9 de junho de 2012

Sobre Autoafirmação


Conquistar a independência pessoal não é uma tarefa das mais tranqüilas. A transição para a vida adulta exige esse abandono da dependência financeira, afetiva e intelectual da família a fim de caminhar com os próprios pés e tomar as próprias decisões perante os imprevistos do mundo. Após essa fase, viria a da interdependência, que é o reconhecimento de que não é possível realizar tudo sozinho, que sempre haverá uma carência, seja por afeto, dinheiro, cuidados domésticos ou apenas por um ouvido para escutar os sonhos, reclames e devaneios do momento. Em ambas as fases a autoafirmação se faz presente na cabeça de cada um (sentimento que às vezes nunca se vai, no caso do inseguro e fugidio) e volta-e-meia dá as caras, lembrando-nos de que as coisas poderiam ser melhores, que faltou alguma dedicação. É claro que crescer sob cobranças facilita o surgimento de obsessões e magalomanias.

Parece que é preciso continuar o bordado e torná-lo mais bonito e pomposo, com uma complexidade crescente, afinal a comparação com algum perito traz aquela inveja de que nós não somos tão capazes de algo, fazer melhor é superar o outro e a si. Aos que perseguem uma carreira profissional, ter salário maior e promoções de cargo – flashes, fama e holofotes – é como receber um sinal de que as coisas progridem conforme planejado. Contudo, haverá sempre um peixe maior, não existe um topo, os limites nós mesmos traçamos, sendo possível indefinidamente alargá-lo, feito um vício. Então, para quê serve essa superação constante? Competitividade para anular a humildade e a inferioridade que insiste em assombrar o vaidoso? Tudo isso só faz sentido quando se relaciona com alguém que se envolve com os efeitos dessas demonstrações de superioridade, e se agrava com a visão das pessoas como objetos, ou mercadorias! Com rótulos, etiquetas e preços a comparação é imediata. Um ermitão ou um cínico pouco se importaria com hierarquias e opinião alheia; orgulhosos demais desconsideram seja quem for: deuses, semideuses, inocentes ou indigentes.  

O macho distinto, o chamariz na multidão, o pavão galanteador ou o gorila provedor, todos esses símbolos que carregam consigo aquela pitada de excelência, ainda que provisória, seduzem os homens, mas também as mulheres, em especial as que assumem um papel social ativo. Porém, é sabido que o falo representa algo mais aos homens, o pavor da castração é quase nulo nas damas, ainda que estas sejam machonas. Emerge, então, essa necessidade de orgulhar-se pela própria grandeza, virilidade e potencial de peripécias, e bem cedo. Não é à toa que gangues são formadas por membros juvenis, em muitos casos imberbes, à procura de desafios a serem superados, ainda que os de fora os julguem como vulneráveis provocadores. Pichações, rachas e quedas-de-braço tentam acalmar esses insensatos com um mínimo de status na panelinha. As conquistas e as posses servem para preencher o vazio interior e acalmar a falta de um selo de qualidade. A zica é alguns se empolgarem e se resumirem à facção, importunando muito mais gente. Todavia, quem não passou por essas fases de rebeldia e vanglória pode se preocupar demais com o marasmo – morreu sonhando.

“Eu queria provar para todo mundo que eu não precisava provar nada para ninguém.” A melhor frase sobre a verdadeira superação da autoafirmação. Mesmo ao ignorar o próximo, se a pessoa se esforçar em provar a si que é boa o suficiente, esse orgulho não terá o mesmo ímpeto de quem fez essa prova e também recebeu olhares e elogios, ou até críticas, de outrem. Vejam os autistas, eles não estão se autoafirmando, eles apenas cumprem seu dever internalizado, indiferentes a terem-no executado. Narciso tampouco se deixava abater pelos paparicos alheios, só ele valia (em juízo e em beleza), pensou ter-se tornado divino, o tal; ingênuo, tamanha adoração para tornar-se um vegetal. Mas, de resto, os vaidosos sem interrupção, nós mesmos, sofremos sem ter do público aprovação. O excesso de crítica, o opróbrio altercado e o ostracismo têm-nos derrubado. Um desarranjo mental acende um alerta, um sinal; atitudes inversas devem ser tomadas, sob pena de sofrimento crônico, amenizado ao ingerir biotônicos. Porém, ser medíocre só por simpatizar pode ser limítrofe.

                Os críticos de música detonam o excesso de firula e de intimismo de artistas com muitos improvisos e arranjos complexos. Simplificar é o caminho, dizem, por que complicar algo que pode ser direto e objetivo? A comunicação em tons maiores e alegres transmite melhor a intenção do músico, mesmo um obscuro. Voltar à simplicidade primitiva aparentemente é uma volta às origens da arte, algo tradicional e mais facilmente digerido e comercializado. Porém, quem se vê diferente dos demais precisa fugir das obviedades, deseja esconder algo dos outros, nem que seja apenas para se sentir imune aos ataques dos ouvintes ou leitores, pois eles jamais captarão o original intuito do interlocutor, que sonha com linguagem privada. É como um mágico que pratica um truque não descoberto, ao menos pelos não especialistas. Ele está simplesmente se pondo em posição superior, nem que seja num trono imaginário – há muitos Napoleões por aí. Ilusionista iludido, pois toda linguagem é pública e carrega consigo inúmeras informações, inclusive as inconscientes. Proselitismo, porém sem essa dose de auto-engano ninguém teria forças para tentar e se aperfeiçoar.

                E quem mais se engana? Quem desconhece a si e, confuso diante do mundo, esse palco giratório sem hora para encerrar os atos, age, ou melhor, reage, só para garantir alguma marca indelével na natureza: sua digital, única e pretensiosamente insubstituível. Atualmente, a identidade do jovem exige um mínimo de posses, conquistas e adereços que simbolizem certas origens, convicções e anseios, facilmente lidos e enquadrados pelo público. Ao seguir esse fluxo do sistema, a tendência é manter o padrão de atuação até envelhecer, claro que com picos e declives, dependendo da inserção social e do impacto do retorno (feedback) sobre esse, até então, jovem. Eu vejo a vaidade como o maior estímulo à autoafirmação do indivíduo; a autoestima é diretamente proporcional à análise interna dos hábitos praticados, analisados, contudo, pela ótica imaginada do outro por ele valorizado. Portanto, externa.

É importante sentir-se engajado para realizar façanhas que beneficiem a sociedade, e ainda auferir com isso elogios e prêmios. Mas ficar obcecado em ter que transmitir um suposto sucesso pessoal é outra coisa. O sucesso é mais sólido e bem visto quando é conseqüência do trabalho do que quando é um desígnio, um alvo, o foco. A maioria é sempre formada pelo comum, o ordinário, porém como as pessoas se sentem obrigadas em ser amadas, mesmo sendo deficitárias de qualidades destacáveis, elas tentam a qualquer custo agradar, resultando nesse excesso de pose e vaidade que verificamos em idas a shoppings e concursos de qualquer bobagem. Sendo assim, o objetivo é mais causar inveja nos frustrados e incompetentes do que autoafirmar-se, no sentido de superar fraquezas. Autenticidade – no que for possível enquanto ser autônomo em relação às influências do cotidiano – é equilíbrio entre vaidade e liberdade, visando progresso pessoal. Já que somos sujeitos no ambiente, e estamos sujeitos ao ambiente, vamos garantir doravante a nossa felicidade, e de quebra alegrando o entorno cheio de vaidosos, de invejosos e de inseguros como nós, cada qual em seu nível de satisfação. Conhece-te a ti mesmo e assevera tua consciência a viver bem, sem tanta severidade. 
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