12 de maio de 2012

O Inferno de Strindberg


Trespassando a burguesia temos o infernal, tal qual Hefesto, forjando o modernismo, mas desta vez como fruto poético, e não como metalurgia. Das gélidas trevas, “nascido já nostálgico do céu”, foi compelido a fugir do inferno da sociedade que o criou, por conta do bombardeio moral a suas idéias controversas. Ora, se a racionalização é inútil quando tudo é ilógico e hostil à existência, inevitavelmente conturbada e carregada de tormentos dentro da cachola, o melhor, aliás, o fatídico, é contestar essa tradição. Não antes sem haver uma pitada de vingança, pelo orgulho ferido de ser excluído do meio acadêmico por causa de métodos pouco ortodoxos. Como culpar o pavio curto, as manias e o imanente espírito artístico? O melhor seria nunca ter tido pretensões positivistas, desde que a sociedade aceitasse a subjetividade e os dramas humanos como fonte de conhecimento.

Essas concepções transgressoras da subjetividade aliada a uma proposta criativa para a então eminente arte são permeadas por conflitos e turbulências. As alucinações e os devaneios, sejam visões corriqueiras ou esporádicas, formulam as próprias significações, que são singulares e contíguas e, sem dúvida, criativas e ousadas. E toda a matéria-prima se encontra no cotidiano, na vida pesada, na jornada de dores por perdas e de perdas com dores. Se o fato se apresenta, não o temamos nem reprimamos, absorvamos, ainda que pareça ser uma “luta inútil contra os invisíveis”. Se os números falam, respondamo-los, afinal toda ajuda é bem vinda. Se os parentes e amigos não podem vê-los, que se esforcem para atingir a verdade. Comunicação é relação que exige capacidade de iniciativa, apesar de não estarmos a toda hora pró-ativos – mas que infortúnio!

- Paraliso, destruo, rompo, dissolvo a ordem presente. Sou o incendiário do mundo! Desde pequeno busquei a Deus, mas reneguei esse déspota e encontrei o demônio (Alp). Já que o Inferno é o espelho da Terra, eu serei enviado, como Bhrigu, às profundezas por meu mestre, em face da minha presunção, e trarei de lá o fogo purificador. Mas antes disso, passem pelos labirintos de minha mente, que é inteligível, contudo são poucos os heróis como Teseu dispostos a percorrê-lo.

 É útil, ainda, salientar que a travessia possui muitos pontos cegos e as tochas iluminam-na por pouco tempo; aquele que compreender que deve abandonar o temor o quanto antes, tateando por algum tempo no escuro, encontrará a saída mais cedo, pois as sinuosidades diminuirão. Por tortas estratégias criam-se retas. Enfim nasce o senso estético, deveras atormentado.

No meio da luta entre o bem e o mal, ou ao menos de seus conceitos, o artista buscava auxílio das forças divinas, que até lhe davam forças, contrabalançado pelo medo infundido. Nesse campo de batalha espiritual vozes advogavam para o escritor tomar o caminho mais proveitoso, porém ele se sente puxado violentamente por esses poderes que se movem no mesmo sentido, mas em direções opostas. Como saber se a escolha o levará à redenção ou ao abismo, sendo que as culpas e os pecados enrijecem-se em sua consciência? Durante a existência raramente podemos usar o fio de Ariadne, os  sucessivos pontos de interrogação irão assombrá-lo; saber responder ou evitar as perguntas pode ser tranquilizador. Todavia, se os questionamentos não cessarem, os tormentos aumentarão exponencialmente, trazendo a insanidade ao indivíduo. Logo o inferno êxito logrará.

A fim de obter bons resultados em alquimia, o literato de outrora sofre com a aflição por conta do manuseio de elementos químicos sem a proteção e os cuidados necessários. As mãos encontram-se assadas, a dor crônica o impede de realizar qualquer trabalho manual, inclusive usar a pena; porém o significado das escamas se soltando da pele foi de limpeza, o corpo se encarregava de expelir os venenos. O sangue era a consagração da atividade. Tudo isso era facilmente suportável, a única agonia era não dever agradecimentos além de a si mesmo e à alquimia. A solidão, o silêncio e o deserto eram imperativos ao temperamento irrequieto, curioso e teimoso. Para suportar o isolamento foi preciso dispensar a sociedade, e se fosse preciso, como de fato foi, dirigindo-lhe ofensas, inclusive a entes queridos. Incauta soberba: isolado ninguém faz milagre, é apenas ilusão.

Uma pena isso, pois os impetuosos percebem a burrada após algum tempo e então se consomem de remorsos. Fraquezas dos sentimentais: álcool e meretrizes. Péssimas companhias, apesar de contínuas. A durável vaidade e o orgulho ferido desses seres precisam de escapes e de desculpas, ainda que esfarrapadas – contagia-se pela hipocondria e pela paranóia. O estrangeiro em uma terra não tão estranha vê ciladas em toda parte. Isto é, sai duma jaula e entra numa gaiola. Sentir-se no abismo da tristeza é apenas uma projeção da própria incompetência. Compadece de si para provocar a piedade das misericordiosas. Perdido por dentro, portanto perdido por fora.

Ao velho a juventude é um inimigo natural, desde que ele não a tenha aproveitado, ou seja, envelheceu sem viver, fez-se ranzinza, turrão e casmurro: “o outono aqui dentro, a primavera lá fora”. Após uma sucessão de eventos sem significado, o tédio surge e a melancolia se instaura. Sem paixão a vida é um fardo; incapaz de declarar seu desejo por qualquer dama (interessante ou não) ele ficava passivo, sendo escolhido por alguma rara mulher de atitude. A fim de evitar o sofrimento com uma libido não efetivada, ele reprimia sua paixão e punia-se como se isso fossem “pecados ou tentações” – doente. Na falta de equilíbrio, agarrar-se ao terço, à cruz e aos cristais é a maneira mais rápida para alcançar alguma serenidade. O espírito corregedor do ocultismo remeteu nosso herói ao mundo platônico; longe deste terreno, a nostalgia libertava-o dos anseios carnais e decadentes.

Notas e escritos num diário funcionaram como um bom remédio. Expressar o que incomoda, e exige sair do sujeito para se difundir e influenciar mundo afora, alivia e sempre traz um mínimo de paz de espírito. O problema é se desequilibrar novamente e cair em superstições e manias tolas – efeito da insegurança. Um moderno querer regressar à Idade Média quedará maluco, a história não perdoa. Por ora, é impensável conviver com as dúvidas e as incertezas, apesar de não ser possível escapar delas. A razão organizadora e tirana enfim tem seu efeito colateral: tormentos psíquicos. É mister haver uma fé: a felicidade é um fim a todos, se por um caminho (o racional) não foi possível atingi-la, restou optar pelo outro (o ascético), “e que renasça a harmonia da matéria e do espírito”.

Para retornar o sentimento de juventude e livrar-se dos tormentos foi preciso fugir dos sórdidos ambientes onde freqüentava. Num jardim parisiense a alegria absorveu-o, claro que provisoriamente, enquanto pensava vislumbrar e contemplar a beleza natural que o divino criou. Bastou um leve incômodo (a ele uma maligna provocação) para a paranóia e a irritação voltarem com tudo – todos eram suspeitos de conspirações para infernizá-lo e agravar sua angina. Sem encontrar uma ciência metafísica, tudo lhe parecia deslocado e labiríntico – a beatitude fora perdida. Ao menos ele levantou a hipótese de ser o culpado pela demente imaginação, ainda que não se convencesse disso. E pouco importava sua culpa, ele não se considerava dono do próprio destino.

Vencido, deita-se resignado e disposto a morrer, curvando-se às incomensuráveis forças divinas. Porém, tal qual um judeu, seu orgulho é inflado pelas inúmeras humilhações e ele dirigidas. Vitimiza-se constantemente, em parte a fim de despertar compaixão e clamar por auxílio, em parte porque justificaria seu estado de danação. É mais por birra e vaidade que o ranzinza não se mata – jamais deves regozijar teus inimigos! Podes sair estropiado da luta, “mas com as honras do combate”. Após esse demasiado convívio com a tristeza, ódio, ira e vingança instauraram-se em seu coração definitivamente, ou em sua mente. Malditos sejam os ricos, os felizes, os viventes...

Enfim reconhece que passou por belos momentos, por celestiais estados de espírito, e que essa felicidade, ou alegria, só é possível com os cuidados e com a limpeza da consciência. É a má consciência, esse morcego que à noite bate à porta e entra de assalto no quarto, que traz a perspectiva neurótica e pessimista das coisas. Só dá adeus aos bons sonhos quem não tem paciência e diz não ter tempo para regar o próprio jardim; e os que não sabem o que querem. Esses sonhos parecerão curtos aos olhos de quem os dispensou em detrimento a outros mais atuais. Assim, seguirá em marcha aleatória, em peregrinação a um objetivo sem sentido, pois não sabe o que quer. Quem não reflete sobre o que realmente deseja avistará tentação em qualquer bijuteria.

O demônio tornou-se um espantalho apenas e Strindberg consolou-se com esta graça concedida: Swedenborg devastou as ervas daninhas em sua mente e sua luz clareou o céu. Por fim, expiação, e conseqüente salvação, por uma religião nova e progressista. Após uma formidável batalha contra o verdadeiro inimigo (superego versus ego), a resolução: arrependimento (perdão). A ajuda de Balzac foi pontual: “o remorso é a impotência de quem persiste no erro. Só o arrependimento é força que acaba com tudo”. E sua vida não terminou, não houve tragédia, mas sim cura – redenção! E termina católico, sem trair seus antepassados (a religião mater), e ainda passivo, alegando que foi o próprio catolicismo que o perseguiu e esclareceu-o sobre a existência. Existência essa que servirá de exemplo aos que não se deixarão enganar pela vaidade de um profeta-impostor, que se julgava inútil e tolo, mas que deu, ao menos, uma ínfima contribuição ao mundo, ou uma imensa, se você tiver mente aberta a um aprendizado litero-filosófico.

Fonte Bibligráfica:
STRINDBERG. Inferno. Ed. Hedra, 2010.

3 comentários:

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    1. Eu preciso voltar aqui mais vezes.

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  2. August Strindberg foi um escritor “anormal” com um espírito inquieto, incompreensível e ousado para a época.
    Um intelectual, cheio de delírios, beirando à loucura... tão criativo, angustiado que acreditava que a terra era o inferno (o Inferno é o espelho da Terra,um campo de batalha espiritual.
    Seria ele uma criatura imperfeita de Deus?
    Ou, tudo o que sempre foi e é difundido pela religião cristã?
    É de leitura assim que te seduz e te motiva a escrever no blog textos tão complexos e criativos.

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