Minha jangada, após anos de uso, foi deixada aos cuidados da
correnteza, e por esta seguiu até descer em câmera lenta pela garganta sempre
úmida de uma foz qualquer; enfim digerida por um lago receptivo, um desses bons
anfitriões o qual a Natureza é pródiga em formar. Naquelas pacíficas águas
minha jangadinha foi bem aproveitada, como sempre são as oferendas que os
desapegados entregam de coração exultante, pois sabem que no ciclo do carbono,
ou no de vários outros elementos químicos, todo item ou ação carregado de
energias boas e sinceras é sabiamente reaproveitado para manter o meio ambiente
harmônico e seus seres vigilantes e brilhantes. Se o excesso dessas doações
transbordar o rio, não há com o que se preocupar, a água das enchentes costuma
fazer brotar sementes esquecidas e ovos depositados, ainda não eclodidos. Todo
alimento deveria ser assim: um singelo barco à deriva. O tempo se encarregaria
de encontrar um destinatário que, de bom grado, usufruiria e se regozijaria com
mais uma dádiva do mundo.
Todo objeto que encontramos pelo caminho é sugestivo. A
princípio é apenas um esboço, uma silhueta dificilmente discernida, um projeto
de uma realidade do porvir, que uma mente sagaz e uma vontade irresistível irão
transformar em algo maior, seja por prospecção ou por simples manuseio baseado em
repetições insistentes. Para visualizar além das sombras são precisos olhos
iluminados, coisa rara. Essa matéria-prima, uma pedra rara em estado bruto, é
um rascunho a ser lapidado por uma técnica e fluído pela inspiração de um
anseio tirânico. Mas um objeto inerte precisa dessa arbitrariedade, a fim de
sair do marasmo ao prazer quase sublime que só atos ao bel-prazer são capazes
de garantir. Ao final, voilà, uma
bela obra de arte. Se a volição for somente ancorada em preceitos e padrões
deveras rígidos, haverá artesanato – ele tem o seu desfrute, mas não se compara
ao assombro de uma arte autêntica e original. Em tudo consta um fundo a
explorar.
Imaginem quantas obras-primas e tesouros imortais da
humanidade, seja em forma física ou apenas na memória efêmera dos povos,
esfacelaram-se no ar porque faltara um desses detalhes que insistem em escapar
dos sentidos humanos: tempo ou conhecimento ou devoção. Cada sujeito observador
e desejante tem o potencial artístico de produzir uma dessas preciosidades,
porém são poucos os intempestivos, disciplinados e ousados para chegar a tamanho
êxtase. Ser produtivo em quantidade e qualidade não é para qualquer um, mas bem
que podia ser, se houvesse estímulo para tanto. Contudo, a maioria quer
facilidades e diferenciação por bobeiras. Esquecem-se das essências.
O problema é que a doença os doentes da modernidade teimam
em não reconhecer. Vidrados nas últimas novidades anunciadas com promessas de
trinta segundos de felicidade eterna eles estão ocupados demais para mudarem
seu foco. Todo médico sabe o valor que há em mudar de ares e paisagens, nem que
seja pela amplitude que a visão do paciente ganharia. Porém, eles se amam tanto
que não sabem quem são nem onde estão. A viagem ao interior é íngreme, mas as ladeiras
não são mais tolerantes pelos passageiros, pois obtusos e marejados. Eles já
sabem como e onde serão enterrados e lamuriados; enjoado com o caminho bastante
tracejado, deslumbrados ficam com os sininhos dourados em meio à pressa da feira.
Bichos adestrados não podem mais pensar por si e buscar essências, seguem normas
e formalidades, sem elas, restam irresolutos.
O senso comum entorpeceu os viventes, que não plenificam
suas experiências, estão demasiadamente adormecidos. Mas há aqueles que o defendam, esses não passam
de ruminadores, um gado que muge e ronca de pé, e ainda assim julgando-se
desperto. Enquanto isso, os lustradores e enceradores de móveis e peças
luxuosas se preocupam com o brilho dos metais que ninguém irá reparar, ao invés
de retirar a poeira, as teias e o mofo de mentes anestesiadas, por pouco não putrefatas. Mas cada um conhece o que é
importante e zela por isso. O sol nasce para todos, porém cabe ao homem
posicionar seus maiores bens para receber a energia diurna do astro-rei. Cabe a
ele decidir o que ofertar ao rio, poluindo-o ou conservando-o. O ciclo não para.
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