O ecletismo foi
uma escola filosófica que escolhia e unia teses sem ligar muito à coerência
interna e à origem das mesmas. Ela se propôs a absorver várias doutrinas e “através da
análise e da dialéctica, reuni-las num todo legítimo, com vista à obtenção de
uma doutrina melhor e mais vasta." Em suma, buscava-se a verdade a partir do consenso e de uma
síntese das teorias anteriores. Os primeiros ecléticos salientavam não haver
como o homem ter um critério claro, único e distinto que o levasse à grande
verdade, logo tendo de se contentar apenas com a probabilidade de certeza dos
fenômenos. Esse seria o norte até a essência das coisas. Tudo bem, uma posição
cética, no que tange defender a verossimilhança, criticar os grandiosos sistemas
filosóficos e destruir dogmas e valores absolutos. Todavia, essa posição “libera
geral” não luta, “se nada é verdadeiro, tudo vale igualmente”, tende
a agregar
e nivelar por baixo. Quanto de probabilidade legitimaria uma opinião
certeira? 90%, 75%, 50%? Ninguém define. É o triunfo do relativismo, oriundo de
espíritos pragmáticos e decadentes, que justapõem ideias e objetos que caíram
em seus colos e foram tocados por mãos cheias de dedos curiosos. Quando a
cultura local não orgulha mais, cede-se aos hábitos do conquistador, tão
imediatista, grosseiro e agitador. Afinal, é melhor aliar-se ao vencedor!
Quem me conhece sabe que eu
não sou eclético. Pelo contrário, já ouvi muito sobre a minha teimosia e chatice
de gosto, de não me abrir ao novo e ao que tá pegando nas rodinhas. Todo mundo
havia gostado de alguma porcaria e eu não: pronto, torcia-se o nariz à minha
pessoa. É provável que nem fosse levado muito em conta a minha restrição
estética, mas sem dúvida eu perdia uns pontos no quesito simpatia e com isso
fazia-se pouca questão manter-me por perto. Em poucas linhas vocês perceberam
como está correlacionado: não ser eclético, logo não consensual, ser chato, não
gostarem do chato e separá-lo dos grupos tão legais e descolados.
Ah, esses ecléticos, julgam-se tolerantes, puxam o saco um
do outro e com isso garantem a hipocrisia social que impera nesses tempos paradoxais
do politicamente correto. Com a liberdade de expressão era para acompanha-la o
respeito pela opinião alheia, por mais tosca que fosse, mas a consciência de
que a própria opinião é mais uma entre inúmeras outras somente vale dentro do
próprio grupo, quem está fora ou entra no grupo e se adequa ou é um alien passível de escárnio. O senso de
justiça e de beleza é interno e pouco flexível, as visões de mundo divergentes
ameaçam a unidade do grupo e só são permitidas após muita conversa ou quando
vindas de uma autoridade. Vejam, a ética
não é uma ciência moral erigida por colunas avulsas e portas abertas
isoladamente, ela demanda treinamento, como um esporte exige músculos,
reflexos, sintonia e visão de jogo. Só tendo experiência e estando atento a
detalhes para atingir essa maturação.
Este é o cenário
pós-moderno: saturação de ideias, informações, teorias, conceitos e estilos.
O que ainda não foi pensado nesse planeta achatado? Ecletismo é juntar essa
balbúrdia de imagens, textos e discursos e dar uma nova roupagem, aparentando
novidade. Há a convicção de que o estilo vale mais que a técnica, que é
facilmente copiada por experts. Porém,
um leitor atento logo nota o mau gosto da releitura extravagante e da abreviada
combinação de estilos, como num clipe da Lady Gaga. Isso então é o bom, que
vende feito água de coco na praia e energético em rave? Isso é acompanhar
tendência e não ser excluído pelo restante dos consumidores despossuídos de
juízo crítico? Na obra símbolo do apanhado geral, cuja identificação é
imediata, pois há pedaços comuns ao urbanoide aflito e fragmentado, o pop
resplandece e vende, e precisa vender.
O eclético não se prende – ele é leve, pois já basta o peso
dos grilhões imperialistas em seu pé – a um estilo ou a uma tribo, ele está
disposto a fazer várias caretas e poses, a vestir vários panos e badulaques, a
frequentar a boate bombada, o pé sujo soturno, o clube de tênis e a feijoada
com pagode, desde que haja gente a conhecer e diversão a experimentar. É sociável
e vaidoso, não se furta a aparecer, espalhar folia e espelhar cretinice. Quem
quer estar ligado em tudo acaba sendo superficial e criando empatia pelo que
diz o amigo popular, o ídolo ou o âncora. Ah, os formadores de opinião, eles possuem o
dom de influenciar gente banal e esvaziada – cada vez mais comum em sociedades
sem tradição ou que não reverenciam seus antepassados e heróis, às vezes por
que sequer os têm. Formam a opinião de quem, de fato? Se a pessoa nem tem uma
argumentação rudimentar sobre o assunto qualquer coisa tá massa, principalmente
se ela não estudou lógica ou não tem o talento para pensar metodicamente, como
acontece com a maioria.
Sem referências, tudo pode ser verdadeiro, tudo parece ter
sentido, toda aresta é aparada. Não sobram dúvidas, como nunca se pensou a
respeito do tema, o que vier estará correto. O homem raciocina por comparação,
se o discurso parece bem embasado ou se o interlocutor é carismático ou então
se a vontade da pessoa é imperiosa, seu desejo terá que se encaixar na promessa
de felicidade sob pena de sofrer em demasia, pois irá comparar com o que
mandarem a pessoa conferir. Assim fica fácil ser convencido por uma opinião
razoável, não sendo incomum ela se tornar regra. O interesse é o que mais distorce saberes objetivos, e quando ele não
entra em campo? Atira-se a fecha, pinta-se o alvo em volta, e voilà, temos um discurso que acertou na
mosca! A opinião foi formada, só que a partir do zero vírgula alguma merreca. O
problema é isso se prolongar, sem checar a verdade das múltiplas opiniões. Nessas
condições, a contradição será aceita numa boa.
O eclético se exime de emitir qualquer opinião autêntica e
apela ao senso comum. Obviamente,
essa é a maneira mais fácil, rápida e confortável de ter aceitação quase
unânime nas mais diversas rodas. Ele carrega consigo um arsenal de clichês e
lugares comuns e os dispara quando confrontado por um raro espertinho ou para
pagar de entendido e gente boa. Sua honrosa falta de preconceito é usada como
forma de maquiar a falta de conceito e originalidade desde o berço. De tanto
tentar conciliar o que é divergente e crer na própria liberdade, esqueceu-se de
cultivar a personalidade. Preferir algo é excluir vários outros. Preferir tudo
é excluir a si mesmo.
Desconfiem, todos têm interesses, às vezes escusos, outras
vezes canalhas mesmo e na maioria das vezes com a mais sincera das boas
intenções. Sempre haverá algo por trás, mas ninguém tem tempo, ou não quer
tê-lo, para destrinchar a malícia ou os subjacentes intentos do palestrante,
artista ou jornalista. Engole-se logo, misturando de forma aleatória e
harmoniosa o que era para ser mais austero e tumultuado. Sobriedade e chatice
minhas? Percebo que ninguém quer sujar a própria reputação nem criar um
mal-estar com o outro. Ter critério é não gostar de muita coisa, seja por
incoerência lógica, seja por um espírito não comportar elefantes e ratos.
Questão de gosto não envolve verdades, ok, mas (à exceção de quem possui o
transtorno de personalidade múltipla) simplesmente não dá para contemplar e
defender movimentos artísticos e sociais com a mesma paixão. Ninguém está
pronto e acabado, mas também ninguém pode ser tão aberto às influências do
mundo.
Pode doer, sangrar, embirrar, contudo é preciso talhar galhos feios em prol de
outros mais saudáveis. A árvore agradecerá. Se ela tiver razão, sentimentos e
juízo.