2 de outubro de 2015

Acaso: questão de crença ou de distribuição estatítisca?



     Acaso, a casu, aquilo que acontece sem causa. Mas se TUDO tem uma causa precedente, como ficamos? Na verdade, há três explicações ou visões diferentes de acaso, vejamos: aquilo que não possui finalidade ou o propósito vulgarmente conhecido como “Deus quis assim”; aquilo que não foi pré-determinado como faziam as parcas na mitologia grega, tecendo o destino dos homens e dos deuses, que nada podiam fazer para alterá-lo; aquilo que não tem explicação através de relações precedentes, como no nível quântico, quando não se pode prever a posição de um elétron, apesar de haver conhecimento dos dados do teste. Queremos aqui alertar para as contingências e para a ideia de Deus provedor que acaba com o acaso. Defendemos a tese de Demócrito de que o cosmos é formado por acaso e necessidade, bem como a tese maquiavélica de que a vida humana é uma soma de virtus e fortuna. Basicamente são estas as causas para o sucesso: habilidade, talento, planejamento, conhecimento, esforço, persistência, ajuda externa e aleatoriedade. Pronto, após algumas frases podemos dispensar todos os livros de auto-ajuda já escritos. Agora vamos aos detalhes.
     O surgimento do Universo é explicado (cientificamente) pelo acaso? Por que aconteceu o Big Bang? Por que existe o Ser e não antes o Nada? Ou será que o Ser é um advento do Nada? Como conhecer os episódios que antecederam a explosão que teoricamente originou o Universo? Qualquer explicação que não caia em metafísica irá simplesmente dizer: aconteceu, oscilou e explodiu – há outras teorias, é verdade, como a do eterno retorno e a do choque entre universos paralelos. Em seguida, os átomos colidiram-se casualmente e acabaram gerando estrelas, planetas, galáxias, aglomerados e etc.
     A natureza é apenas necessidade e o homem é basicamente liberdade, como pensava Kant? As leis físicas exigem que certas causas resultem em certos efeitos, logo não dá para jogar tudo na conta do acaso. Ou será que tudo é determinado e acreditar no acaso seja questão de fé? Ou justamente por não recorrer a nenhuma explicação “fora” da natureza o acaso se torna uma ideia robusta? A antinomia necessidade ou liberdade incomoda os pensadores desde o começo da filosofia. A tese do acaso é uma tentativa de resolvê-la.
        (Citamos a fé, que remete à religião, que por sua vez remete a Deus, que mais cedo ou mais tarde faz pensar no infinito. Essa palavra ou conceito é talvez o mais complexo de todos. Podemos conceber o infinito, mas não imaginá-lo. Pense um pouco sobre ele. Pensou? De verdade? Se sim, volte a este texto de filósofo amador/diletante.)

     É possível que toda tentativa de esclarecimento do acaso deixe sempre dúvidas sobre o sentido do termo. Avancemos na tentativa de dirimir possíveis dúvidas. Acaso e aleatoriedade
são a mesma coisa? Não necessariamente. Aleatoriedade é simplesmente a alternância de fenômenos sem previsão, ou pelo menos sem certeza das previsões. Se jogarmos uma moeda para cima ela cairá em cara ou coroa; há uma causa (jogar a moeda), mas a série alternada de caras e coroas é imprevisível. Se a primeira jogada der cara e repetirmos o processo é bem possível que não dê cara novamente, isso é aleatoriedade. Encontramos outros exemplos disso (mais complexos) em: decaimento radioativo de um átomo, emissão de fótons por elétrons, geração de elétrons e pósitrons a partir de raios gama, produção de partículas pelo vácuo, movimento browniano de moléculas e recepção de algum produto da indústria cultural. Será que conseguimos deixar o termo mais claro agora?
     Há um conceito antigo utilizado pelo epicurismo e depois retomado pelo filósofo Gilles Deleuze, que é o de clinamen. Ele significa um desvio mínimo da linha reta, é como se um átomo se rebelasse e por vontade própria desviasse seu percurso supostamente previsível. Isso pode ser transposto para questões humanas e se referir à liberdade e às excentricidades que os homens ocasionalmente exibem. Se o homem é livre, ele não está agindo por necessidade, será que nestes momentos ele escapa tanto ao determinismo quanto ao acaso e se aproxima de seu ser? Ou isso é metafísica barata e misticismo cristão? O livre-arbítrio é mais um conceito complexo – e mais um que não será solucionado aqui, apenas alertado.
     Com desvio do “curso normal” podemos, ainda, referirmo-nos ao “efeito borboleta”, em que um evento minúsculo e sem importância para o todo acaba tendo desdobramentos imensos e imprevisíveis naquele momento. Em retrospecto pode até ser possível localizar a causa de eventos gigantes, como tsunamis ou bolhas acionárias, contudo a distância do momento 1 para o momento 2 pode ser tão grande que só aqueles que se acham videntes e iluminados irão se arrogar sabedores do futuro. É possível haver alguém onisciente, a ponto de identificar os mínimos detalhes que se relacionam de inúmeras formas, gerando um processo complexo? Eu duvido, mas o que não falta no mundo é gente de fé, gente que quer acreditar em sabichões. Só mesmo Deus poderia ser capaz de tal poder, mas Ele talvez seja apenas um consolo metafísico para essas questões angustiantes e sem resposta. Será que essa falta de resposta explica o porquê de tanta fé? É possível, pois o cético é o excêntrico.

     Inteligência é capacidade de aprender, em especial com os próprios erros. A seleção natural teve que privilegiar os homens mais inteligentes para compensar seus corpos débeis, em relação ao restante dos animais. Criar ferramentas, organizar e manter grupos, prever caçadas e imaginar situações, entre outras habilidades, foram muito úteis à sobrevivência da nossa espécie. Sendo assim, a mente humana foi moldada para conseguir identificar causas, por mais que essas causas sejam julgamentos errôneos. E se a causa não for encontrada ou explicada foi porque algo sobrenatural interveio, assim ela infere. Contentar-se com “foi sorte ou foi azar” não parece suficiente, apesar de muitas vezes ter sido somente isso. Quer dizer que o intelecto pensa demais e conclui errado, enquanto que um apressado logo diz “isso foi lance de sorte” e está correto? Nem sempre, os acertos e erros dependem de cada situação. Certo é que a faculdade de imaginação cria mundos que facilitam a vida do homem.
     As pessoas gostam de fazer correlações entre atos e efeitos, gostam de pensar que estão no controle da situação; se não for possível exercer esse controle, gostam de pensar que há um ser divino inteiramente justo que zela pela ordem do mundo. Ora, se o mundo não é um caos, deve haver uma inteligência suprema que organiza essa balbúrdia, não é mesmo? Porém, devemos perguntar: quem disse que o mundo é harmônico e não caótico? Quem disse que há justiça (no sentido metafísico e não meramente jurídico)? Quem disse que é preciso uma inteligência onisciente e onipotente para governar as coisas? Se a sua casa não receber faxina, se seus filhos não receberem educação, se você não olhar por onde anda, ainda assim é possível que tudo no fim dê certo para você. É claro que as chances serão menores do que as de quem planeja, poupa e cuida melhor. O que importa é o sentimento de conforto e satisfação por fazer algo e saber por que deu certo ou errado – e ter a quem culpar ou louvar.
   
O homem não consegue ver o fluxo, ele só vê a aparência. O alerta de Hume de que não percebemos a causa das coisas ainda é válido. Sim, vemos a bola branca batendo na bola preta, fazendo esta se mover para perto da caçapa, no entanto não vemos o processo – e não há como ver mesmo. Outro filósofo bretão, Russell, deu um alerta próximo a esse, sobre o realismo ingênuo: o verdejar da grama, a dureza da pedra e a frieza da neve não são exatamente o que nossa experiência ou intuição dizem que sejam. Nosso intelecto é limitado pelas exigências da seleção natural, ou seja, não foi preciso que tivéssemos olfato apurado ou ouvido sensível de cachorros e lobos, nem comunicação por sonar (ecolocalização) como de golfinhos e morcegos. A tecnologia hoje é capaz de superar grande parte das dificuldades físicas. O problema é que a civilização se desenvolveu a ponto de precisar de itens e respostas que o homem nunca precisou. Aliada a isso, a imaginação amplia os anseios, daí a teimosia em crenças e ações sem cabimento e a neurose em ter domínio completo da própria vida. Tudo isso reduz a crença no papel do acaso. Exemplos? Adquirir seguros, instalar câmeras e cercas na casa, não comer carboidratos, lavar a mão a cada minuto, tomar remédios diariamente, etc. Ora, quem disse que essas precauções impedirão causas danosas a sua vida? São apenas paliativos, não garantem nada, pois um caminhão desgovernado pode atropelar você e acabar com sua vida metodicamente planejada.
     O provável não é certo e o improvável não é impossível. Jogada de Vênus é rara, mas pode acontecer – é recomendável conferir o triângulo de Pascal para descobrir sua probabilidade, além de pesquisar os termos. Tudo tende a seguir o padrão conhecido como “regressão à média”. Sabemos que fenômenos extraordinários ocorrem de tempos em tempos, como Elvis Presley, Michael Jackson, Michael Jordan, Ronaldo e Messi, contudo, se prestarmos atenção, veremos que até eles de alguma forma são esperados, apenas a data, a hora e o local é que não são previsíveis. Esses indivíduos fora do comum são um acaso, portanto? Sim e não. Há tantos artistas e jogadores que é esperado um talento fora de série surgir dentre milhares, é como jogar dez mil vezes uma moeda, às vezes teremos uma sequência de dezenas de caras ou de coroas, o que não é esperado é logo no começo sair essa “maré de sorte”. Ou seja, há alguns pernas-de-pau, há muitos medíocres, há alguns craques e há poucos gênios. Essa distribuição não é casual, ela é esperada. O que não é esperado é um garoto nascido num fim de mundo numa família sem ter o que comer se tornar um desses gênios, que é quando retorna o acaso. Também não é esperado alguém prever com anos de antecedência o perfil desse gênio.
     Nos julgamentos temos isto: inteligência, humildade, discernimento e coragem contra pressa, teimosia, convicção e egoísmo. Qual costuma prevalecer? O que é mais fácil. O senso comum tende a se sobressair, e ele ignora dados estatísticos. Talvez porque no mundo real só vemos unidades (números inteiros) e nunca as partes delas (números racionais). Talvez porque seja preciso fazer generalizações para haver alguma compreensão, ainda que apressada e errônea, dos fatos. Ou talvez porque a maioria acredita que o mundo deva ser perfeito, pois é criação de Deus, e como o acaso envolve imperfeições, ele não pode fazer parte do mundo. Mesmo os milagres, que são intervenções divinas, fazem parte do plano maior, logo vão se encaixar perfeitamente no todo, ao contrário do acaso, que é uma aberração dentro do todo.

     Acaso, sorte, azar ou coincidência existem ou tudo faz parte desse plano maior, no mínimo da justiça divina? Quem nunca ouviu o jargão “nada acontece por acaso”, querendo dizer que alguém zela por sua vida; se houve algo bom foi por merecimento e se houve algo ruim foi para testar sua reação. Dizemos aqui: isso é crença sem evidências. Não há como comprovar, só há alegações em que se acredita ou se rejeita a priori. Exemplo: sua vida passada foi correta e sofrida, então na vida atual você desfruta o que foi plantado lá atrás. Preciso explicar algo mais? Outro exemplo: Deus nunca erra, se você agora sofre é porque um plano maior demanda redenção, no fim você será recompensado. Acreditar que por puro acaso a pessoa ganhou na loteria, nasceu em berço de ouro, foi baleado ou teve um filho com paralisia cerebral é tão difícil assim? Para a maioria é bastante difícil. E por quê? É petulância identificar um motivo apenas. Quem sabe seja uma característica humana; sabemos que superstições são encontradas em todas as sociedades. Até os gregos acreditavam em destino, a verossimilhança não era vista por eles como um tipo de argumento válido.
     Em lógica uma proposição muda tudo, A e B é muito diferente de A ou B, mas quantos compreendem essa sutileza? Falácias convencem mais que teoria dos conjuntos ou cálculos matemáticos. Até especialistas costumam errar quando os problemas envolvem probabilidade. “Embora tenham precisado de muitos séculos, os cientistas aprenderam a enxergar além da ordem aparente e reconhecer a aleatoriedade oculta na natureza e na vida cotidiana” (MLODINOW, 2011, p. 33). Certamente os homens em geral não conseguem porem-se como marionetes, como uma roleta que gira e para dentro de algum ângulo, não é a toa que o personagem Duas Caras da DC Comics só decidia após jogar uma moeda e era doente, esquizofrênico; é como se a sanidade mental exigisse o autoengano de crer no controle da própria vida. Qual é a consequência imediata de se crer no acaso? Maior humildade, pois se você não é responsável por seu sucesso, o outro pode não ser responsável pelo fracasso dele.
     Há outra conseqüência, exclusiva ao nível profissional: ninguém irá merecer um salário astronômico por seu trabalho. Por que pagar cem, mil vezes a alguém, em comparação ao empregado ralé da mesma empresa/companhia? É um estímulo à competição e à idolatria. Porém, como vimos, o puro acaso tem seu papel garantido nessa escalada até o topo da carreira. Palpites se tornam avaliações científicas, legitimados por uma conta bancária bem gorda. Só que é perigoso julgar alguém com base apenas em resultados de curto prazo, é preciso de mais amostras, logo de mais tempo, para uma conclusão mais realista. A percepção é distorcida pelo que chama mais atenção e corrobora as ideias ou hipóteses. O grande problema é fazer dessas ilusões a verdade do mundo. Concluímos que a verdade está distribuída; como garantir que eu ou você somos os sortudos que a possuem?



Referência (e recomendação de leitura):
MLODINOW, Leonard. O andar do bêbado: como o acaso determina nossas vidas. Rio de Janeiro, Zahar, 2011.

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