3 de junho de 2012

Nossa irascibilidade corriqueira


É mais fácil destruir do que construir, isso é intuitivo. A existência pessoal nunca está acabada, apesar de todas acabarem. A vida é construída o tempo todo, mas basta um mísero infortúnio, como uma agulha contaminada ou um alucinado de arma em punho, para que a morte se apresente com toda sua perversidade, sempre à espreita para alegria das funerárias, esse serviço funesto que lucra com a tristeza alheia. Toda mudança pode ser vista como uma morte, da convicção, aquela idéia acoplada ao ego. Os impacientes são agressivos diante das transições; quem não percebeu o valor das sutilezas quer passar como um trator sobre o incompreensível, portanto incontrolável e amedrontador, isto é, algo acima de suas forças rudimentares. Os orientais há muito sabem e ensinam a virtude da paciência, estão acostumados com o contato com a natureza, tão grandiosa e sublime quando contemplada em conforto, e com as relações sociais em ambientes sofríveis e apinhados; a vida zen arrefece a agressividade teimosa que a qualquer momento pode irromper como uma bomba.  
Os jovens de hoje, os garotinhos criados em apartamento, em condomínio ou outro lar urbano, quase sempre trancafiados por causa do zelo excessivo de pais atordoados com as notícias alarmantes da violência sempre crescente, apesar de nunca citarem as estatísticas em queda, esses jovens quase não têm raiz, isto é, há pouca tradição transmitida, não sabem de onde vieram e se identificam com algo imediato que lhes afeta. Não é tanto culpa da falta de comunicação dos pais, estes também desconhecem a própria linhagem ou então querem esquecer um passado rural e tortuoso, digno de pena diante de valores burgueses tão em voga nos shoppings, vitrines e anúncios metropolitanos; é mais culpa do acelerado êxodo rural e da falta de mestres, com excesso de ídolos. Voltando ao imediato, quero dizer com isso a influência sobre os jovens de algo que seduz pelo efeito avassalador de causar prazer e liberar frustrações, como é o caso do videogame (item para mim emblemático), ou da Barbie e do sonho de ser princesa contemporânea, no caso das meninas. Nas entrelinhas a indústria transmite sua mensagem a quem não tem discernimento, então os pais acatam, ao notarem o brilho nos olhos de seus rebentos, além de não verem mal algum em compartilhar valores consumistas e vaidosos. E o ciclo segue: é fácil convencer uma mente em branco.
Isso daí levará a que? Onde quero chegar com esse preâmbulo gratuito? Novamente sairei do nada e chegarei a lugar nenhum? Ou desta vez haverá uma conclusão clara e perceptível? Bem, isso depende do leitor, enquanto isso eu tentarei desenvolver minha argumentação. A psicanálise nos ensina sobre a importância dos primeiros momentos de vida, a tal relação quase simbiótica com a mãe, além dos traumas infantis, entre outras teorias para lá de controversas no meio acadêmico. É certo que a saída do conforto da barriga, do colo, dos braços, da casa, quem sabe da cidade, da mãe, ou mesmo do pai, se este criar um laço forte já na primeira fase da vida da criança, essa saída, ainda que temporária, é impactante para uma cabecinha frágil e medrosa. Passa o tempo, a relação com os pais, que em geral é afetuosa e pacífica, vai se revelando mais humana, ou animal, com advertências, violência e erros; a noção de pai herói ou de mãe perfeita vai diminuindo, pois é claro que de perto todos têm defeitos, mas isso não significa que a admiração por eles diminua – nesse ponto se trata de outro processo complexo que não esmiuçarei aqui. Além disso, as informações externas podem chegar com mais força do que a referência paternal, ainda que essa sempre seja um paradigma para quem vive em família. Enfim, quero dizer que mesmo na redoma do lar sentimentos negativos podem aflorar. Com o contato crescente com o mundo dos “outros”, do desconhecido com 1001 possibilidades, esses incômodos sem dúvida aparecerão, pois retira as crianças da zona de conforto, testa-as – atitudes criativas e respostas elaboradas são exigidas.
Com isso, eu chego ao ponto central: nossa reação perante o imprevisto. Qual a primeira impressão que temos diante do que não estamos acostumados e que na maioria das vezes nos deixa acuados, senão perplexos? É a rejeição, a negação, o preconceito, a vontade de eliminar. O ódio é instintivo, suplantá-lo seria exigir uma posição humilde ou desapegada ou compreensiva, ou amorosa (o amor é o oposto do ódio). Porém, somos seres etnocêntricos, não gostamos de admitir que nosso lugar não seja bom, seria uma ofensa pessoal, sem esse auto-engano passional de que nossa nação (etnia, clube, ou algo do tipo) é a melhor, ou ao menos é correta e formadora de pessoas superiores ou preparadas, nossa existência estaria em perigo, haveria crise, um momento de ruptura urgente que deixou tal nação sem sentido. Com o individualismo, esse etnocentrismo, ainda que sem raízes históricas, se acentua, pois o Eu se torna o Deus a cultuar, ofendê-lo seria uma blasfêmia, é mister tirar satisfação.
As religiões em geral pregam a humildade justamente para haver menos guerras, mortes e uma cultura de ódio sem fim. Entretanto, elas se utilizam de discursos simplistas e servis. Também não somos uns canibais, nem tão “homem lobo do homem”, somos seres sociais e solidários, contudo sempre desconfiamos do vizinho. Sem um mínimo de humildade, alteridade e compaixão haveria mais mortes do que nascimentos, o que inviabilizaria a sobrevivência de um povo, ainda mais com armas na mão. Essa lei da selva, ou de pirata como eu prefiro chamar, predomina em locais sem essa lição de humildade, principalmente com homens competitivos e vingativos (a vingança é outra reação odiosa). E por que esse ódio cresce tanto? É justamente pela afronta ao status quo, que muitos preferem chamar de honra. É impossível eliminar isso, é a primeira reação. Uma civilização que busque infiltrar valores transcendentais ou progressistas ou persistentes (no sentido de uma obra que perdure) deverá ter cidadãos educados a superar esse instinto destrutivo. Sem a tolerância resta o enfrentamento, que numa barbárie se traduz em guerra civil, ou na submissão como valor.
A infantilidade das pessoas gera reações agressivas. Talvez eu esteja em defesa de uma sociedade pacífica demais, com valores positivistas e racionais em demasia, porém devo criticar essas pulsões de morte (Thânatos) quando efetivadas – a estupidez humana é sem limites. A educação e a prática da convivência cordial, que servem de exemplos sólidos aos que não têm uma referência prolongada de violência, ou mesmo a estes, parece-me o caminho mais eficiente para uma cultura cortês, disciplinada, em defesa de obras mais elevadas do que brigas de rua. É claro que não há como sonhar em eliminar a agressividade, todavia pode-se sonhar com agressões canalizadas em obras de arte, esporte ou jogos sem feridos. De novo, o videogame como refúgio. Ao se pôr “na pele ou na mente” de uma personagem a pessoa pode fazer o que quiser sem risco de punição, uma situação cômoda, contudo ela passa a compreender um mínimo sobre ver o mundo de outra ótica. No caso dos jogos violentos a raiva contida é descontada virtualmente, costumando ser suficiente para evitar maiores danos.
Por fim, cito o fenômeno das redes sociais. Parece que todos precisam se expor para sentirem que pertencem à sociedade ou mesmo ao mundo. Todos agora precisam ter e demonstrar opiniões, ainda que sejam sem embasamento e homogêneas, na verdade é preferível que sejam semelhantes à da maioria, há menos risco de repreensão. E quais são os usuários mais freqüentes e comentadores? Justamente os jovens, os que se encontram frustrados por não terem realizado ainda algo grandioso, por não terem uma identidade definida, por perceberem o esvaziamento de sentido nas coisas, enfim, por não se sentirem satisfeitos com a própria existência, geralmente parasitária, sendo assim, partem a direcionar suas raivas ao que lhes desconforta, por mais ínfimo e banal que seja. Ato geralmente praticado na covardia do anonimato e no conforto da cadeira do quarto. Ali fica fácil berrar, eu quero ver gritar na cara do traficante que ele é um câncer social, ou ao político que ele enoja o país, ou ao tirano que ele deve morrer, correndo o risco de ser mordido por um cão, ter a mãe morta, levar spray na cara ou levar pedrada na cabeça como os egípcios. Mas não, reclamam que a Microsoft está com layout ultrapassado ou que o Facebook censurou suas fotos.
Raulzito teria vergonha desse povo que só sabe protestar e desafogar sua ira barata sem ao menos ser um latino-americano que sabe se lamentar. Raulzito não aprovaria uma geração pró-sistema e que é metamorfose ambulante, mas que não se admite nem se admira como tal. Geração em que todos têm uma já velha opinião formada sobre tudo sem nem ter tido a oportunidade de confrontar idéias, muito menos tempo de formular juízos. Ou seja, é mais fácil xingar e botar a culpa no bode que rumará ao deserto para alcançar a redenção que essa alcatéia de tolos lobisomens juvenis nunca terá. A ira cotidiana precisa de palavrões. A irascibilidade corriqueira precisa desabafar no boteco ou pela internet, sob pena de acumular chagas que resultarão em melancólicos arrependidos. O rock outrora recebia de braços abertos esses gritos de liberdade e de angústias, porém agora recebe o chororô dos frangotes.
É bom gritar, é bom desabafar, é bom protestar, mas é preciso saber onde fazer, e principalmente como fazer. Os punks já demonstraram sua infantilidade, os emos a sua depressão, os góticos a sua melancolia, entre outros, sempre babacas surgirão reclamando com inveja da felicidade alheia, ainda mais que todos possuem voz e meios de divulgá-la. Apesar da quase obrigatoriedade de ser feliz, ou pelo menos de assim parecer, a sociedade está doente, o aumento do consumo de remédios, drogas e livros de auto-ajuda e a procura por psiquiatras, pastores e xamãs contemporâneos, em parte atesta isso. Sempre nos assemelharemos a uma criança carente e apavorada no escuro. Saber encarar a vida como a tradicional criança em contato com o mundo sempre novo e fascinante é igualmente fascinante. Gritaremos às vezes e até quebraremos alguns vidros, apenas demonstrando nossa incompreensão e fraqueza diante dos desafios. Ambos são naturais, um é fácil e instintivo, já o outro é mais dureza de praticar: o ódio destrói, o amor constrói.

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