É mais fácil destruir do que construir, isso é intuitivo. A
existência pessoal nunca está acabada, apesar de todas acabarem. A vida é
construída o tempo todo, mas basta um mísero infortúnio, como uma agulha
contaminada ou um alucinado de arma em punho, para que a morte se apresente com
toda sua perversidade, sempre à espreita para alegria das funerárias, esse
serviço funesto que lucra com a tristeza alheia. Toda mudança pode ser vista
como uma morte, da convicção, aquela idéia acoplada ao ego. Os impacientes são
agressivos diante das transições; quem não percebeu o valor das sutilezas quer
passar como um trator sobre o incompreensível, portanto incontrolável e
amedrontador, isto é, algo acima de suas forças rudimentares. Os orientais há
muito sabem e ensinam a virtude da paciência, estão acostumados com o contato
com a natureza, tão grandiosa e sublime quando contemplada em conforto, e com
as relações sociais em ambientes sofríveis e apinhados; a vida zen arrefece a
agressividade teimosa que a qualquer momento pode irromper como uma bomba.
Os jovens de hoje, os garotinhos criados em apartamento, em
condomínio ou outro lar urbano, quase sempre trancafiados por causa do zelo
excessivo de pais atordoados com as notícias alarmantes da violência sempre
crescente, apesar de nunca citarem as estatísticas em queda, esses jovens quase
não têm raiz, isto é, há pouca tradição transmitida, não sabem de onde vieram e
se identificam com algo imediato que lhes afeta. Não é tanto culpa da falta de
comunicação dos pais, estes também desconhecem a própria linhagem ou então
querem esquecer um passado rural e tortuoso, digno de pena diante de valores
burgueses tão em voga nos shoppings, vitrines e anúncios metropolitanos; é mais
culpa do acelerado êxodo rural e da falta de mestres, com excesso de ídolos.
Voltando ao imediato, quero dizer com isso a influência sobre os jovens de algo
que seduz pelo efeito avassalador de causar prazer e liberar frustrações, como
é o caso do videogame (item para mim emblemático), ou da Barbie e do sonho de
ser princesa contemporânea, no caso das meninas. Nas entrelinhas a indústria
transmite sua mensagem a quem não tem discernimento, então os pais acatam, ao
notarem o brilho nos olhos de seus rebentos, além de não verem mal algum em
compartilhar valores consumistas e vaidosos. E o ciclo segue: é fácil convencer
uma mente em branco.
Isso daí levará a que? Onde quero chegar com esse preâmbulo
gratuito? Novamente sairei do nada e chegarei a lugar nenhum? Ou desta vez
haverá uma conclusão clara e perceptível? Bem, isso depende do leitor, enquanto
isso eu tentarei desenvolver minha argumentação. A psicanálise nos ensina sobre
a importância dos primeiros momentos de vida, a tal relação quase simbiótica
com a mãe, além dos traumas infantis, entre outras teorias para lá de
controversas no meio acadêmico. É certo que a saída do conforto da barriga, do
colo, dos braços, da casa, quem sabe da cidade, da mãe, ou mesmo do pai, se
este criar um laço forte já na primeira fase da vida da criança, essa saída,
ainda que temporária, é impactante para uma cabecinha frágil e medrosa. Passa o
tempo, a relação com os pais, que em geral é afetuosa e pacífica, vai se
revelando mais humana, ou animal, com advertências, violência e erros; a noção
de pai herói ou de mãe perfeita vai diminuindo, pois é claro que de perto todos
têm defeitos, mas isso não significa que a admiração por eles diminua – nesse
ponto se trata de outro processo complexo que não esmiuçarei aqui. Além disso,
as informações externas podem chegar com mais força do que a referência
paternal, ainda que essa sempre seja um paradigma para quem vive em família. Enfim ,
quero dizer que mesmo na redoma do lar sentimentos negativos podem aflorar. Com
o contato crescente com o mundo dos “outros”, do desconhecido com 1001
possibilidades, esses incômodos sem dúvida aparecerão, pois retira as crianças
da zona de conforto, testa-as – atitudes criativas e respostas elaboradas são
exigidas.
Com isso, eu chego ao ponto central: nossa reação perante o
imprevisto. Qual a primeira impressão que temos diante do que não estamos
acostumados e que na maioria das vezes nos deixa acuados, senão perplexos? É a
rejeição, a negação, o preconceito, a vontade de eliminar. O ódio é instintivo,
suplantá-lo seria exigir uma posição humilde ou desapegada ou compreensiva, ou
amorosa (o amor é o oposto do ódio). Porém, somos seres etnocêntricos, não
gostamos de admitir que nosso lugar não seja bom, seria uma ofensa pessoal, sem
esse auto-engano passional de que nossa nação (etnia, clube, ou algo do tipo) é
a melhor, ou ao menos é correta e formadora de pessoas superiores ou
preparadas, nossa existência estaria em perigo, haveria crise, um momento de
ruptura urgente que deixou tal nação sem sentido. Com o individualismo, esse
etnocentrismo, ainda que sem raízes históricas, se acentua, pois o Eu se torna
o Deus a cultuar, ofendê-lo seria uma blasfêmia, é mister tirar satisfação.
As religiões em geral pregam a humildade justamente para
haver menos guerras, mortes e uma cultura de ódio sem fim. Entretanto, elas se
utilizam de discursos simplistas e servis. Também não somos uns canibais, nem
tão “homem lobo do homem”, somos seres sociais e solidários, contudo sempre
desconfiamos do vizinho. Sem um mínimo de humildade, alteridade e compaixão
haveria mais mortes do que nascimentos, o que inviabilizaria a sobrevivência de
um povo, ainda mais com armas na mão. Essa lei da selva, ou de pirata como eu
prefiro chamar, predomina em locais sem essa lição de humildade, principalmente
com homens competitivos e vingativos (a vingança é outra reação odiosa). E por
que esse ódio cresce tanto? É justamente pela afronta ao status quo, que muitos
preferem chamar de honra. É impossível eliminar isso, é a primeira reação. Uma
civilização que busque infiltrar valores transcendentais ou progressistas ou
persistentes (no sentido de uma obra que perdure) deverá ter cidadãos educados
a superar esse instinto destrutivo. Sem a tolerância resta o enfrentamento, que
numa barbárie se traduz em guerra civil, ou na submissão como valor.
A infantilidade das pessoas gera reações agressivas. Talvez
eu esteja em defesa de uma sociedade pacífica demais, com valores positivistas
e racionais em demasia, porém devo criticar essas pulsões de morte (Thânatos)
quando efetivadas – a estupidez humana é sem limites. A educação e a prática da
convivência cordial, que servem de exemplos sólidos aos que não têm uma
referência prolongada de violência, ou mesmo a estes, parece-me o caminho mais
eficiente para uma cultura cortês, disciplinada, em defesa de obras mais elevadas
do que brigas de rua. É claro que não há como sonhar em eliminar a
agressividade, todavia pode-se sonhar com agressões canalizadas em obras de
arte, esporte ou jogos sem feridos. De novo, o videogame como refúgio. Ao se
pôr “na pele ou na mente” de uma personagem a pessoa pode fazer o que quiser
sem risco de punição, uma situação cômoda, contudo ela passa a compreender um
mínimo sobre ver o mundo de outra ótica. No caso dos jogos violentos a raiva
contida é descontada virtualmente, costumando ser suficiente para evitar
maiores danos.
Por fim, cito o fenômeno das redes sociais. Parece que todos
precisam se expor para sentirem que pertencem à sociedade ou mesmo ao mundo.
Todos agora precisam ter e demonstrar opiniões, ainda que sejam sem embasamento
e homogêneas, na verdade é preferível que sejam semelhantes à da maioria, há
menos risco de repreensão. E quais são os usuários mais freqüentes e
comentadores? Justamente os jovens, os que se encontram frustrados por não
terem realizado ainda algo grandioso, por não terem uma identidade definida,
por perceberem o esvaziamento de sentido nas coisas, enfim, por não se sentirem
satisfeitos com a própria existência, geralmente parasitária, sendo assim,
partem a direcionar suas raivas ao que lhes desconforta, por mais ínfimo e
banal que seja. Ato geralmente praticado na covardia do anonimato e no conforto
da cadeira do quarto. Ali fica fácil berrar, eu quero ver gritar na cara do
traficante que ele é um câncer social, ou ao político que ele enoja o país, ou
ao tirano que ele deve morrer, correndo o risco de ser mordido por um cão, ter
a mãe morta, levar spray na cara ou levar pedrada na cabeça como os egípcios.
Mas não, reclamam que a Microsoft está com layout ultrapassado ou que o
Facebook censurou suas fotos.
Raulzito teria vergonha desse povo que só sabe protestar e
desafogar sua ira barata sem ao menos ser um latino-americano que sabe se
lamentar. Raulzito não aprovaria uma geração pró-sistema e que é metamorfose
ambulante, mas que não se admite nem se admira como tal. Geração em que todos
têm uma já velha opinião formada sobre tudo sem nem ter tido a oportunidade de
confrontar idéias, muito menos tempo de formular juízos. Ou seja, é mais fácil
xingar e botar a culpa no bode que rumará ao deserto para alcançar a redenção
que essa alcatéia de tolos lobisomens juvenis nunca terá. A ira cotidiana
precisa de palavrões. A irascibilidade corriqueira precisa desabafar no boteco
ou pela internet, sob pena de acumular chagas que resultarão em melancólicos
arrependidos. O rock outrora recebia de braços abertos esses gritos de
liberdade e de angústias, porém agora recebe o chororô dos frangotes.
É bom gritar, é bom desabafar, é bom protestar, mas é
preciso saber onde fazer, e principalmente como fazer. Os punks já demonstraram
sua infantilidade, os emos a sua depressão, os góticos a sua melancolia, entre
outros, sempre babacas surgirão reclamando com inveja da felicidade alheia,
ainda mais que todos possuem voz e meios de divulgá-la. Apesar da quase
obrigatoriedade de ser feliz, ou pelo menos de assim parecer, a sociedade está
doente, o aumento do consumo de remédios, drogas e livros de auto-ajuda e a
procura por psiquiatras, pastores e xamãs contemporâneos, em parte atesta isso.
Sempre nos assemelharemos a uma criança carente e apavorada no escuro. Saber
encarar a vida como a tradicional criança em contato com o mundo sempre novo e
fascinante é igualmente fascinante. Gritaremos às vezes e até quebraremos
alguns vidros, apenas demonstrando nossa incompreensão e fraqueza diante dos desafios.
Ambos são naturais, um é fácil e instintivo, já o outro é mais dureza de
praticar: o ódio destrói, o amor constrói.
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