28 de janeiro de 2013

Sobre a Filosofia Cínica - pt. 2


II

Por que os valores tácitos e a moral de uma sociedade precisam ser seguidos à risca? Por que não subvertê-los ou esfregar na cara dos cidadãos civilizados que seus hábitos são singelas conveniências que em outro momento ou local não são regras? Alguns precisam desses chacoalhões para acordar e perceber a banalidade de toda etiqueta e padrão de conduta. Além disso, a maior circulação de pessoas, portanto de ideias, favorecem a competição de interesses, e nesse jogo político não há resposta definitiva. Portanto, convicções tornam-se bobagens que o ego e a coesão social precisam defender arbitrariamente, evitando o consequente rebaixamento. Ora, a tendência de uma cidade em crescimento é misturar tudo, as influências não possuem limites definidos, logo cada valor bebeu daqui e dali; a pureza havia se perdido há tempos.

Nota-se que essa confluência de memes perturba a lógica organizadora. E o homem, apesar de não ser dominado por ela, dentro de uma sociedade instituída, utiliza-a bastante, com fins de segurança. Ou seja, para não cair em confusões imensas que atordoam, o sujeito serve-se do logos, impedindo que a instrução recebida não seja capaz de compreendê-las. Dessa maneira ele pode cumprir seu papel social com os significados que costumava colocar anteriormente, quando havia uma percepção de estabilidade. Essa situação estável não existe mais, mas ele sente que existe. Do contrário, entraria em parafuso, chutando o balde e ignorando honras e reputações. Rejeitá-las é o que faz o cínico. Ele percebeu o caos de tantos interesses conflitantes e desprezou a cultura, que até servira em pequenas comunidades, mas que em uma metrópole (ou perto disso) é inócua. Daí o cosmopolitismo como preceito, pois poucas leis universais servem em qualquer lugar, as outras são picuinhas. Os homens são todos semelhantes, é besteira arrogar a inserção num grupo superior.

O filósofo e naturalista Thoreau e o ensaísta e aristocrata Montaigne foram muito influenciados pelas ideias cínicas. Reclusos, demonstraram a seus contemporâneos e principalmente aos homens do futuro um modo virtuoso e desapegado de viver. Thoreau foi para os bosques buscar somente o que fosse essencial à vida e fez amizade com os bichos e as plantas. Contestou os avanços industriais e fez a cabeça de líderes pacifistas do século XX. Montaigne foi para seu castelo e, em homenagem a seu amigo Étienne de la Boétie, escreveu pensamentos avançados e ousados que muito tempo depois foram compreendidos e aplicados. Quis saber o que era possível saber e não foi além do básico e frugal. Ambos se prepararam para a morte e nada lamentaram, mesmo sem a certeza de outra vida.

Para superar as reviravoltas, ou segue-se o sistema, sem parar para refletir e questionar, ou volta-se para si, seguindo a velha máxima délfica do “conhece-te a ti mesmo”. O cinismo defende a segunda opção, pois seria o único modo de alcançar serenidade e certezas. Isso remete ao estoicismo, que foi bastante influenciado pelos cínicos, mas sem o humor inerente à escola de Antístenes e infelizmente tomado de metafísica que adia a satisfação para um porvir que nunca chega. Ambos buscam autonomia, ou autarquia (o termo preciso em grego), que é liberdade e controle sobre si. Os monges budistas e os mosteiros cristãos também almejam isso, só que são sérios demais para se permitirem extravagâncias como masturbar-se em público, pedir esmola para estátua ou dividir parceiros sexuais com quem se propuser a transar. Foi preciso nascer um Marquês de Sade para chocar através de uma voluptuosidade que pouco ambiciona, apenas realiza. Depender cada vez menos das coisas exteriores e não precisar buscá-las é autodomínio, e ser senhor de si acalma. O estoico e o cínico almejam essa ataraxia, mas o segundo não a transcende.

Isso porque o cínico abandonou os deuses da tradição, sabe que eles servem de desculpas para atos incorretos e não são os verdadeiros. As coisas do homem (cultura) e as divinas (naturais) não se conjugam, contudo a maioria não aceita isso. Ele blasfema contra os santos e as divindades louvadas em praça pública, bem como escandaliza o beato cidadão. Logo, como é possível ficar bem sem deuses inteligíveis e sendo mais uma ínfima criatura tentando manter a vida? Ele sente-se como um semideus capaz de desmerecer contendas e apreensões humanas e ao mesmo tempo é simplório como um cão. Ao agir conforme exige a natureza, voltar-se-á junto aos animais, mas sendo um que usa mais o que é chamado racionalidade e que julga possuir um eu.

Entretanto, alguém pode concluir que o retorno à vida frugal e rústica é estar mais próximo do magnânimo criador. Quem conclui desse modo é um cínico pouco filosófico. Após ter mostrado aos homens os limites de suas capacidades, fez de seu mundinho o verdadeiro e redentor. Ora, agiu da mesma forma que seus desafetos. Foi contraditório. Como alguns se empolgaram com a maneira cínica de viver, não se atentaram à inerente falha de toda ética e postularam-se donos da verdade e únicos a exercer virtudes. Quem assim operou foi mais um pretensioso e petulante, fingiu ser divino. A própria Natureza é divina – a metafísica cínica era panteísta, como a maioria das orientais – e indiferente ao homem, ele mesmo é o culpado e o abençoado por seus atos, a natureza apenas devolve o que recebeu, de forma impassível e isonômica.

Até hoje quem chega às conclusões cínicas costuma se apegar a um deus qualquer ou a cometer atos drásticos, como matar ou se suicidar. É muito pesado esse fardo de ser pequeno, estar sem mestres e ainda tentar ser venturoso. Perdido, o homem não costuma optar por essa filosofia, mas por consolos. Porém, a divindade se revelará fantasiosa enquanto a razão não ceder lugar à fé. Não dá para retornar à irracionalidade. É nítida a tendência ao niilismo aqui. O movimento hippie caiu nessa armadilha. Após negar sua participação numa sociedade cruel, recluiu-se, mas conjecturou tantas hipóteses alternativas que abdicaram da razão e se entregaram a entorpecentes que ampliam o uso da parte inconsciente do cérebro e a quimeras sem quaisquer evidências. Diante do nada, escolheu o prazer. Isso é mais uma face do pessimismo que não encontra respostas. Ou se opta pela ascese estoica ou pelo gozo repetido (hedonismo) – entre Antístenes e Aristipo. O exercício constante da razão angustia, e aliado à decadência material e política – o que claramente ocorreu no mundo helênico -, fez sobrar pouco espaço para a vitalidade e o vigor instintivos dos tempos áureos.

A tristeza contumaz é um estado insuportável, é contrária à vida. Os rituais primitivos buscavam afastar os maus espíritos que reduziam a alegria dos homens. Só que as forças sobrenaturais perderam seu poder perante a razão disciplinadora e controladora. Ao mesmo tempo em que o logos liberta o indivíduo das sombras e dos monstros do que é inexplicável, ele reconhece as limitações humanas. Seu excesso funda e estrutura uma cultura permeada por interditos proibitórios. Se há pujança, poderio e harmonia social as pessoas não andarão cabisbaixas e sorumbáticas, agirão naturalmente, sem muita reflexão e confiando no vizinho. Mas se desgraças sobrevêm e o sofrimento é prolongado, é preciso ruminar soluções até o triunfo chegar. Unir logos e fracasso é a fórmula do desgosto. Escapar desse cenário desolador foi a busca dos gregos sob o jugo dos macedônios e romanos. As escolas céticas, estoicas e cirenaicas propuseram saídas à derrocada iminente. Não tiveram vida longa no meio helênico, mas suas bases servem de modelo até hoje. A cada crise e ruptura esse pessimismo é retomado.

Varrer para longe os tabus e o desconforto pela crescente manipulação e escravização dos meios culturais sobre o indivíduo é o que almejam os cínicos. Mas onde eles veem honestidade, virtude e liberdade, os demais veem perversão, extravagância e ingenuidade. Os gregos eram reticentes com os estrangeiros (bárbaros), comportamentos esdrúxulos por parte desses foram interpretados majoritariamente como incivilizados, portanto dignos de repúdio. O cínico tinha ciência desse desprezo social e retribui quase que na mesma moeda, mas por motivos bastante distintos. Radicalizar e afrontar ouvintes foram modos de agir que perguntavam: “O que realmente importa?”. Poucos ousaram e souberam responder, não sem antes titubear.

Só pela renúncia ao estritamente humano e cultural seria possível a felicidade, que não está garantida. E estar feliz, para um cínico, é estar com o mínimo de sensações e de dores. Deixar o corpo e a alma estáveis e serenos é uma luta inglória, mas vale a pena, segundo os cínicos e os estoicos. O fato é que as mudanças num mundo híbrido e com ramificações exponencialmente maiores assustam quem deseja essa paz de espírito e um olhar mais lento, duradouro e profundo, a fim de captar a essência das coisas. O cínico tem sérias restrições ao futuro imprevisível e altamente mutante. Ele não conseguirá se conhecer e nem saberá o que valorizar. O estado selvagem é mais pacato e previsível, e com segredos mais belos. Ali se encontra a promessa de plenitude. Não é preciso procurar alegrias, basta ser coerente com a Natureza, assim poderá estar contente. É simplesmente querer o menos pior e não se perder com desmedidas ambições. O porém é que certas conquistas civilizatórias são quase irrenunciáveis e geram outros desejos.

No fim, esse desprezo pela humanidade pode se revelar apreço pelo cosmos. Não sem assumir grandes riscos pela crença na contracorrente. Ser alternativo exige tenacidade.

P.S.: Pode não parecer, mas esse texto me deu um trabalho do cão. Foi uma tomada de consciência de minhas limitações teóricas, acadêmicas, sintáticas e literárias. Mas talvez um cínico diria para mim: "em que isso importa? Vc não saiu do lugar". É difícil mesmo ser um cínico...

27 de janeiro de 2013

Sobre a Filosofia Cínica - pt. 1


I

Farei aqui ponderações sobre a escola cínica; sobre o cinismo, esse termo que perdeu o sentido original, tornando-se mero sinônimo de cara-de-pau. Quem foram os cínicos e quem ainda segue tal filosofia de vida? Só os anêmicos, os mímicos ou os bulímicos? Apenas adianto que ela é bastante pragmática, desapegada e pessimista. Ética socrática na vertente dos lúgubres artistas. Sem abdicar do ar de superioridade perante os pretensiosos mortais (com suas meias verdades), paradoxalmente a partir de uma posição inferior, do olhar do cão abandonado, mas que pelo labor supera paixões e quaisquer tipos de dor. Aquele que se rebaixa a viver como um cão revela-se acima dos homens ordinários. Ele sabe do que é capaz e está alheio às convenções sociais, essas máscaras que aprisionam o sujeito, tolhendo-o dos riscos e desafios da natureza, de livres bichos.

O cínico foca em sua existência mesma e está pouco preocupado com intrincadas teorias e abstrações que nada lhe dizem, afinal estão no mundo das ideias. Quem não cessa de divagar, cessa de praticar. Por que tanta apreensão em nomear e definir as coisas? O falatório não passa de tautologias que só dizem o óbvio ou de recheios que caem no absurdo e no convencimento por retórica. O cinismo exige uma ética, contanto que contenha uma cartilha minimalista com o essencial para viver, apesar dos não-cínicos acharem disso isto: mero sobreviver. Questões linguísticas devem ficar em suspenso, pois o uso das palavras resulta em aporias. O ceticismo teórico é radical feito o pirrônico, porém a inércia cética é incoerente diante das necessidades do mundo, do corpo e da alma. O simples agir soluciona as contradições, pois ninguém morre delas, mas de inanição, sim. A lógica e a falta dela convivem em equilíbrio no homem bem resolvido e contente. Não há maior coerência. O perigo está na pretensão e não na frugalidade, está na coação e não na sobriedade.

E como é possível manter a retidão diante da decadência, da corrupção e das disputas sem fim e sem sentido dos homens? É ficando à parte, recusando-se a pertencer a tal estado degenerado, não sendo conivente com tamanha imundície, falsidade e mesquinharia. Arrogância, dificuldade em lidar com mudanças e com as maculadas sequelas que as misturas inevitavelmente acarretam? É bem possível. O estado originário se perdeu, a entropia significa aumento exponencial da distância inicial, ocorreu uma hibridização daquele pontinho branco harmônico e puro. É duro aceitá-la, mas por ser inevitável, é preciso. Essa dificuldade em suportar ser sujo para sempre, sem possibilidade de redenção, reduz a gana de viver. Especialmente se for entre os pobres e podres homens, mas longe, no meio da selva e da relva, há uma chance; é o mais próximo do ato original que se pode estar. É a crença no “mito do bom selvagem” de Rousseau. A civilização não pode dar marcha à ré, mas um indivíduo pode tentar; é o que o cínico faz. Ele tenta redimir os erros dos outros e das instituições corporativistas. Como o vizinho espelha sua podridão, o cínico foge desse sinistro reflexo.

E vai para onde? Para um lugar onde não precisa mais zombar dos outros, pois isso lhe lembraria de sua condição miserável – todo escárnio é também uma apunhalada em si, pois descontar a frustração no outro é escamotear os próprios defeitos. A multidão tende a agir como rebanho dócil, tolerando falhas em prol do grupo – é uma loucura legitimada. Isso não deveria ser permitido. Mas proibir todo ato seria loucura maior! Solução? Novamente, o isolamento. Que cada um seja juiz, júri e réu, acusador e acusado, e numa só alma – suporte essa angústia ou se mate! Só não é permitido prolongar a fealdade da massa de gente carente e vaidosa. Gente que cria e venera deuses e ídolos, tão ocos e supérfluos quanto um toco de bambu. Só fora dos grupos a sede de poder irá obliterar, até esse ermitão perder as papilas gustativas que saboreariam o amargor do domínio.

Os progressistas creem num futuro sempre melhor e os reacionários pensam que a idade de ouro ficou lá pra trás. Ambos erram, só há o aqui e agora, e esse presente é apenas o momento onde é vivida toda experiência, sem valores prévios nem tradições. Ou seja, cada ato é forçoso e banal. Mas o homem adora erguer monumentos por suas conquistas e bravuras. Todo poder seria contingência do orgulho. E como as pessoas têm necessidade de se sentir poderosas!

A indiferença é quase uma norma ao cínico, uma das poucas. Decorre disso a suspeita de arrogância por parte dos desavisados que recebem patadas, bicadas ou mordidas dele. Na verdade, há apenas introspecção e um mergulho na única fonte de conhecimento que se pode controlar, não totalmente, mas uma grande parte dela, que é o próprio eu. E quem se faz de objeto de estudo deixa pra lá o que não lhe diz respeito, que é em suma o resto do mundo. Que incongruente um mendigo orgulhoso! Contudo, essa não é a questão, o cínico é amoral, quer apenas cutucar feridas que o povo não vê, pois não reconhece suas idiossincrasias como doenças. A mosca zumbe até o homem lhe dar um tapa mortal, porquanto do entorno ela não sairá. Este é papel do cínico na praça, uma velha lição de Sócrates: ironizar o interlocutor até este reconhecer a própria pequenez e ignomínia.

Ele se serve do humor negro, às vezes sutil, às vezes escrachado. O principal é expressar ironias, mordacidade, aquela denúncia que só os espertos e atentos captarão. O cínico não deseja mudar o mundo, muito menos outra pessoa, ele solta suas frases e quem puder que faça bom uso delas. São poucos os humildes que param para escutá-lo, mas com certeza não se arrependerão; Alexandre Magno recebeu uma pitada de sabedoria cínica com somente uma frase enigmática, sinal de que não é preciso ser grandioso ou eloquente para ser o suficiente. Pelo contrário, a ganância se alimenta justamente do tamanho do hospedeiro, feito câncer esfomeado. Reconhecer esse mínimo à vida plena talvez seja mais difícil que acumular bens e posses, como fazem os bilionários.

Todavia, quem nada, ou pouquíssimo, tem quer mais. O homem tem essa mania de desejar sem parar. Ele vai querendo e se aprisionando. Então quando perde um dente, uma dentadura ou um dente-de-alho chora. Já o cínico não lamenta as perdas, jamais terá depressão. Seu saber e sua memória lhe bastam. A felicidade não está no mundo exterior, mas no interior. A única coisa que tem a perder é a própria vida, pois única. Ele tenta aproveitá-la ao máximo, apesar de não parecer. Só não quer se entregar aos caprichos dos sentidos, uma vez que desvirtuam. A virtude lhe é cara e bem definida, esse é seu objetivo diário, até a morte; ele nunca terá momento de descanso, apesar do desapego material. E essa virtude é política, não moral. Sua intenção é genérica, não localizada, daí seu desprendimento às coberturas jornalísticas. Não há muito a que zelar e ao mesmo tempo há tanto dever a ser cumprido, isso se explica pela relação complexa entre corpo e alma. Eles se inter-relacionam de forma imbricada e deixam seu dono perplexo e angustiado para aplacar os ânimos.

Cada necessidade do corpo vai gerando mais outra, mesmo depois de satisfeita, é parte natural do processo orgânico. A vida é cíclica. A cada ação, uma reação, e por aí vai, até retornar, com outra roupagem e em outro contexto, porém com aspectos muito semelhantes. Reduzir a velocidade dessa espiral é o alvo do esforço incansável do cínico, isto é, tentar retardar o movimento de rotação, apesar de isso ser uma tarefa hercúlea. Pouco importa. Sentir-se um herói, mesmo que ninguém mais o julgue como tal, reconforta. Quem sabe este não é o cinismo que o cínico não percebe: sua vida virtuosa e heroica é mais uma pretensão humana que nada vale? Reconhecer isso o tornaria mais tolerante com as falhas dos outros. Ele busca respostas também, não é apenas provocador, logo suas acusações e seus escárnios voltam pra ele, quando pensa agir melhor que os demais. Como toda ação humana é ética e política, e funda valores que passarão mais cedo ou mais tarde também pelo escrutínio público, ninguém está aquém ou além dele. Porém, os cínicos parecem querer se posicionar ao largo desses juízos. Só que a responsabilidade pesa para eles igualmente.

15 de janeiro de 2013

Oferendas e Descartes


Minha jangada, após anos de uso, foi deixada aos cuidados da correnteza, e por esta seguiu até descer em câmera lenta pela garganta sempre úmida de uma foz qualquer; enfim digerida por um lago receptivo, um desses bons anfitriões o qual a Natureza é pródiga em formar. Naquelas pacíficas águas minha jangadinha foi bem aproveitada, como sempre são as oferendas que os desapegados entregam de coração exultante, pois sabem que no ciclo do carbono, ou no de vários outros elementos químicos, todo item ou ação carregado de energias boas e sinceras é sabiamente reaproveitado para manter o meio ambiente harmônico e seus seres vigilantes e brilhantes. Se o excesso dessas doações transbordar o rio, não há com o que se preocupar, a água das enchentes costuma fazer brotar sementes esquecidas e ovos depositados, ainda não eclodidos. Todo alimento deveria ser assim: um singelo barco à deriva. O tempo se encarregaria de encontrar um destinatário que, de bom grado, usufruiria e se regozijaria com mais uma dádiva do mundo.

Todo objeto que encontramos pelo caminho é sugestivo. A princípio é apenas um esboço, uma silhueta dificilmente discernida, um projeto de uma realidade do porvir, que uma mente sagaz e uma vontade irresistível irão transformar em algo maior, seja por prospecção ou por simples manuseio baseado em repetições insistentes. Para visualizar além das sombras são precisos olhos iluminados, coisa rara. Essa matéria-prima, uma pedra rara em estado bruto, é um rascunho a ser lapidado por uma técnica e fluído pela inspiração de um anseio tirânico. Mas um objeto inerte precisa dessa arbitrariedade, a fim de sair do marasmo ao prazer quase sublime que só atos ao bel-prazer são capazes de garantir. Ao final, voilà, uma bela obra de arte. Se a volição for somente ancorada em preceitos e padrões deveras rígidos, haverá artesanato – ele tem o seu desfrute, mas não se compara ao assombro de uma arte autêntica e original. Em tudo consta um fundo a explorar.

Imaginem quantas obras-primas e tesouros imortais da humanidade, seja em forma física ou apenas na memória efêmera dos povos, esfacelaram-se no ar porque faltara um desses detalhes que insistem em escapar dos sentidos humanos: tempo ou conhecimento ou devoção. Cada sujeito observador e desejante tem o potencial artístico de produzir uma dessas preciosidades, porém são poucos os intempestivos, disciplinados e ousados para chegar a tamanho êxtase. Ser produtivo em quantidade e qualidade não é para qualquer um, mas bem que podia ser, se houvesse estímulo para tanto. Contudo, a maioria quer facilidades e diferenciação por bobeiras. Esquecem-se das essências.

O problema é que a doença os doentes da modernidade teimam em não reconhecer. Vidrados nas últimas novidades anunciadas com promessas de trinta segundos de felicidade eterna eles estão ocupados demais para mudarem seu foco. Todo médico sabe o valor que há em mudar de ares e paisagens, nem que seja pela amplitude que a visão do paciente ganharia. Porém, eles se amam tanto que não sabem quem são nem onde estão. A viagem ao interior é íngreme, mas as ladeiras não são mais tolerantes pelos passageiros, pois obtusos e marejados. Eles já sabem como e onde serão enterrados e lamuriados; enjoado com o caminho bastante tracejado, deslumbrados ficam com os sininhos dourados em meio à pressa da feira. Bichos adestrados não podem mais pensar por si e buscar essências, seguem normas e formalidades, sem elas, restam irresolutos.

O senso comum entorpeceu os viventes, que não plenificam suas experiências, estão demasiadamente adormecidos.  Mas há aqueles que o defendam, esses não passam de ruminadores, um gado que muge e ronca de pé, e ainda assim julgando-se desperto. Enquanto isso, os lustradores e enceradores de móveis e peças luxuosas se preocupam com o brilho dos metais que ninguém irá reparar, ao invés de retirar a poeira, as teias e o mofo de mentes anestesiadas, por pouco não  putrefatas. Mas cada um conhece o que é importante e zela por isso. O sol nasce para todos, porém cabe ao homem posicionar seus maiores bens para receber a energia diurna do astro-rei. Cabe a ele decidir o que ofertar ao rio, poluindo-o ou conservando-o. O ciclo não para.

 

13 de janeiro de 2013

Inveja do lado de lá


O criticado de hoje é o aliado de amanhã, o bode expiatório de sino dourado de hoje é o compadre de amanhã, o Exu chuta que é macumba de vestes badaladas de hoje é o santo de amanhã, a persona non grata metidinha de hoje é o parceiro de amanhã. É assim a vida dos invejosos sem opinião formada. Falar, reclamar, chiar, resmungar, choramingar pitangas porque foi excluído da patota é comum para quem não sacou como os fatos se amarram. O novo rico, ou apenas a classe média emergente, não me deixa mentir. E eu queria estar enganado, mas não sou iludido.

“A nossa inveja dura sempre mais tempo que a felicidade daqueles que invejamos.” Talvez a inveja seja o pecado capital mais recorrente de nossos pobres e ignorantes cristãos. É tão fácil falar mal do playboy de vida mansa quando se está do outro lado da rua. O sentimento ruim surge de bate-pronto e precisa sair para não deprimir o pé-rapado. Então o coitado enche a boca para reclamar da falta de ética dos burgueses de condomínio. Quem mais rasga o verbo é quem mais tem culpa no cartório. É igual a pai safado de menina bonita ou marido possessivo de mulher boa, eles aprontaram das suas, sabem do que outro homem ou as mulheres são capazes, portanto professam loquazmente sua hipocrisia aos colegas, vizinhos e cachaceiros da meia-noite. Não se enganem, discurso inflamado é sinal de culpa enrustida.

Como a maioria dos homofóbicos que dizem não admitir filho, amigo ou político baitola, esse ou já queimou ou ainda queima ou se contorce de vontade de queimar a ruela. Reconhece que aquilo não é legal socialmente, mas no escurinho se diverte pra valer. Quem sabe não seja inveja da diversão alheia mais do que incômodo pela perversão que degenera os bons costumes interioranos? Nem eles sabem responder. Recalcar por demais os prazeres faz com que conscientemente só seja repassado o sermão que se acabou de ouvir ou que insistentemente é gritado nos ouvidos pelos submissos anos da miserável vida de periquito. A gaiola é a maior fomentadora da inveja. O bichinho quer sair e aproveitador a saudável liberdade dos transeuntes risonhos e bem vestidos. O oprimido sempre carregará a dor da humilhação sofrida. Quanto pior o sentimento, maiores serão os gritos. As grades podem até sair de seu rosto, mas permanecem em seu peito comprimido.

E se o voluntarismo não significar felicidade autêntica, há uma farmácia na esquina fornecendo antidepressivos aos angustiados e apressados urbanos. Um sorriso na face é um grande sinal de vida boa, ou no mínimo de uma vivência satisfatória. O que um sorriso não é capaz de provocar! Um infeliz é capaz de mudar de time, de bairro, de profissão, de ideologia e de caráter para possuir um sorriso contumaz em seu já cansado rosto, em sua expressão cabisbaixa e em seus ombros derrubados por pesos físicos e metafísicos. A aparência garante mais sucesso que a legítima personalidade. Assim pensam os fracos de espírito e deslumbrados pela encenação.

 Manifestações externas de aprovação contam mais pontos que a retidão moral que sabe identificar o certo e o errado, o digno e o ignóbil, o faça e o não faça. Estoicismo nada pode contra as torrentes hedonistas que espalham fotos de gente sorrindo e pulando de alegria. Como dizer que a vida desses não é boa quando seu quarto é mobiliado por itens sombrios e circunspetos? Conclusão lógica: divertir-se é melhor que suportar no osso as lombadas e intempéries da encosta nebulosa e estacionada. Motivação torna-se a palavra de ordem, mas para isso é preciso mudar de ares, conhecer novos idiotas e tornar-se mais um. Pertencer é um imperativo, o contrário é fracasso. Por essas e outras o compartilhamento garante a alegria dos carentes.

Falta, sempre falta, algo, nem que seja ruim. O que não pode predominar é o vazio. Esse é o mal maior. Ocupar-se é não dar sopa para o azar. E assim se precaver do terrível demônio da modernidade: o tédio. Só que nessa espiral muitos bestalhões são lançados em mundos indesejados, com mais problemas que o anterior, mas tudo bem, antes apagar incêndio a jogar pedra no lago. Chegando junto dos que prometem farra e vida boa, o reclamão e mal amado vai à forra, claro que não sem batismos e impaciência até sintonizar a frequência sem chiados. Que os infelizes que ficaram para trás entendam e se adaptem ao novo sujeito. Pergunto: quem se sujeita mais aqui?

Pose, poser! Flashes não faltarão, pipocarão até cegá-lo, quem sabe isso não será o necessário para fazê-lo voltar a enxergar? Enquanto a inveja for sua força motora não haverá salvação, o fetichismo é sua pretensa redenção. Talvez tenha sido o melhor pra sua vida, do contrário haveria suicídio ou veias escorrendo por ralos. Apenas saiba que continuará ralo, sem sacar como os fatos se amarram. Apenas sua postura mudou: os criticados agora recebem elogios e a vidinha de antes se tornou alvo de escárnio. E chega de se vangloriar que o lado daí é o melhor e que o lado de cá da rua restam os losers. Cada um com sua fantasia de felicidade e suas acusações de tolice. A sua inveja permanece, mas não gerou inveja nos outros, seu objetivo não foi totalmente concluído.

“Ninguém é realmente digno de inveja, e tantos são dignos de lástima!”
 
P.S.: Tentarei iniciar uma nova fase, com escritos mais despojados, dependerá da inspiração, da disciplina e do tempo vago. Não que isso vá mudar alguma coisa...