15 de janeiro de 2013

Oferendas e Descartes


Minha jangada, após anos de uso, foi deixada aos cuidados da correnteza, e por esta seguiu até descer em câmera lenta pela garganta sempre úmida de uma foz qualquer; enfim digerida por um lago receptivo, um desses bons anfitriões o qual a Natureza é pródiga em formar. Naquelas pacíficas águas minha jangadinha foi bem aproveitada, como sempre são as oferendas que os desapegados entregam de coração exultante, pois sabem que no ciclo do carbono, ou no de vários outros elementos químicos, todo item ou ação carregado de energias boas e sinceras é sabiamente reaproveitado para manter o meio ambiente harmônico e seus seres vigilantes e brilhantes. Se o excesso dessas doações transbordar o rio, não há com o que se preocupar, a água das enchentes costuma fazer brotar sementes esquecidas e ovos depositados, ainda não eclodidos. Todo alimento deveria ser assim: um singelo barco à deriva. O tempo se encarregaria de encontrar um destinatário que, de bom grado, usufruiria e se regozijaria com mais uma dádiva do mundo.

Todo objeto que encontramos pelo caminho é sugestivo. A princípio é apenas um esboço, uma silhueta dificilmente discernida, um projeto de uma realidade do porvir, que uma mente sagaz e uma vontade irresistível irão transformar em algo maior, seja por prospecção ou por simples manuseio baseado em repetições insistentes. Para visualizar além das sombras são precisos olhos iluminados, coisa rara. Essa matéria-prima, uma pedra rara em estado bruto, é um rascunho a ser lapidado por uma técnica e fluído pela inspiração de um anseio tirânico. Mas um objeto inerte precisa dessa arbitrariedade, a fim de sair do marasmo ao prazer quase sublime que só atos ao bel-prazer são capazes de garantir. Ao final, voilà, uma bela obra de arte. Se a volição for somente ancorada em preceitos e padrões deveras rígidos, haverá artesanato – ele tem o seu desfrute, mas não se compara ao assombro de uma arte autêntica e original. Em tudo consta um fundo a explorar.

Imaginem quantas obras-primas e tesouros imortais da humanidade, seja em forma física ou apenas na memória efêmera dos povos, esfacelaram-se no ar porque faltara um desses detalhes que insistem em escapar dos sentidos humanos: tempo ou conhecimento ou devoção. Cada sujeito observador e desejante tem o potencial artístico de produzir uma dessas preciosidades, porém são poucos os intempestivos, disciplinados e ousados para chegar a tamanho êxtase. Ser produtivo em quantidade e qualidade não é para qualquer um, mas bem que podia ser, se houvesse estímulo para tanto. Contudo, a maioria quer facilidades e diferenciação por bobeiras. Esquecem-se das essências.

O problema é que a doença os doentes da modernidade teimam em não reconhecer. Vidrados nas últimas novidades anunciadas com promessas de trinta segundos de felicidade eterna eles estão ocupados demais para mudarem seu foco. Todo médico sabe o valor que há em mudar de ares e paisagens, nem que seja pela amplitude que a visão do paciente ganharia. Porém, eles se amam tanto que não sabem quem são nem onde estão. A viagem ao interior é íngreme, mas as ladeiras não são mais tolerantes pelos passageiros, pois obtusos e marejados. Eles já sabem como e onde serão enterrados e lamuriados; enjoado com o caminho bastante tracejado, deslumbrados ficam com os sininhos dourados em meio à pressa da feira. Bichos adestrados não podem mais pensar por si e buscar essências, seguem normas e formalidades, sem elas, restam irresolutos.

O senso comum entorpeceu os viventes, que não plenificam suas experiências, estão demasiadamente adormecidos.  Mas há aqueles que o defendam, esses não passam de ruminadores, um gado que muge e ronca de pé, e ainda assim julgando-se desperto. Enquanto isso, os lustradores e enceradores de móveis e peças luxuosas se preocupam com o brilho dos metais que ninguém irá reparar, ao invés de retirar a poeira, as teias e o mofo de mentes anestesiadas, por pouco não  putrefatas. Mas cada um conhece o que é importante e zela por isso. O sol nasce para todos, porém cabe ao homem posicionar seus maiores bens para receber a energia diurna do astro-rei. Cabe a ele decidir o que ofertar ao rio, poluindo-o ou conservando-o. O ciclo não para.

 

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