Trespassando a burguesia temos o infernal, tal qual Hefesto,
forjando o modernismo, mas desta vez como fruto poético, e não como metalurgia.
Das gélidas trevas, “nascido já nostálgico do céu”, foi compelido a fugir do
inferno da sociedade que o criou, por conta do bombardeio moral a suas idéias
controversas. Ora, se a racionalização é inútil quando tudo é ilógico e hostil
à existência, inevitavelmente conturbada e carregada de tormentos dentro da
cachola, o melhor, aliás, o fatídico, é contestar essa tradição. Não antes sem
haver uma pitada de vingança, pelo orgulho ferido de ser excluído do meio
acadêmico por causa de métodos pouco ortodoxos. Como culpar o pavio curto, as
manias e o imanente espírito artístico? O melhor seria nunca ter tido
pretensões positivistas, desde que a sociedade aceitasse a subjetividade e os
dramas humanos como fonte de conhecimento.
Essas concepções transgressoras da subjetividade aliada a
uma proposta criativa para a então eminente arte são permeadas por conflitos e
turbulências. As alucinações e os devaneios, sejam visões corriqueiras ou
esporádicas, formulam as próprias significações, que são singulares e contíguas
e, sem dúvida, criativas e ousadas. E toda a matéria-prima se encontra no
cotidiano, na vida pesada, na jornada de dores por perdas e de perdas com
dores. Se o fato se apresenta, não o temamos nem reprimamos, absorvamos, ainda
que pareça ser uma “luta inútil contra os invisíveis”. Se os números falam,
respondamo-los, afinal toda ajuda é bem vinda. Se os parentes e amigos não
podem vê-los, que se esforcem para atingir a verdade. Comunicação é relação que
exige capacidade de iniciativa, apesar de não estarmos a toda hora pró-ativos –
mas que infortúnio!
- Paraliso, destruo, rompo, dissolvo a ordem presente. Sou o
incendiário do mundo! Desde pequeno busquei a Deus, mas reneguei esse déspota e
encontrei o demônio (Alp). Já que o
Inferno é o espelho da Terra, eu serei enviado, como Bhrigu, às profundezas por
meu mestre, em face da minha presunção, e trarei de lá o fogo purificador. Mas
antes disso, passem pelos labirintos de minha mente, que é inteligível, contudo
são poucos os heróis como Teseu dispostos a percorrê-lo.
É útil, ainda,
salientar que a travessia possui muitos pontos cegos e as tochas iluminam-na
por pouco tempo; aquele que compreender que deve abandonar o temor o quanto
antes, tateando por algum tempo no escuro, encontrará a saída mais cedo, pois
as sinuosidades diminuirão. Por tortas estratégias criam-se retas. Enfim nasce
o senso estético, deveras atormentado.
No meio da luta entre o bem e o mal, ou ao menos de seus
conceitos, o artista buscava auxílio das forças divinas, que até lhe davam
forças, contrabalançado pelo medo infundido. Nesse campo de batalha espiritual
vozes advogavam para o escritor tomar o caminho mais proveitoso, porém ele se
sente puxado violentamente por esses poderes que se movem no mesmo sentido, mas
em direções opostas. Como saber se a escolha o levará à redenção ou ao abismo,
sendo que as culpas e os pecados enrijecem-se em sua consciência? Durante a
existência raramente podemos usar o fio de Ariadne, os sucessivos pontos de interrogação irão
assombrá-lo; saber responder ou evitar as perguntas pode ser tranquilizador.
Todavia, se os questionamentos não cessarem, os tormentos aumentarão exponencialmente,
trazendo a insanidade ao indivíduo. Logo o inferno êxito logrará.
A fim de obter bons resultados em alquimia, o literato de
outrora sofre com a aflição por conta do manuseio de elementos químicos sem a
proteção e os cuidados necessários. As mãos encontram-se assadas, a dor crônica
o impede de realizar qualquer trabalho manual, inclusive usar a pena; porém o
significado das escamas se soltando da pele foi de limpeza, o corpo se
encarregava de expelir os venenos. O sangue era a consagração da atividade.
Tudo isso era facilmente suportável, a única agonia era não dever
agradecimentos além de a si mesmo e à alquimia. A solidão, o silêncio e o
deserto eram imperativos ao temperamento irrequieto, curioso e teimoso. Para
suportar o isolamento foi preciso dispensar a sociedade, e se fosse preciso,
como de fato foi, dirigindo-lhe ofensas, inclusive a entes queridos. Incauta
soberba: isolado ninguém faz milagre, é apenas ilusão.
Uma pena isso, pois os impetuosos percebem a burrada após
algum tempo e então se consomem de remorsos. Fraquezas dos sentimentais: álcool
e meretrizes. Péssimas companhias, apesar de contínuas. A durável vaidade e o
orgulho ferido desses seres precisam de escapes e de desculpas, ainda que
esfarrapadas – contagia-se pela hipocondria e pela paranóia. O estrangeiro em
uma terra não tão estranha vê ciladas em toda parte. Isto é, sai duma jaula e
entra numa gaiola. Sentir-se no abismo da tristeza é apenas uma projeção da
própria incompetência. Compadece de si para provocar a piedade das
misericordiosas. Perdido por dentro, portanto perdido por fora.
Ao velho a juventude é um inimigo natural, desde que ele não
a tenha aproveitado, ou seja, envelheceu sem viver, fez-se ranzinza, turrão e
casmurro: “o outono aqui dentro, a primavera lá fora”. Após uma sucessão de
eventos sem significado, o tédio surge e a melancolia se instaura. Sem paixão a
vida é um fardo; incapaz de declarar seu desejo por qualquer dama (interessante
ou não) ele ficava passivo, sendo escolhido por alguma rara mulher de atitude.
A fim de evitar o sofrimento com uma libido não efetivada, ele reprimia sua
paixão e punia-se como se isso fossem “pecados ou tentações” – doente. Na falta
de equilíbrio, agarrar-se ao terço, à cruz e aos cristais é a maneira mais
rápida para alcançar alguma serenidade. O espírito corregedor do ocultismo
remeteu nosso herói ao mundo platônico; longe deste terreno, a nostalgia
libertava-o dos anseios carnais e decadentes.
Notas e escritos num diário funcionaram como um bom remédio.
Expressar o que incomoda, e exige sair do sujeito para se difundir e
influenciar mundo afora, alivia e sempre traz um mínimo de paz de espírito. O
problema é se desequilibrar novamente e cair em superstições e manias tolas –
efeito da insegurança. Um moderno querer regressar à Idade Média quedará
maluco, a história não perdoa. Por ora, é impensável conviver com as dúvidas e
as incertezas, apesar de não ser possível escapar delas. A razão organizadora e
tirana enfim tem seu efeito colateral: tormentos psíquicos. É mister haver uma
fé: a felicidade é um fim a todos, se por um caminho (o racional) não foi
possível atingi-la, restou optar pelo outro (o ascético), “e que renasça a
harmonia da matéria e do espírito”.
Para retornar o sentimento de juventude e livrar-se dos
tormentos foi preciso fugir dos sórdidos ambientes onde freqüentava. Num jardim
parisiense a alegria absorveu-o, claro que provisoriamente, enquanto pensava
vislumbrar e contemplar a beleza natural que o divino criou. Bastou um leve
incômodo (a ele uma maligna provocação) para a paranóia e a irritação voltarem
com tudo – todos eram suspeitos de conspirações para infernizá-lo e agravar sua
angina. Sem encontrar uma ciência metafísica, tudo lhe parecia deslocado e
labiríntico – a beatitude fora perdida. Ao menos ele levantou a hipótese de ser
o culpado pela demente imaginação, ainda que não se convencesse disso. E pouco
importava sua culpa, ele não se considerava dono do próprio destino.
Vencido, deita-se resignado e disposto a morrer, curvando-se
às incomensuráveis forças divinas. Porém, tal qual um judeu, seu orgulho é
inflado pelas inúmeras humilhações e ele dirigidas. Vitimiza-se constantemente,
em parte a fim de despertar compaixão e clamar por auxílio, em parte porque
justificaria seu estado de danação. É mais por birra e vaidade que o ranzinza
não se mata – jamais deves regozijar teus inimigos! Podes sair estropiado da
luta, “mas com as honras do combate”. Após esse demasiado convívio com a
tristeza, ódio, ira e vingança instauraram-se em seu coração definitivamente,
ou em sua mente. Malditos sejam os ricos, os felizes, os viventes...
Enfim reconhece que passou por belos momentos, por
celestiais estados de espírito, e que essa felicidade, ou alegria, só é
possível com os cuidados e com a limpeza da consciência. É a má consciência,
esse morcego que à noite bate à porta e entra de assalto no quarto, que traz a
perspectiva neurótica e pessimista das coisas. Só dá adeus aos bons sonhos quem
não tem paciência e diz não ter tempo para regar o próprio jardim; e os que não
sabem o que querem. Esses sonhos parecerão curtos aos olhos de quem os
dispensou em detrimento a outros mais atuais. Assim, seguirá em marcha
aleatória, em peregrinação a um objetivo sem sentido, pois não sabe o que quer.
Quem não reflete sobre o que realmente deseja avistará tentação em qualquer
bijuteria.
O demônio tornou-se um espantalho apenas e Strindberg
consolou-se com esta graça concedida: Swedenborg devastou as ervas daninhas em
sua mente e sua luz clareou o céu. Por fim, expiação, e conseqüente salvação,
por uma religião nova e progressista. Após uma formidável batalha contra o
verdadeiro inimigo (superego versus ego), a resolução: arrependimento (perdão).
A ajuda de Balzac foi pontual: “o remorso é a impotência de quem persiste no
erro. Só o arrependimento é força que acaba com tudo”. E sua vida não terminou,
não houve tragédia, mas sim cura – redenção! E termina católico, sem trair seus
antepassados (a religião mater), e
ainda passivo, alegando que foi o próprio catolicismo que o perseguiu e
esclareceu-o sobre a existência. Existência essa que servirá de exemplo aos que
não se deixarão enganar pela vaidade de um profeta-impostor, que se julgava
inútil e tolo, mas que deu, ao menos, uma ínfima contribuição ao mundo, ou uma
imensa, se você tiver mente aberta a um aprendizado litero-filosófico.
Fonte Bibligráfica:
STRINDBERG. Inferno. Ed. Hedra, 2010.