Conquistar a independência pessoal não é uma tarefa das mais
tranqüilas. A transição para a vida adulta exige esse abandono da dependência
financeira, afetiva e intelectual da família a fim de caminhar com os próprios
pés e tomar as próprias decisões perante os imprevistos do mundo. Após essa
fase, viria a da interdependência, que é o reconhecimento de que não é possível
realizar tudo sozinho, que sempre haverá uma carência, seja por afeto,
dinheiro, cuidados domésticos ou apenas por um ouvido para escutar os sonhos,
reclames e devaneios do momento. Em ambas as fases a autoafirmação se faz
presente na cabeça de cada um (sentimento que às vezes nunca se vai, no caso do
inseguro e fugidio) e volta-e-meia dá as caras, lembrando-nos de que as coisas
poderiam ser melhores, que faltou alguma dedicação. É claro que crescer sob
cobranças facilita o surgimento de obsessões e magalomanias.
Parece que é preciso continuar o bordado e torná-lo mais
bonito e pomposo, com uma complexidade crescente, afinal a comparação com algum
perito traz aquela inveja de que nós não somos tão capazes de algo, fazer
melhor é superar o outro e a si. Aos que perseguem uma carreira profissional,
ter salário maior e promoções de cargo – flashes, fama e holofotes – é como
receber um sinal de que as coisas progridem conforme planejado. Contudo, haverá
sempre um peixe maior, não existe um topo, os limites nós mesmos traçamos,
sendo possível indefinidamente alargá-lo, feito um vício. Então, para quê serve
essa superação constante? Competitividade para anular a humildade e a
inferioridade que insiste em assombrar o vaidoso? Tudo isso só faz sentido
quando se relaciona com alguém que se envolve com os efeitos dessas
demonstrações de superioridade, e se agrava com a visão das pessoas como
objetos, ou mercadorias! Com rótulos, etiquetas e preços a comparação é
imediata. Um ermitão ou um cínico pouco se importaria com hierarquias e opinião
alheia; orgulhosos demais desconsideram seja quem for: deuses, semideuses,
inocentes ou indigentes.
O macho distinto, o chamariz na multidão, o pavão
galanteador ou o gorila provedor, todos esses símbolos que carregam consigo
aquela pitada de excelência, ainda que provisória, seduzem os homens, mas
também as mulheres, em especial as que assumem um papel social ativo. Porém, é
sabido que o falo representa algo mais aos homens, o pavor da castração é quase
nulo nas damas, ainda que estas sejam machonas. Emerge, então, essa necessidade
de orgulhar-se pela própria grandeza, virilidade e potencial de peripécias, e
bem cedo. Não é à toa que gangues são formadas por membros juvenis, em muitos
casos imberbes, à procura de desafios a serem superados, ainda que os de fora
os julguem como vulneráveis provocadores. Pichações, rachas e quedas-de-braço
tentam acalmar esses insensatos com um mínimo de status na panelinha. As
conquistas e as posses servem para preencher o vazio interior e acalmar a falta
de um selo de qualidade. A zica é alguns se empolgarem e se resumirem à facção,
importunando muito mais gente. Todavia, quem não passou por essas fases de
rebeldia e vanglória pode se preocupar demais com o marasmo – morreu sonhando.
“Eu queria provar para todo mundo que eu não precisava
provar nada para ninguém.” A melhor frase sobre a verdadeira superação da
autoafirmação. Mesmo ao ignorar o próximo, se a pessoa se esforçar em provar a
si que é boa o suficiente, esse orgulho não terá o mesmo ímpeto de quem fez
essa prova e também recebeu olhares e elogios, ou até críticas, de outrem.
Vejam os autistas, eles não estão se autoafirmando, eles apenas cumprem seu
dever internalizado, indiferentes a terem-no executado. Narciso tampouco se
deixava abater pelos paparicos alheios, só ele valia (em juízo e em beleza),
pensou ter-se tornado divino, o tal; ingênuo, tamanha adoração para tornar-se
um vegetal. Mas, de resto, os vaidosos sem interrupção, nós mesmos, sofremos
sem ter do público aprovação. O excesso de crítica, o opróbrio altercado e o
ostracismo têm-nos derrubado. Um desarranjo mental acende um alerta, um sinal;
atitudes inversas devem ser tomadas, sob pena de sofrimento crônico, amenizado
ao ingerir biotônicos. Porém, ser medíocre só por simpatizar pode ser
limítrofe.
Os
críticos de música detonam o excesso de firula e de intimismo de artistas com
muitos improvisos e arranjos complexos. Simplificar é o caminho, dizem, por que
complicar algo que pode ser direto e objetivo? A comunicação em tons maiores e
alegres transmite melhor a intenção do músico, mesmo um obscuro. Voltar à
simplicidade primitiva aparentemente é uma volta às origens da arte, algo
tradicional e mais facilmente digerido e comercializado. Porém, quem se vê
diferente dos demais precisa fugir das obviedades, deseja esconder algo dos
outros, nem que seja apenas para se sentir imune aos ataques dos ouvintes ou
leitores, pois eles jamais captarão o original intuito do interlocutor, que
sonha com linguagem privada. É como um mágico que pratica um truque não
descoberto, ao menos pelos não especialistas. Ele está simplesmente se pondo em
posição superior, nem que seja num trono imaginário – há muitos Napoleões por
aí. Ilusionista iludido, pois toda linguagem é pública e carrega consigo
inúmeras informações, inclusive as inconscientes. Proselitismo, porém sem essa
dose de auto-engano ninguém teria forças para tentar e se aperfeiçoar.
E
quem mais se engana? Quem desconhece a si e, confuso diante do mundo, esse
palco giratório sem hora para encerrar os atos, age, ou melhor, reage, só para
garantir alguma marca indelével na natureza: sua digital, única e
pretensiosamente insubstituível. Atualmente, a identidade do jovem exige um
mínimo de posses, conquistas e adereços que simbolizem certas origens,
convicções e anseios, facilmente lidos e enquadrados pelo público. Ao seguir
esse fluxo do sistema, a tendência é manter o padrão de atuação até envelhecer,
claro que com picos e declives, dependendo da inserção social e do impacto do
retorno (feedback) sobre esse, até então, jovem. Eu vejo a vaidade como o maior
estímulo à autoafirmação do indivíduo; a autoestima é diretamente proporcional
à análise interna dos hábitos praticados, analisados, contudo, pela ótica
imaginada do outro por ele valorizado. Portanto, externa.
É importante sentir-se engajado
para realizar façanhas que beneficiem a sociedade, e ainda auferir com isso
elogios e prêmios. Mas ficar obcecado em ter que transmitir um suposto sucesso
pessoal é outra coisa. O sucesso é mais sólido e bem visto quando é
conseqüência do trabalho do que quando é um desígnio, um alvo, o foco. A
maioria é sempre formada pelo comum, o ordinário, porém como as pessoas se
sentem obrigadas em ser amadas, mesmo sendo deficitárias de qualidades
destacáveis, elas tentam a qualquer custo agradar, resultando nesse excesso de
pose e vaidade que verificamos em idas a shoppings e concursos de qualquer
bobagem. Sendo assim, o objetivo é mais causar inveja nos frustrados e
incompetentes do que autoafirmar-se, no sentido de superar fraquezas.
Autenticidade – no que for possível enquanto ser autônomo em relação às
influências do cotidiano – é equilíbrio entre vaidade e liberdade, visando
progresso pessoal. Já que somos sujeitos no ambiente, e estamos sujeitos ao
ambiente, vamos garantir doravante a nossa felicidade, e de quebra alegrando o
entorno cheio de vaidosos, de invejosos e de inseguros como nós, cada qual em
seu nível de satisfação. Conhece-te a ti mesmo e assevera tua consciência a
viver bem, sem tanta severidade.
.,;
Nenhum comentário:
Postar um comentário