8 de fevereiro de 2012

Na morte o filme da vida

Fazia um calor insuportável para os padrões do leste europeu. Naquele verão a Corrente do Golfo abandonou os ucranianos, deixando-os ofegantes. Se fossem caribenhos não sofreriam tanto. Dentro do trem os passageiros tentavam se refrescar como lhes fossem possível, alguns se abanando, outros tomando refrescos e outros simplesmente aproveitando o vento que adentrava pela janela. O odor exalado pelo suor começava a incomodar os mais sensíveis, mas o pior foram as flatulências, sempre há um sacana nesses momentos. A locomoção é sempre um incômodo a quem sofre com o clima, o estômago ou o ócio.

No antigo vagão soviético o barulho crescia, as locomotivas têm esta característica de efeito Doppler a quem ouve seus ciclos metálicos. Além da ferrugem e das peças que pareciam querer escapar da máquina para descansar na grama aconchegante, a velocidade aumentava; alguns estranharam aquele fato, mas foram se apavorar realmente quando um tripulante adentrou avisando-os de que o freio não funcionava mais, o sistema de segurança não havia disparado e que por um motivo incompreensível a aceleração era crescente, mas que estavam averiguando e fazendo de tudo para resolver o problema e parar a máquina antes de acontecer algo pior. Sim, pior, nada é tão ruim que não possa ficar pior do que o inferno em que se encontra – maldita Lei de Murphy!

Houve um burburinho entre os ucranianos: impropérios, rezas, maldições, tudo aquilo que costuma ocorrer em casos de crise e de desespero, de fato, ocorreu. Contudo, Orolev estava tranqüilo, compreendeu que chegara a hora de sua falência, apesar de saber que com 36 anos são poucos os que viveram o suficiente para ser possível atingir a resignação com a morte. Fatídica morte, a única coisa do mundo que é sem apelação – como discutir com essa tenebrosa senhora? Orolev chegou mesmo a rir dos garotos que se jogaram pela janela como último recurso, em vão, de continuarem vivos, divertindo-se com o som oco das cabeças de encontro ao chão. Lembrou do tempo em que tocava bongô. O acontecimento era uma pena, tendo em vista que justo agora ele havia se encantado com aquela ruiva no vagão que mais parecia uma deusa nórdica ou guerreira celta, de traços fortes e feições levemente masculinizadas, mas sem perder o charme das mulheres eslavas. Talvez se por algum milagre ele continuasse vivo, faria de tudo para não perder de vista, e de sua presença, aquele monumento. Era o tipo de mulher que faria do funeral uma festa.

Então algo ocorreu em sua mente, aquela lenda de passar um filme da própria vida nos poucos minutos ou segundos que antecedem a decadência orgânica total, que ele duvidava até então, ele a vivenciou. Começou a pensar nas mulheres que amara, com quem transou, com quem gostaria de trepar e naquelas que deixou de traçar em nome da fidelidade conjugal – significou felicidade conjugal? O amor alivia carências e traumas, mas não substitui o orgulho de ser um conquistador implacável, voraz e irredutível. Pois é, o homem constantemente dá valor à quantidade, ainda que seja um punhado de bijuteria. Pensou em seus antigos sonhos artísticos, nos quadros que poderia ter pintado, nos esboços, que ele tinha guardado em casa e que nunca teve coragem de expor. Lembrou de sua pequena ganância de se tornar grandioso com algum feito artístico, comercial ou político.

Passou, por conseguinte, a refletir como um adolescente, isto é, incapaz de projetar para além de uma semana; a amaldiçoar seus colegas torcedores do Dínamo que caçoavam dele, pois este sempre ganhava de seu time do coração; a ter nostalgia com sua vizinha que lhe dava bom dia e o deixava contente durante o dia inteiro, torcendo para que ela desejasse algo mais a ele e dele. Garotinho juvenil e inocente sem saber lidar com as pressões e os acasos da vida. Ficou triste pela nota baixa em aritmética, pois sabia que seus pais o admoestariam: ocaso intelectual. Aqui ele sonhava com o videogame que não haveria de ganhar, mas que não o deixava infeliz, afinal ainda tinha seu cachorro e seu hamster. Rebelde, como é característico da idade, começou a xingar e fazer pose de superior para escamotear seu temor e sua insegurança – defesas às depressões futuras.

Enfim, passou a ficar agitado e a imaginar como uma criança, que não entende nada do mundo, mas que também não teme nada. O medo surge quando há algo a perder, como um garoto não tem (conscientemente) sentimento de posse e de expectativas para o futuro, Orolev apenas vivia. Sob esse ponto de vista, as crianças são mais felizes. E teimava, como é corriqueiro à fase narcísica dos meninos recém socializados. Ele somente estranhava o fato de sua mãe não estar por perto em meio àquela balbúrdia rápida e cinzenta. Procurava, ansiosamente, por outras crianças para brincar, se divertir e conversar sobre o carrinho ganho no último aniversário. E também sobre o herói de seu desenho animado favorito, capaz de façanhas incríveis aos olhos de um tolinho.

Por fim, se contorceu em posição fetal, chorando e estranhando o fato de não haver colo e um seio para mamar; contentou-se em chupar dedo. Não queria parar de fazer isso, era a única coisa que lhe acalmava, em meio àquele mundo hostil e agitado. O trem atingira seu destino, escapara pela tangente e caíra dentro de um rio, matando grande parte dos passageiros com o impacto da batida, enquanto outros morreram afogados e apenas três conseguiram a façanha de sobreviver, não sem as cicatrizes dos ferimentos, das queimaduras e das escoriações ocasionadas pela forte colisão. Mas Orolev estava alheio a tudo isso, visto que era só instinto da terna infância, com o cérebro de um recém-nascido sequer teve noção da chegada de sua morte, estava apenas contrariado por não sentir o calor feminino e um peito em sua boca.

P.S.: Conto escrito há algum tempo por encomenda. Como não foi publicado (ao menos não que eu saiba) em lugar nenhum, exponho-o nesta oportunidade.

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