra o medo de viver, contra o desejo de pisar fora da corrente; agora podemos descobrir que a doença da razão era puramente uma tentativa de fugir da vida. O homem, congelado como uma pedra, na torrencial corrente da vida, vê, como aquele famoso príncipe hindu, a morte esperando por ele. Então, ele sai da vida. Se viver significa morrer, ele prefere morrer. Ele escolhe a morte na vida. Escapa da inevitabilidade da morte adentrando a paralisia da morte artificial. Libertamos ele de sua paralisia, mas somos incapazes de impedir sua morte; nenhum médico pode fazer isso. Ao ensiná-lo a viver novamente, ensinamos a ele a mover-se em direção a morte; nós o ensinamos a viver, entretanto, cada passo que ele dá, o leva mais perto da morte.”- F. Rosenzweig, Das Büchlein vom gesunden und kranken Menschenverstand.

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