I
Farei aqui ponderações
sobre a escola cínica; sobre o cinismo, esse termo que perdeu o sentido
original, tornando-se mero sinônimo de cara-de-pau. Quem foram os cínicos e
quem ainda segue tal filosofia de vida? Só os anêmicos, os mímicos ou os
bulímicos? Apenas adianto que ela é bastante pragmática, desapegada e
pessimista. Ética socrática na vertente dos lúgubres artistas. Sem abdicar do
ar de superioridade perante os pretensiosos mortais (com suas meias verdades),
paradoxalmente a partir de uma posição inferior, do olhar do cão abandonado,
mas que pelo labor supera paixões e quaisquer tipos de dor. Aquele que se
rebaixa a viver como um cão revela-se acima dos homens ordinários. Ele sabe do
que é capaz e está alheio às convenções sociais, essas máscaras que aprisionam o
sujeito, tolhendo-o dos riscos e desafios da natureza, de livres bichos.
O cínico foca
em sua existência mesma e está pouco preocupado com intrincadas teorias e
abstrações que nada lhe dizem, afinal estão no mundo das ideias. Quem não cessa
de divagar, cessa de praticar. Por que tanta apreensão em nomear e definir as
coisas? O falatório não passa de tautologias que só dizem o óbvio ou de recheios
que caem no absurdo e no convencimento por retórica. O cinismo exige uma ética,
contanto que contenha uma cartilha minimalista com o essencial para viver,
apesar dos não-cínicos acharem disso isto: mero sobreviver. Questões
linguísticas devem ficar em suspenso, pois o uso das palavras resulta em
aporias. O ceticismo teórico é radical feito o pirrônico, porém a inércia
cética é incoerente diante das necessidades do mundo, do corpo e da alma. O
simples agir soluciona as contradições, pois ninguém morre delas, mas de
inanição, sim. A lógica e a falta dela convivem em equilíbrio no homem bem
resolvido e contente. Não há maior coerência. O perigo está na pretensão e não
na frugalidade, está na coação e não na sobriedade.
E como é
possível manter a retidão diante da decadência, da corrupção e das disputas sem
fim e sem sentido dos homens? É ficando à parte, recusando-se a pertencer a tal
estado degenerado, não sendo conivente com tamanha imundície, falsidade e
mesquinharia. Arrogância, dificuldade em lidar com mudanças e com as maculadas
sequelas que as misturas inevitavelmente acarretam? É bem possível. O estado
originário se perdeu, a entropia significa aumento exponencial da distância
inicial, ocorreu uma hibridização daquele pontinho branco harmônico e puro. É
duro aceitá-la, mas por ser inevitável, é preciso. Essa dificuldade em suportar
ser sujo para sempre, sem possibilidade de redenção, reduz a gana de viver. Especialmente
se for entre os pobres e podres homens, mas longe, no meio da selva e da relva,
há uma chance; é o mais próximo do ato original que se pode estar. É a crença
no “mito do bom selvagem” de Rousseau. A civilização não pode dar marcha à ré,
mas um indivíduo pode tentar; é o que o cínico faz. Ele tenta redimir os erros
dos outros e das instituições corporativistas. Como o vizinho espelha sua
podridão, o cínico foge desse sinistro reflexo.
E vai para
onde? Para um lugar onde não precisa mais zombar dos outros, pois isso lhe
lembraria de sua condição miserável – todo escárnio é também uma apunhalada em
si, pois descontar a frustração no outro é escamotear os próprios defeitos. A
multidão tende a agir como rebanho dócil, tolerando falhas em prol do grupo – é
uma loucura legitimada. Isso não deveria ser permitido. Mas proibir todo ato
seria loucura maior! Solução? Novamente, o isolamento. Que cada um seja juiz,
júri e réu, acusador e acusado, e numa só alma – suporte essa angústia ou se
mate! Só não é permitido prolongar a fealdade da massa de gente carente e
vaidosa. Gente que cria e venera deuses e ídolos, tão ocos e supérfluos quanto
um toco de bambu. Só fora dos grupos a sede de poder irá obliterar, até esse
ermitão perder as papilas gustativas que saboreariam o amargor do domínio.
Os
progressistas creem num futuro sempre melhor e os reacionários pensam que a
idade de ouro ficou lá pra trás. Ambos erram, só há o aqui e agora, e esse
presente é apenas o momento onde é vivida toda experiência, sem valores prévios
nem tradições. Ou seja, cada ato é forçoso e banal. Mas o homem adora erguer
monumentos por suas conquistas e bravuras. Todo poder seria contingência do
orgulho. E como as pessoas têm necessidade de se sentir poderosas!
A indiferença
é quase uma norma ao cínico, uma das poucas. Decorre disso a suspeita de
arrogância por parte dos desavisados que recebem patadas, bicadas ou mordidas
dele. Na verdade, há apenas introspecção e um mergulho na única fonte de
conhecimento que se pode controlar, não totalmente, mas uma grande parte dela,
que é o próprio eu. E quem se faz de objeto de estudo deixa pra lá o que não
lhe diz respeito, que é em suma o resto do mundo. Que incongruente um mendigo orgulhoso!
Contudo, essa não é a questão, o cínico é amoral, quer apenas cutucar feridas
que o povo não vê, pois não reconhece suas idiossincrasias como doenças. A
mosca zumbe até o homem lhe dar um tapa mortal, porquanto do entorno ela não
sairá. Este é papel do cínico na praça, uma velha lição de Sócrates: ironizar o
interlocutor até este reconhecer a própria pequenez e ignomínia.
Ele se serve
do humor negro, às vezes sutil, às vezes escrachado. O principal é expressar
ironias, mordacidade, aquela denúncia que só os espertos e atentos captarão. O
cínico não deseja mudar o mundo, muito menos outra pessoa, ele solta suas
frases e quem puder que faça bom uso delas. São poucos os humildes que param
para escutá-lo, mas com certeza não se arrependerão; Alexandre Magno recebeu
uma pitada de sabedoria cínica com somente uma frase enigmática, sinal de que
não é preciso ser grandioso ou eloquente para ser o suficiente. Pelo contrário,
a ganância se alimenta justamente do tamanho do hospedeiro, feito câncer
esfomeado. Reconhecer esse mínimo à vida plena talvez seja mais difícil que
acumular bens e posses, como fazem os bilionários.
Todavia, quem
nada, ou pouquíssimo, tem quer mais. O homem tem essa mania de desejar sem
parar. Ele vai querendo e se aprisionando. Então quando perde um dente, uma
dentadura ou um dente-de-alho chora. Já o cínico não lamenta as perdas, jamais
terá depressão. Seu saber e sua memória lhe bastam. A felicidade não está no
mundo exterior, mas no interior. A única coisa que tem a perder é a própria
vida, pois única. Ele tenta aproveitá-la ao máximo, apesar de não parecer. Só
não quer se entregar aos caprichos dos sentidos, uma vez que desvirtuam. A
virtude lhe é cara e bem definida, esse é seu objetivo diário, até a morte; ele
nunca terá momento de descanso, apesar do desapego material. E essa virtude é
política, não moral. Sua intenção é genérica, não localizada, daí seu
desprendimento às coberturas jornalísticas. Não há muito a que zelar e ao mesmo
tempo há tanto dever a ser cumprido, isso se explica pela relação complexa
entre corpo e alma. Eles se inter-relacionam de forma imbricada e deixam seu
dono perplexo e angustiado para aplacar os ânimos.
Cada
necessidade do corpo vai gerando mais outra, mesmo depois de satisfeita, é
parte natural do processo orgânico. A vida é cíclica. A cada ação, uma reação,
e por aí vai, até retornar, com outra roupagem e em outro contexto, porém com
aspectos muito semelhantes. Reduzir a velocidade dessa espiral é o alvo do esforço
incansável do cínico, isto é, tentar retardar o movimento de rotação, apesar de
isso ser uma tarefa hercúlea. Pouco importa. Sentir-se um herói, mesmo que
ninguém mais o julgue como tal, reconforta. Quem sabe este não é o cinismo que
o cínico não percebe: sua vida virtuosa e heroica é mais uma pretensão humana
que nada vale? Reconhecer isso o tornaria mais tolerante com as falhas dos
outros. Ele busca respostas também, não é apenas provocador, logo suas
acusações e seus escárnios voltam pra ele, quando pensa agir melhor que os
demais. Como toda ação humana é ética e política, e funda valores que passarão
mais cedo ou mais tarde também pelo escrutínio público, ninguém está aquém ou
além dele. Porém, os cínicos parecem querer se posicionar ao largo desses
juízos. Só que a responsabilidade pesa para eles igualmente.
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