II
Por que os
valores tácitos e a moral de uma sociedade precisam ser seguidos à risca? Por
que não subvertê-los ou esfregar na cara dos cidadãos civilizados que seus
hábitos são singelas conveniências que em outro momento ou local não são
regras? Alguns precisam desses chacoalhões para acordar e perceber a banalidade
de toda etiqueta e padrão de conduta. Além disso, a maior circulação de
pessoas, portanto de ideias, favorecem a competição de interesses, e nesse jogo
político não há resposta definitiva. Portanto, convicções tornam-se bobagens
que o ego e a coesão social precisam defender arbitrariamente, evitando o consequente
rebaixamento. Ora, a tendência de uma cidade em crescimento é misturar tudo, as
influências não possuem limites definidos, logo cada valor bebeu daqui e dali;
a pureza havia se perdido há tempos.
Nota-se que
essa confluência de memes perturba a lógica organizadora. E o homem, apesar de
não ser dominado por ela, dentro de uma sociedade instituída, utiliza-a
bastante, com fins de segurança. Ou seja, para não cair em confusões imensas
que atordoam, o sujeito serve-se do logos, impedindo que a instrução recebida
não seja capaz de compreendê-las. Dessa maneira ele pode cumprir seu papel
social com os significados que costumava colocar anteriormente, quando havia
uma percepção de estabilidade. Essa situação estável não existe mais, mas ele sente
que existe. Do contrário, entraria em parafuso, chutando o balde e ignorando
honras e reputações. Rejeitá-las é o que faz o cínico. Ele percebeu o caos de
tantos interesses conflitantes e desprezou a cultura, que até servira em
pequenas comunidades, mas que em uma metrópole (ou perto disso) é inócua. Daí o
cosmopolitismo como preceito, pois poucas leis universais servem em qualquer
lugar, as outras são picuinhas. Os homens são todos semelhantes, é besteira
arrogar a inserção num grupo superior.
O filósofo e
naturalista Thoreau e o ensaísta e aristocrata Montaigne foram muito
influenciados pelas ideias cínicas. Reclusos, demonstraram a seus
contemporâneos e principalmente aos homens do futuro um modo virtuoso e
desapegado de viver. Thoreau foi para os bosques buscar somente o que fosse
essencial à vida e fez amizade com os bichos e as plantas. Contestou os avanços
industriais e fez a cabeça de líderes pacifistas do século XX. Montaigne foi
para seu castelo e, em homenagem a seu amigo Étienne de la Boétie, escreveu
pensamentos avançados e ousados que muito tempo depois foram compreendidos e
aplicados. Quis saber o que era possível saber e não foi além do básico e
frugal. Ambos se prepararam para a morte e nada lamentaram, mesmo sem a certeza
de outra vida.
Para superar
as reviravoltas, ou segue-se o sistema, sem parar para refletir e questionar,
ou volta-se para si, seguindo a velha máxima délfica do “conhece-te a ti
mesmo”. O cinismo defende a segunda opção, pois seria o único modo de alcançar
serenidade e certezas. Isso remete ao estoicismo, que foi bastante influenciado
pelos cínicos, mas sem o humor inerente à escola de Antístenes e infelizmente
tomado de metafísica que adia a satisfação para um porvir que nunca chega.
Ambos buscam autonomia, ou autarquia (o termo preciso em grego), que é
liberdade e controle sobre si. Os monges budistas e os mosteiros cristãos
também almejam isso, só que são sérios demais para se permitirem extravagâncias
como masturbar-se em público, pedir esmola para estátua ou dividir parceiros
sexuais com quem se propuser a transar. Foi preciso nascer um Marquês de Sade para
chocar através de uma voluptuosidade que pouco ambiciona, apenas realiza.
Depender cada vez menos das coisas exteriores e não precisar buscá-las é
autodomínio, e ser senhor de si acalma. O estoico e o cínico almejam essa
ataraxia, mas o segundo não a transcende.
Isso porque o
cínico abandonou os deuses da tradição, sabe que eles servem de desculpas para
atos incorretos e não são os verdadeiros. As coisas do homem (cultura) e as
divinas (naturais) não se conjugam, contudo a maioria não aceita isso. Ele
blasfema contra os santos e as divindades louvadas em praça pública, bem como
escandaliza o beato cidadão. Logo, como é possível ficar bem sem deuses inteligíveis
e sendo mais uma ínfima criatura tentando manter a vida? Ele sente-se como um
semideus capaz de desmerecer contendas e apreensões humanas e ao mesmo tempo é
simplório como um cão. Ao agir conforme exige a natureza, voltar-se-á junto aos
animais, mas sendo um que usa mais o que é chamado racionalidade e que julga possuir um eu.
Entretanto, alguém
pode concluir que o retorno à vida frugal e rústica é estar mais próximo do magnânimo
criador. Quem conclui desse modo é um cínico pouco filosófico. Após ter mostrado
aos homens os limites de suas capacidades, fez de seu mundinho o verdadeiro e
redentor. Ora, agiu da mesma forma que seus desafetos. Foi contraditório. Como
alguns se empolgaram com a maneira cínica de viver, não se atentaram à inerente
falha de toda ética e postularam-se donos da verdade e únicos a exercer
virtudes. Quem assim operou foi mais um pretensioso e petulante, fingiu ser divino.
A própria Natureza é divina – a metafísica cínica era panteísta, como a maioria
das orientais – e indiferente ao homem, ele mesmo é o culpado e o abençoado por
seus atos, a natureza apenas devolve o que recebeu, de forma impassível e
isonômica.
Até hoje quem
chega às conclusões cínicas costuma se apegar a um deus qualquer ou a cometer
atos drásticos, como matar ou se suicidar. É muito pesado esse fardo de ser
pequeno, estar sem mestres e ainda tentar ser venturoso. Perdido, o homem não
costuma optar por essa filosofia, mas por consolos. Porém, a divindade se
revelará fantasiosa enquanto a razão não ceder lugar à fé. Não dá para retornar
à irracionalidade. É nítida a tendência ao niilismo aqui. O movimento hippie
caiu nessa armadilha. Após negar sua participação numa sociedade cruel,
recluiu-se, mas conjecturou tantas hipóteses alternativas que abdicaram da
razão e se entregaram a entorpecentes que ampliam o uso da parte inconsciente
do cérebro e a quimeras sem quaisquer evidências. Diante do nada, escolheu o
prazer. Isso é mais uma face do pessimismo que não encontra respostas. Ou se
opta pela ascese estoica ou pelo gozo repetido (hedonismo) – entre Antístenes e
Aristipo. O exercício constante da razão angustia, e aliado à decadência
material e política – o que claramente ocorreu no mundo helênico -, fez sobrar
pouco espaço para a vitalidade e o vigor instintivos dos tempos áureos.
A tristeza contumaz
é um estado insuportável, é contrária à vida. Os rituais primitivos buscavam
afastar os maus espíritos que reduziam a alegria dos homens. Só que as forças sobrenaturais
perderam seu poder perante a razão disciplinadora e controladora. Ao mesmo
tempo em que o logos liberta o indivíduo das sombras e dos monstros do que é
inexplicável, ele reconhece as limitações humanas. Seu excesso funda e estrutura
uma cultura permeada por interditos proibitórios. Se há pujança, poderio e
harmonia social as pessoas não andarão cabisbaixas e sorumbáticas, agirão
naturalmente, sem muita reflexão e confiando no vizinho. Mas se desgraças
sobrevêm e o sofrimento é prolongado, é preciso ruminar soluções até o triunfo
chegar. Unir logos e fracasso é a fórmula do desgosto. Escapar desse cenário
desolador foi a busca dos gregos sob o jugo dos macedônios e romanos. As
escolas céticas, estoicas e cirenaicas propuseram saídas à derrocada iminente.
Não tiveram vida longa no meio helênico, mas suas bases servem de modelo até
hoje. A cada crise e ruptura esse pessimismo é retomado.
Varrer para
longe os tabus e o desconforto pela crescente manipulação e escravização dos
meios culturais sobre o indivíduo é o que almejam os cínicos. Mas onde eles
veem honestidade, virtude e liberdade, os demais veem perversão, extravagância
e ingenuidade. Os gregos eram reticentes com os estrangeiros (bárbaros), comportamentos
esdrúxulos por parte desses foram interpretados majoritariamente como
incivilizados, portanto dignos de repúdio. O cínico tinha ciência desse
desprezo social e retribui quase que na mesma moeda, mas por motivos bastante distintos.
Radicalizar e afrontar ouvintes foram modos de agir que perguntavam: “O que
realmente importa?”. Poucos ousaram e souberam responder, não sem antes
titubear.
Só pela
renúncia ao estritamente humano e cultural seria possível a felicidade, que não
está garantida. E estar feliz, para um cínico, é estar com o mínimo de
sensações e de dores. Deixar o corpo e a alma estáveis e serenos é uma luta inglória,
mas vale a pena, segundo os cínicos e os estoicos. O fato é que as mudanças num
mundo híbrido e com ramificações exponencialmente maiores assustam quem deseja essa
paz de espírito e um olhar mais lento, duradouro e profundo, a fim de captar a
essência das coisas. O cínico tem sérias restrições ao futuro imprevisível e
altamente mutante. Ele não conseguirá se conhecer e nem saberá o que valorizar.
O estado selvagem é mais pacato e previsível, e com segredos mais belos. Ali se
encontra a promessa de plenitude. Não é preciso procurar alegrias, basta ser
coerente com a Natureza, assim poderá estar contente. É simplesmente querer o
menos pior e não se perder com desmedidas ambições. O porém é que certas
conquistas civilizatórias são quase irrenunciáveis e geram outros desejos.
No fim, esse
desprezo pela humanidade pode se revelar apreço pelo cosmos. Não sem assumir
grandes riscos pela crença na contracorrente. Ser alternativo exige tenacidade.
P.S.: Pode não parecer, mas esse texto me deu um trabalho do cão. Foi uma tomada de consciência de minhas limitações teóricas, acadêmicas, sintáticas e literárias. Mas talvez um cínico diria para mim: "em que isso importa? Vc não saiu do lugar". É difícil mesmo ser um cínico...