Maquiagem, do francês maquillage,
para os afrescalhados é o make up, é
a pintura facial e inclusive a corporal. Qual é a finalidade, qual a motivação,
o costume, a tradição ou a tendência da moda que impele uma pessoa a se pintar?
Afinal, não é tão natural assim, há algo por trás desse fim, que em muitas
culturas se tornou corriqueiro, sendo considerado pelos mantenedores da ordem até
mesmo falta de decência, de civilidade mesmo, não maquiar a pele, essa coisa
tão grosseira – epiderme defeituosa. Esta segunda pele, com claras intenções
sociais e retificadores, tenta substituir a pele biológica, herdeira de uma nem
sempre bela seleção natural. E haverá sempre uma velha fofoqueira a espalhar discórdia
e um afeminado a clamar alegria.
A origem pode ser religiosa (ritualista), como em
celebrações de fertilidade e cerimônias fúnebres, ou então guerreira (agonística),
ou apenas estética e símbolo de alguma função ou posição social, como é o caso
de qualquer adereço e adorno. Sociedades tribais têm por costume se apresentar a
suas entidades místicas e protetoras devidamente caracterizadas, visto que
seria uma ofensa entrar em contato com o divino como se fosse mais uma
atividade do cotidiano, como plantar mandioca ou descascar batata. Ao
perceber-se como parte da natureza, com capacidade para alterá-la e até
domá-la, o homem precisou de artifícios para simbolizar sua passagem de bicho
para civilizado. Essa etiqueta das etnias exige um formalismo, ainda que
excêntrico para nós, os “pós-bárbaros”, pois a falta de vestimenta sempre
chocou os pudicos e europeus. A selvageria, a bizarrice ou a agressividade para
uns é a naturalidade ou a trivialidade para outros. É sempre chocante
deparar-se com algo a que não se está habituado. Oh, quantos julgamentos
inflexíveis!
O combate é outra coisa importante para os indígenas, é
preciso preparar-se e fazer as honrarias e superstições de praxe a fim de não
ter consciência pesada e de ninguém alegar negligência por parte do guerreiro. A
pintura, assim como a armadura e as insígnias, inspira respeito e dignidade aos
fracos e covardes – nítida hierarquia que distingue tipos humanos. Numa guerra
só vence quem se arrisca, mas sabemos que todo cuidado pode ser pouco, e fatal.
É claro que se mandinga tivesse a força que se pensa, o campeonato baiano
acabava empatado, porém o determinismo em vestir a mesma cueca, pisar com o pé
direito, fazer o sinal da cruz ou bater na madeira três vezes é anterior, e
obviamente superior, ao indivíduo. Quem já se iludiu testemunhar atividades
paranormais e macumba pesada não ousará contestar, muito menos desafiar, tal
poder.
E na cidade, nos grandes centros urbanos, nas pós-modernas e
frenéticas metrópoles, apinhada de gente que se julga muito distante dos
índios, do povo do mato? Ah, eles não vivem em comunidade de duzentos
habitantes, não caçam nem coletam, eles estudam, pegam engarrafamento e xingam
a máquina. Seus símbolos os diferem e coloca-os acima dos demais. Jamais se
sentiriam bem se comparando a povos atrasados, cujas referências são os deuses
pequeninos, bem aquém do Todo-Poderoso Jeová. Seus ídolos, ícones e paradigmas
são justificados, apesar de serem recentes, mas o tempo não prova nada, não é
mesmo? A juventude é um bem em si; quem vive de passado é museu e arqueólogo. A
sociedade individualista incentiva e (só) gera pessoas únicas, tão diferentes
entre si quanto plantas da mesma espécie criadas em ambientes separados.
Enquanto crescem e se autoafirmam, os jovens precisam se identificar com algum
grupo (tribos urbanas), ou seja, no fundo desejam assemelhar-se, desde que
dentro de um estilo visto como descolado e conveniente. É claro que eles se
misturam com ressalvas, pois se simplesmente copiassem uns aos outros seriam
criticados por falta de personalidade (muitos já desistiram disso, desejando
ser covers, com orgulho).
E onde fica a maquilagem, lá do começo, nessa antropologia
barata? Ela fica no paralelo que eu faço entre o índio/primitivo e o sujeito
urbano. O disfarce continua; esses dois tipos humanos não são tão diferentes
quanto se pensa. Ambos são seres instintivos, inseguros e gregários, e talvez
sempre serão. A força está no coro, ainda que por aqui ninguém goste de admitir
isso. Pois então, por que tantas roupas e marcas, pesados panos e iluminados cosméticos?
Quem se importa? Se por lá são os deuses que julgam, por aqui é a Vox populi: voz alastrada que devasta os
não convictos, olhares difusos desnorteiam os frágeis confusos. Sentir-se admirável
é um imperativo em qualquer lugar, aquele poderoso que concede honrarias e
coroas ao bom fiel só muda de nome nas culturas. Você deve saber o nome de seu
Imperador, Senhor ou Exu. Ater-se a padrões e normas sociais impossibilita o
vôo, pois a ditadura da maioria é conveniente aos medíocres, que aparam as asas
de quem sonha em voar. Em paralelo, a mesma multidão exulta-se diante do herói
fantasiado na telona.
Sei, estou divagando e fugindo do tema, coisa de
indisciplinado. Focarei nas mulheres, sem dúvida as que mais consomem produtos
de beleza, e não importa a idade da dama, desde que o desejo seja parecer jovem
e atraente (ainda que ninguém concorde). Para elas há uma guerra, que é muitíssimo
velada, pois ninguém a declara como tal, e (quase) todos vêem nessas fatídicas
disputas de destaque mero empurra-empurra. Há muito vermelho no salão e olhares
obtusos em profusão; o batom atiça no outro o desejo, erotismo que só se
abranda com beijos. Se para o índio o objetivo é afugentar espíritos maus e
parecer perigoso e viril aos animais e entes da floresta, para as mulheres o
desígnio é desestabilizar seu alvo (pretendentes ou invejosas) com sua
aparência estonteante ou somente adequada à moda, esta megera que substitui por
capricho os valores em voga. O agrado transcendental de outrora se tornou a
satisfação carnal e material, afinal o prazer é a teleologia da sociedade
hedonista, por ora triunfal. Junte-se a isso a necessidade de posse que tacitamente
cerca os ambientes badalados e teremos a conduta vaidosa predominante nos
círculos sociais burgueses.
Eu vejo a maquiagem como símbolo maior dessa busca quase
generalizada em destacar qualidades e esconder defeitos, seja externamente – a
imagem é mais nítida e palpável do que uma idéia –, seja da personalidade e do
caráter – um bom leitor de linguagem corporal capta as malandragens e sutilezas
do comunicador. E mesmo as garotas grotescas, que só se expressam por preto e
em muitos casos se encobrem com piercings
e tattoos indecifráveis, enquadram-se
nesse conceito de passar maquiagem para tentar transmitir preferencialmente as boas
informações sobre si. Estas tentam desvalorizar o corpo feminino,
principalmente aquele vestido com itens artificiais e mercadorias sintéticas,
como arma de conquista, enquanto afirmam a rebeldia, o intelecto ou a polêmica
como forma de melhoria social; do outro lado, as modelos e simpatizantes da
estética corporal defendem a ética do belo, custe o que custar.
Assim vimos o quanto a beleza é um conceito que muda de
acordo com a época, o local e a direção do vento. Pode advir disso: aberrações
gradualmente avaliadas com conivência; limites (do que pode ser feito em busca
de um ideal etéreo) sempre ampliados, ou mesmo ignorados, e a futilidade, isto
é, dedicar-se exclusivamente ao corpóreo (material
girl). Os gays adoram isso tudo, é óbvio, poucos são bem resolvidos, sem
carregar um mínimo de neurose e frustração pelo repúdio social e, não raro, o
familiar também. Enfeitam-se e exigem animação e cores aonde vão. Trocam a
tristeza e incompreensão interna pela ousadia e confusão externa. E as
mulheres, suas melhores amigas, acabam sendo influenciadas por suas histerias.
Torna-se padrão camuflar o que não se quer ver mais. As batalhas são travadas
na noite, ganha quem fingir sangrar menos.
Há sempre uma referência a alcançar e uma colega a invejar. Quem
se delonga olhando no espelho se ama demais, mas sempre encontra imperfeições a
corrigir. Com a verde grama do vizinho e os sorrisos que encontramos no caminho
nós nunca cansamos de nos comparar. Mas atenção, um espelho é tão subjetivo
quanto qualquer tela impressionista. Então, por maquiar-se qual foi a sua
grande conquista?
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