27 de janeiro de 2013

Sobre a Filosofia Cínica - pt. 1


I

Farei aqui ponderações sobre a escola cínica; sobre o cinismo, esse termo que perdeu o sentido original, tornando-se mero sinônimo de cara-de-pau. Quem foram os cínicos e quem ainda segue tal filosofia de vida? Só os anêmicos, os mímicos ou os bulímicos? Apenas adianto que ela é bastante pragmática, desapegada e pessimista. Ética socrática na vertente dos lúgubres artistas. Sem abdicar do ar de superioridade perante os pretensiosos mortais (com suas meias verdades), paradoxalmente a partir de uma posição inferior, do olhar do cão abandonado, mas que pelo labor supera paixões e quaisquer tipos de dor. Aquele que se rebaixa a viver como um cão revela-se acima dos homens ordinários. Ele sabe do que é capaz e está alheio às convenções sociais, essas máscaras que aprisionam o sujeito, tolhendo-o dos riscos e desafios da natureza, de livres bichos.

O cínico foca em sua existência mesma e está pouco preocupado com intrincadas teorias e abstrações que nada lhe dizem, afinal estão no mundo das ideias. Quem não cessa de divagar, cessa de praticar. Por que tanta apreensão em nomear e definir as coisas? O falatório não passa de tautologias que só dizem o óbvio ou de recheios que caem no absurdo e no convencimento por retórica. O cinismo exige uma ética, contanto que contenha uma cartilha minimalista com o essencial para viver, apesar dos não-cínicos acharem disso isto: mero sobreviver. Questões linguísticas devem ficar em suspenso, pois o uso das palavras resulta em aporias. O ceticismo teórico é radical feito o pirrônico, porém a inércia cética é incoerente diante das necessidades do mundo, do corpo e da alma. O simples agir soluciona as contradições, pois ninguém morre delas, mas de inanição, sim. A lógica e a falta dela convivem em equilíbrio no homem bem resolvido e contente. Não há maior coerência. O perigo está na pretensão e não na frugalidade, está na coação e não na sobriedade.

E como é possível manter a retidão diante da decadência, da corrupção e das disputas sem fim e sem sentido dos homens? É ficando à parte, recusando-se a pertencer a tal estado degenerado, não sendo conivente com tamanha imundície, falsidade e mesquinharia. Arrogância, dificuldade em lidar com mudanças e com as maculadas sequelas que as misturas inevitavelmente acarretam? É bem possível. O estado originário se perdeu, a entropia significa aumento exponencial da distância inicial, ocorreu uma hibridização daquele pontinho branco harmônico e puro. É duro aceitá-la, mas por ser inevitável, é preciso. Essa dificuldade em suportar ser sujo para sempre, sem possibilidade de redenção, reduz a gana de viver. Especialmente se for entre os pobres e podres homens, mas longe, no meio da selva e da relva, há uma chance; é o mais próximo do ato original que se pode estar. É a crença no “mito do bom selvagem” de Rousseau. A civilização não pode dar marcha à ré, mas um indivíduo pode tentar; é o que o cínico faz. Ele tenta redimir os erros dos outros e das instituições corporativistas. Como o vizinho espelha sua podridão, o cínico foge desse sinistro reflexo.

E vai para onde? Para um lugar onde não precisa mais zombar dos outros, pois isso lhe lembraria de sua condição miserável – todo escárnio é também uma apunhalada em si, pois descontar a frustração no outro é escamotear os próprios defeitos. A multidão tende a agir como rebanho dócil, tolerando falhas em prol do grupo – é uma loucura legitimada. Isso não deveria ser permitido. Mas proibir todo ato seria loucura maior! Solução? Novamente, o isolamento. Que cada um seja juiz, júri e réu, acusador e acusado, e numa só alma – suporte essa angústia ou se mate! Só não é permitido prolongar a fealdade da massa de gente carente e vaidosa. Gente que cria e venera deuses e ídolos, tão ocos e supérfluos quanto um toco de bambu. Só fora dos grupos a sede de poder irá obliterar, até esse ermitão perder as papilas gustativas que saboreariam o amargor do domínio.

Os progressistas creem num futuro sempre melhor e os reacionários pensam que a idade de ouro ficou lá pra trás. Ambos erram, só há o aqui e agora, e esse presente é apenas o momento onde é vivida toda experiência, sem valores prévios nem tradições. Ou seja, cada ato é forçoso e banal. Mas o homem adora erguer monumentos por suas conquistas e bravuras. Todo poder seria contingência do orgulho. E como as pessoas têm necessidade de se sentir poderosas!

A indiferença é quase uma norma ao cínico, uma das poucas. Decorre disso a suspeita de arrogância por parte dos desavisados que recebem patadas, bicadas ou mordidas dele. Na verdade, há apenas introspecção e um mergulho na única fonte de conhecimento que se pode controlar, não totalmente, mas uma grande parte dela, que é o próprio eu. E quem se faz de objeto de estudo deixa pra lá o que não lhe diz respeito, que é em suma o resto do mundo. Que incongruente um mendigo orgulhoso! Contudo, essa não é a questão, o cínico é amoral, quer apenas cutucar feridas que o povo não vê, pois não reconhece suas idiossincrasias como doenças. A mosca zumbe até o homem lhe dar um tapa mortal, porquanto do entorno ela não sairá. Este é papel do cínico na praça, uma velha lição de Sócrates: ironizar o interlocutor até este reconhecer a própria pequenez e ignomínia.

Ele se serve do humor negro, às vezes sutil, às vezes escrachado. O principal é expressar ironias, mordacidade, aquela denúncia que só os espertos e atentos captarão. O cínico não deseja mudar o mundo, muito menos outra pessoa, ele solta suas frases e quem puder que faça bom uso delas. São poucos os humildes que param para escutá-lo, mas com certeza não se arrependerão; Alexandre Magno recebeu uma pitada de sabedoria cínica com somente uma frase enigmática, sinal de que não é preciso ser grandioso ou eloquente para ser o suficiente. Pelo contrário, a ganância se alimenta justamente do tamanho do hospedeiro, feito câncer esfomeado. Reconhecer esse mínimo à vida plena talvez seja mais difícil que acumular bens e posses, como fazem os bilionários.

Todavia, quem nada, ou pouquíssimo, tem quer mais. O homem tem essa mania de desejar sem parar. Ele vai querendo e se aprisionando. Então quando perde um dente, uma dentadura ou um dente-de-alho chora. Já o cínico não lamenta as perdas, jamais terá depressão. Seu saber e sua memória lhe bastam. A felicidade não está no mundo exterior, mas no interior. A única coisa que tem a perder é a própria vida, pois única. Ele tenta aproveitá-la ao máximo, apesar de não parecer. Só não quer se entregar aos caprichos dos sentidos, uma vez que desvirtuam. A virtude lhe é cara e bem definida, esse é seu objetivo diário, até a morte; ele nunca terá momento de descanso, apesar do desapego material. E essa virtude é política, não moral. Sua intenção é genérica, não localizada, daí seu desprendimento às coberturas jornalísticas. Não há muito a que zelar e ao mesmo tempo há tanto dever a ser cumprido, isso se explica pela relação complexa entre corpo e alma. Eles se inter-relacionam de forma imbricada e deixam seu dono perplexo e angustiado para aplacar os ânimos.

Cada necessidade do corpo vai gerando mais outra, mesmo depois de satisfeita, é parte natural do processo orgânico. A vida é cíclica. A cada ação, uma reação, e por aí vai, até retornar, com outra roupagem e em outro contexto, porém com aspectos muito semelhantes. Reduzir a velocidade dessa espiral é o alvo do esforço incansável do cínico, isto é, tentar retardar o movimento de rotação, apesar de isso ser uma tarefa hercúlea. Pouco importa. Sentir-se um herói, mesmo que ninguém mais o julgue como tal, reconforta. Quem sabe este não é o cinismo que o cínico não percebe: sua vida virtuosa e heroica é mais uma pretensão humana que nada vale? Reconhecer isso o tornaria mais tolerante com as falhas dos outros. Ele busca respostas também, não é apenas provocador, logo suas acusações e seus escárnios voltam pra ele, quando pensa agir melhor que os demais. Como toda ação humana é ética e política, e funda valores que passarão mais cedo ou mais tarde também pelo escrutínio público, ninguém está aquém ou além dele. Porém, os cínicos parecem querer se posicionar ao largo desses juízos. Só que a responsabilidade pesa para eles igualmente.

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