Enfim Rico
Enrico não era rico, também não era pobre. Aproximava-se dos 40 anos de idade, assim como a contumaz crise da meia-idade. Teve uma criação com altos e baixos, seus pais oscilavam muito de humor, bem como de nível financeiro e social. Apenas culturalmente eram imutáveis, talvez lessem um livro por ano cada um (ou ambos), seu pai adorava futebol e sua mãe adorava as novelas da Globo e os programas de fofoca; pouco iam a cinema, a teatro ou a zoológico. Em um ambiente assim era de se esperar que Enrico fosse um burguês inculto frustrado por não ter o carro do ano, mas ele não era assim. Como é de costume, uma geração tende a corrigir os defeitos da anterior; ele lia e estudava muito, apenas por hobbie.
Enrico nunca se casou, gostava de namorar, mas casamento era uma tradição arcaica, sem utilidade nos dias contemporâneos, dizia ele. Quando suas amantes insistiam no tema ele se separava, pois se recusava a entrar na igreja, a assinar contratos e a criar filhos. Não queria uma vida burguesa, apesar de ser pacato. Sonhava em se tornar monge, ou montanhista, qualquer coisa que fosse alheia à insanidade das metrópoles. Porém, era covarde o suficiente para abandonar as necessidades materiais forjadas pelo mundo contemporâneo, adiava para quando se aposentasse, momento em que curtiria a vida. Contudo, sabia que seu corpo não o permitiria, então se resignava com as exigências do capital.
Com o tempo foi deixando de sentir emoções e qualquer outra coisa; não sentia frio nem calor, não sentia alegria nem tristeza; gozava e relaxava, mas não sentia vontade de repetir, e em fases de abstinência não sentia falta, apenas se reprimia por não ser animal; buscava, assim, algum sexo fácil e seguro, ou então dava prazer a suas parceiras, sem exigir contrapartida. Sabia que a sociedade era perversa e que a natureza era cruel, por isso isolava-se cada vez mais. Enrico tornar-se-ia ermitão um dia, só não sabia quando.
Não pensava na morte, pois quando se morre não se é e quando se é não se pode não ser. Sabia que a vida era o agora, mas como as amarras da civilização reprimiam a vida plena, deixava tamanha atividade aos mais fortes e felizes, ele não merecia isso. Não conseguia mandar a ética às favas, sentia que a justiça sempre deveria ser feita e que ela começava com os atos individuais, a tal “envergadura moral”. Ele adorava os filmes do Tarantino, percebia neles a gratuidade da violência e a justiça que os protagonistas assassinos praticavam, ou seja, exposição do problema com sua solução para os dias atuais.
Enrico sofria cada vez mais por sua covardia. Possuía uma vida invejada por seus vizinhos, colegas e amigos. Mas sabia que esse padrão era ouro de tolo. Ele não tinha medo, mas também não tinha coragem, não era alegre – detestava pessoas que viviam sorrindo – e não era triste, “depressão é para os fracotes”, costuma dizer o Enrico. Sentia que precisava matar alguém para se sentir vivo, pois dizem que cada vida tirada é reposta em outro, a fim de manter o equilíbrio do mundo. Quem sabe não é por isso que com 6 bilhões de habitantes haja tantas pessoas infelizes. Ou há um homem feliz e outro triste ou há três homens entediados.
Em seu trabalho, gerência de materiais, Enrico acumulava dinheiro, mas era sempre passado para trás nas promoções por não ter bom relacionamento; não era encrenqueiro, apenas não sabia se promover, era técnico demais para lidar simpaticamente com freguês chato e fornecedor picareta. Os empregados sob sua supervisão gostavam de Enrico, porém escarneciam de seu estilo bom moço. Todavia ele sabia que era preciso ser duro e um pouco malandro com quem vinha da periferia, só que Enrico se recusava a rebaixar-se ao nível dos ignorantes e permanecia com o mesmo estilo. Gostaria de poder conversar com eles sobre Hitchcock, Feynman, Guimarães Rosa ou Dali; tinha que se contentar em ouvir sobre Juliana Paes.
Um dia o diretor financeiro o chamou para uma conversa particular em seu escritório. Ofereceu-lhe um café com espartame, pois era diabético, Enrico recusou, pois não tomava café com adoçante – preferia que fosse sem açúcar – e muito menos em copinho plástico. Seu diretor se exacerbou e asseverou que se o gerente não melhorasse seus resultados no próximo relatório seria demitido sumariamente, sem se importar com os 11 anos de serviços prestados à multinacional. Enrico consentiu, mas não cobrou seus funcionários com a gravidade que a situação exigia, devido ao seu temperamento e por conta do fim de seu spray oral. Após a cirurgia há cinco anos para retirar sua vesícula biliar Enrico passou a ter mau hálito, andava sempre com o spray, mas acabou ficando sem e não o repôs durante aquela semana, quem sabe inconscientemente. Evitava ao máximo conversar, pela vergonha dos outros debocharem de seu bafo.
Com isso, os resultados não mudaram e ele foi demitido. Na saída do último dia de expediente, ele viu o diretor que o demitira sendo assaltado, Enrico pegou a faca que sempre o acompanhara próxima ao calcanhar e surpreendeu o ladrão, apunhalando-o fatalmente, com apenas um golpe na artéria jugular. Quando o diretor foi abraçá-lo para demonstrar tamanha gratidão, também foi apunhalado, com um golpe no estômago e outro no pulmão esquerdo, não resistira. Como estava escuro e não havia câmeras naquela área, Enrico os furtou e escapou sem ser visto.
O caso foi investigado, mas não foi totalmente esclarecido, como a faca era a mesma que matou os dois homens, não podia ser cogitada a hipótese de legítima defesa, o mais provável foi que o comparsa ficara nervoso com a resistência ao assalto e matara ambos, levando seus pertences. Enrico havia queimado as roupas e jogado a faca no maior rio da cidade, que nunca foi encontrada. Sua vingança e seu sonho estavam realizados.
Ele estava vivo como nunca havia estado e com dinheiro suficiente para ficar um ano sem trabalhar. Foi curtir a vida e escalar as montanhas sul-americanas. Após os períodos de felicidade, quando começava o tédio, praticava os assassinatos da mesma forma, vingando-se de algum desafeto e matando mais um ou dois para garantir seu élan vital. Autodenominou-se Enrico Suave, pelo modo como matava, sem dor e sem tortura, e sempre sem deixar vestígios. Apenas por uma vez investigadores o questionaram, pelo azar de uma de suas vítimas, um office boy cheirado, ter feito uma entrega a ele três dias antes de ser morto e ainda ter a nota fiscal com o nome de Enrico no bolso; ele não foi incluído na lista de suspeitos. Nunca assinava ou deixava um padrão na forma de assassinar, a aleatoriedade garante ao serial killer a liberdade, só os afobados e arrogantes caçoam da polícia achando que vão escapar da cadeia, pensava o Suave. Somente imaginava as manchetes dizendo: “Suave age novamente”, “Suave sua, mas escapa”, “Ele não matará novamente, afirma o inspetor” ou ainda “O implacável Suave aterroriza, barbariza e surpreende, como sempre”. Deleitava-se, circunspecto.
E pôde, enfim, se aposentar como gostaria: rico, alegre, vivo e festivo.
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