26 de maio de 2013

Orgulho de não ser Eclético


O ecletismo foi uma escola filosófica que escolhia e unia teses sem ligar muito à coerência interna e à origem das mesmas. Ela se propôs a absorver várias doutrinas e “através da análise e da dialéctica, reuni-las num todo legítimo, com vista à obtenção de uma doutrina melhor e mais vasta." Em suma, buscava-se a verdade a partir do consenso e de uma síntese das teorias anteriores. Os primeiros ecléticos salientavam não haver como o homem ter um critério claro, único e distinto que o levasse à grande verdade, logo tendo de se contentar apenas com a probabilidade de certeza dos fenômenos. Esse seria o norte até a essência das coisas. Tudo bem, uma posição cética, no que tange defender a verossimilhança, criticar os grandiosos sistemas filosóficos e destruir dogmas e valores absolutos. Todavia, essa posição “libera geral” não luta, “se nada é verdadeiro, tudo vale igualmente”, tende a agregar e nivelar por baixo. Quanto de probabilidade legitimaria uma opinião certeira? 90%, 75%, 50%? Ninguém define. É o triunfo do relativismo, oriundo de espíritos pragmáticos e decadentes, que justapõem ideias e objetos que caíram em seus colos e foram tocados por mãos cheias de dedos curiosos. Quando a cultura local não orgulha mais, cede-se aos hábitos do conquistador, tão imediatista, grosseiro e agitador. Afinal, é melhor aliar-se ao vencedor!

Quem me conhece sabe que eu não sou eclético. Pelo contrário, já ouvi muito sobre a minha teimosia e chatice de gosto, de não me abrir ao novo e ao que tá pegando nas rodinhas. Todo mundo havia gostado de alguma porcaria e eu não: pronto, torcia-se o nariz à minha pessoa. É provável que nem fosse levado muito em conta a minha restrição estética, mas sem dúvida eu perdia uns pontos no quesito simpatia e com isso fazia-se pouca questão manter-me por perto. Em poucas linhas vocês perceberam como está correlacionado: não ser eclético, logo não consensual, ser chato, não gostarem do chato e separá-lo dos grupos tão legais e descolados.

Ah, esses ecléticos, julgam-se tolerantes, puxam o saco um do outro e com isso garantem a hipocrisia social que impera nesses tempos paradoxais do politicamente correto. Com a liberdade de expressão era para acompanha-la o respeito pela opinião alheia, por mais tosca que fosse, mas a consciência de que a própria opinião é mais uma entre inúmeras outras somente vale dentro do próprio grupo, quem está fora ou entra no grupo e se adequa ou é um alien passível de escárnio. O senso de justiça e de beleza é interno e pouco flexível, as visões de mundo divergentes ameaçam a unidade do grupo e só são permitidas após muita conversa ou quando vindas de uma autoridade. Vejam, a ética não é uma ciência moral erigida por colunas avulsas e portas abertas isoladamente, ela demanda treinamento, como um esporte exige músculos, reflexos, sintonia e visão de jogo. Só tendo experiência e estando atento a detalhes para atingir essa maturação.

 

Este é o cenário pós-moderno: saturação de ideias, informações, teorias, conceitos e estilos. O que ainda não foi pensado nesse planeta achatado? Ecletismo é juntar essa balbúrdia de imagens, textos e discursos e dar uma nova roupagem, aparentando novidade. Há a convicção de que o estilo vale mais que a técnica, que é facilmente copiada por experts. Porém, um leitor atento logo nota o mau gosto da releitura extravagante e da abreviada combinação de estilos, como num clipe da Lady Gaga. Isso então é o bom, que vende feito água de coco na praia e energético em rave? Isso é acompanhar tendência e não ser excluído pelo restante dos consumidores despossuídos de juízo crítico? Na obra símbolo do apanhado geral, cuja identificação é imediata, pois há pedaços comuns ao urbanoide aflito e fragmentado, o pop resplandece e vende, e precisa vender.

O eclético não se prende – ele é leve, pois já basta o peso dos grilhões imperialistas em seu pé – a um estilo ou a uma tribo, ele está disposto a fazer várias caretas e poses, a vestir vários panos e badulaques, a frequentar a boate bombada, o pé sujo soturno, o clube de tênis e a feijoada com pagode, desde que haja gente a conhecer e diversão a experimentar. É sociável e vaidoso, não se furta a aparecer, espalhar folia e espelhar cretinice. Quem quer estar ligado em tudo acaba sendo superficial e criando empatia pelo que diz o amigo popular, o ídolo ou o âncora.  Ah, os formadores de opinião, eles possuem o dom de influenciar gente banal e esvaziada – cada vez mais comum em sociedades sem tradição ou que não reverenciam seus antepassados e heróis, às vezes por que sequer os têm. Formam a opinião de quem, de fato? Se a pessoa nem tem uma argumentação rudimentar sobre o assunto qualquer coisa tá massa, principalmente se ela não estudou lógica ou não tem o talento para pensar metodicamente, como acontece com a maioria.

Sem referências, tudo pode ser verdadeiro, tudo parece ter sentido, toda aresta é aparada. Não sobram dúvidas, como nunca se pensou a respeito do tema, o que vier estará correto. O homem raciocina por comparação, se o discurso parece bem embasado ou se o interlocutor é carismático ou então se a vontade da pessoa é imperiosa, seu desejo terá que se encaixar na promessa de felicidade sob pena de sofrer em demasia, pois irá comparar com o que mandarem a pessoa conferir. Assim fica fácil ser convencido por uma opinião razoável, não sendo incomum ela se tornar regra. O interesse é o que mais distorce saberes objetivos, e quando ele não entra em campo? Atira-se a fecha, pinta-se o alvo em volta, e voilà, temos um discurso que acertou na mosca! A opinião foi formada, só que a partir do zero vírgula alguma merreca. O problema é isso se prolongar, sem checar a verdade das múltiplas opiniões. Nessas condições, a contradição será aceita numa boa.

O eclético se exime de emitir qualquer opinião autêntica e apela ao senso comum. Obviamente, essa é a maneira mais fácil, rápida e confortável de ter aceitação quase unânime nas mais diversas rodas. Ele carrega consigo um arsenal de clichês e lugares comuns e os dispara quando confrontado por um raro espertinho ou para pagar de entendido e gente boa. Sua honrosa falta de preconceito é usada como forma de maquiar a falta de conceito e originalidade desde o berço. De tanto tentar conciliar o que é divergente e crer na própria liberdade, esqueceu-se de cultivar a personalidade. Preferir algo é excluir vários outros. Preferir tudo é excluir a si mesmo.

 

Desconfiem, todos têm interesses, às vezes escusos, outras vezes canalhas mesmo e na maioria das vezes com a mais sincera das boas intenções. Sempre haverá algo por trás, mas ninguém tem tempo, ou não quer tê-lo, para destrinchar a malícia ou os subjacentes intentos do palestrante, artista ou jornalista. Engole-se logo, misturando de forma aleatória e harmoniosa o que era para ser mais austero e tumultuado. Sobriedade e chatice minhas? Percebo que ninguém quer sujar a própria reputação nem criar um mal-estar com o outro. Ter critério é não gostar de muita coisa, seja por incoerência lógica, seja por um espírito não comportar elefantes e ratos. Questão de gosto não envolve verdades, ok, mas (à exceção de quem possui o transtorno de personalidade múltipla) simplesmente não dá para contemplar e defender movimentos artísticos e sociais com a mesma paixão. Ninguém está pronto e acabado, mas também ninguém pode ser tão aberto às influências do mundo.

Pode doer, sangrar, embirrar, contudo é preciso talhar galhos feios em prol de outros mais saudáveis. A árvore agradecerá. Se ela tiver razão, sentimentos e juízo.

23 de maio de 2013

Esvaziamento terrível


A interpretação da alma de alguém desalmado é a ratificação, ou mais uma confirmação, do movimento necessário de esvaziamento ontológico iniciado com a modernidade, que cindiu o sujeito, porém sem reconhecer sua implosão; processo forçoso porque o círculo se tornou quadrado e não havia outra figura geométrica para dominar o inconsciente coletivo, ou porque era herético demais admitir mais de um maravilhoso sol orbitando no sistema sem gerar conflitos para saber qual era mais deslumbrante, como se os deuses fossem vaidosos. Restou, então, aos pós-modernos juntar os cacos, e posteriormente esfregar no rosto de cada sonhador da unidade ou dos epiciclos harmoniosos a total fragmentação social e a falta de sentido além dos gestos. A entropia sempre vence onde há calor e perde quando o universo fechado congela. Na verdade, restou algo além de pedacinhos espalhados pelo chão poroso, que foi a metafísica dos signos. Um alento romanesco.

Marcas iludem e o cordeiro dourado é tudo aquilo que ainda promete, mesmo que nunca cumpra, pois sentimentos não podem ser produzidos. Mas o vendedor e o comprador creem na salvação, é o que importa. Claro, subjazem as tentativas de manter sedadas reflexões críticas, apesar das boas intenções e da fé redentora e não compassiva. Sem abafar as ponderações haveria novo esvaziamento, desta vez por parte das massas, que jamais fizeram algo mais que seguir seus supostos líderes; ao cair em si e transformar os sonhos em miragens de sacanas oportunistas, e impossibilitada de ser o novo oportunista, pois a demanda do fim da cadeia é a própria massa, esta irromperia bestialmente sua raiva acumulada e não mais refreada por bálsamos imateriais, destruindo tudo que visse pelo caminho e causando pânico generalizado, um horror à elite. É a consagração da derrocada do sistema fajuto que havia perdurado até então. Sem mais tronos e sem qualquer tipo de ilusão ou esperança se esvanece o autoengano, que é a causa da boa autoestima. E todos possuem sua dose diária, à exceção dos que atingiram o nirvana. Portanto, sem ter o que jurar ou com o que sonhar, predominaria o nada, agora também sobre o homem ordinário. Suicídio, assassínio ou genocídio. Esses são os seus principais efeitos; terríveis, não?

Soluções desesperadas, mas não ilógicas. Por que são lógicas, você me pergunta? Ora, alma destituída de espírito sempre pode se justificar, arruma uma falácia qualquer e sinceramente se escora nela, tal qual um advogado sagaz. O conteúdo subjetivo dos que tinham convicções foi para o ralo, cuja matéria ele escorre junto, sem peneirar as impurezas e o que um dia foi imaculado. Doravante, o corpo terá que se acostumar com o fedor de canos enegrecidos e de fossos enlameados. Acima dos cilindros o que se tornará vazio. Carnes amaciadas; carnes vivas, mas já putrefatas. Contaminação global e irreversível, apocalipse zumbi; terrível, não?

Então qualquer mato ou flor será tido como milagre, assombrando o que se desabituaram a olhar as constelações. Wall-E não entendeu para quê servia a plantinha, mas intuiu que poderia servir para algo e a estocou para mais tarde. Um dia deram a ela o valor que os selvagens ou autômatos não eram capazes de dar. O juízo estético, de fato, é para poucos. As janelas do lar servem mais para fitar o quintal ou a garagem do que o horizonte colorido. Quem se assegura de ter calibrados olhos para ver o que a maioria não percebe? A visão é um sentido imediatista, só fechando os olhos é que se pode imaginar algo mais e fantasiar com o que não foi e com o que poderia ser, ainda que num mundo de regras e leis diferentes das deste.

A realidade local, graças à aridez do hábito e da falta de comparação com o novo, traga todo vivente ao pessimismo. Ah, chega de criticar os otimistas! Os donos do poder são babacas, não sejam tapados quanto a isso, mas lutaram pelo que um dia devanearam. Se eles não perderam o espírito crítico e mantiveram alguma integridade, podem ainda salvar os ignorantes pretensiosos e apressados. Enquanto isso, o redemoinho gira forte, intensamente, sem esgotar sua energia cinética, como gostaríamos de viver a juventude; ele capta cada vez mais incautos a seu horizonte de eventos.

Isso é só o fim, porque lá dentro o tempo não existe. Será que foi lá que  se escondeu o sentido das coisas? Só a eternidade sabe. E pelo jeito ela existe.  Terrível, não?

17 de maio de 2013

O que é ser/estar Normal? (pt. II)


II

Há um filósofo francês, especializado em questões da Medicina, chamado Georges Canguilhem (1904-1995), sua tese de doutorado continha o título O Normal e o Patológico. Ele se esforçou por sistematizar uma filosofia para as ciências da vida. Convém expor sua diferenciação entre normalidade, que eu vinha falando na seção I, e normatividade. Esta é a capacidade para avaliar estados humanos pela racionalidade do fenômeno vital, enquanto a primeira é simplesmente um critério valorativo, que separa os estados normais dos patológicos. Canguilhem se perguntava: “O conceito de doença será o conceito de uma realidade objetiva acessível ao conhecimento científico quantitativo? A diferença de valor que o ser vivo estabelece entre sua vida normal e sua vida patológica seria uma aparência ilusória que o cientista deveria negar?” Ele não acreditava que a relação entre o normal e o patológico se desse através de mera variação quantitativa. A saúde seria uma categoria fundamental de imposição de uma normatividade social à vida. O autor ia contra o conceito de média que regulava as leis da fisiologia.

Nessa experiência clínica o normal estaria assentado num campo mensurável acessível à observação, com meios de abstrair o corpo a um padrão geral de cálculo. Como o corpo, nesse caso, foi reconfigurado baseando-se nos princípios da física moderna, a individualidade complexa do sujeito se dissolveu em sistemas e, de uma vez, simplificou-se em prol da manipulação por experts. A partir dessa constituição de uma tecnologia de normatização do corpo temos o guia da racionalidade clínica que, na verdade, é uma anatomia fascinada pela procura da lesão de órgãos e tecidos como causa explicativa para desvios de conduta; um sistema de saber e de orientação da praxis que procura naturalizar seus dispositivos de justificação, como se estivéssemos diante de fatos que falassem por si mesmos. E quem afirma existir apenas diferenças quantitativas entre normal e patológico admite a possibilidade de definir a saúde perfeita, no entanto, isso não passaria de um conceito normativo, um tipo ideal. Concluindo logicamente, essa idealização estabeleceria normas, que visam desvalorizar a existência a fim de legitimar a correção da mesma.

Mas correção ou modificação em nome do quê? Canguilhem responde e defende o contrário, apelando à fenomenologia. O patológico só começaria quando é reconhecido como tal pela consciência (quando exatamente?), então marcada pela experiência da doença, Em medicina, como em qualquer outra área onde há primazia do olhar humano, é o pathos que chama o logos, fazendo-o funcionar. A ontologia, por conseguinte, se faz presente para, com menos mecanicismo, fundar as normas, porque a normatividade dependerá do que o próprio vivente relata e de como ele sofre em suas relações sociais e nos períodos de introspecção. (Pode haver controvérsia, mas não consigo pensar no ser humano como um autômato). Para o francês, a norma própria ao normal é, antes de tudo, individual.

Sendo assim, a dimensão quantitativa deixa de exclusivamente autorizar a intervenção médica na atividade terapêutica, e a dimensão qualitativa passa a ser preponderante. Além disso, como a perturbação do equilíbrio anterior é a doença, essa alteração em alguma localidade do organismo implicará numa alteração do todo, fazendo com esse organismo por inteiro adoeça. Para o filósofo a normalidade se relaciona obrigatoriamente com o meio, simplesmente porque é onde o sujeito responderia às exigências do momento. Desse modo, a patologia poderia até ser uma variação normativa da vida, mas não seria regida pela mesma norma que a fisiologia, ou seja, ela restaria relacionada à vida e não à saúde. Logo, cairiam por terra todas as prescrições dos DSMs, tidas quase como a Lei entre os psiquiatras.

O meio ambiente humano é fundamentalmente mediado por construções de valores sociais. Discordar dos valores vigentes e não se identificar com qualquer outro é um ponto de urgência. Temos, então, uma famosa sentença de Canguilhem: “Viver é, mesmo para uma ameba, preferir e excluir". Tanto no menor nível quanto no maior, são as crenças, ideologias e paixões que dão sentido à vida. Cabe aos donos do poder e à tradição hegemônica reconhecer isso, conscientizando-se de que estão torturando seu povo ao reduzir a margem de escolha e ao classifica-lo “doente”. Contudo, é possível que o biopoder deseje justamente essa opressão.

O componente político se infiltra neste ponto, do definir “o que é doente” e “o que é sofrimento psíquico”. A rigor, não há qualquer relação imediata entre a dor física e o desprazer advindo de um sofrimento tido como patológico que acaba por levar as pessoas à clínica. Há certas dores buscadas como forma de irromper uma autoviolência criadora, ou pelo menos uma superação de limites. Como diz Nietzsche: “Só a grande dor [...] nos obriga, a nós filósofos, a descer em nossas profundezas e a nos desfazer de toda confiança [...] Duvido que tal dor nos deixe melhor, mas eu sei que ela nos aprofunda”. É como a fatídica máxima: “o que não me mata me fortalece”. Quem não decai não poderá se elevar um dia.

Em última instância, a doença é tudo que faz o corpo falar, agitar, gritar, que transforma o corpo em um problema e que demanda cuidados e intervenção. Ela é a produção de normas de ajustamento entre o organismo consigo mesmo e com o ambiente circundante; normas então vivenciadas como restrição do mundo e da capacidade de atuação do indivíduo biológico; normas incômodas, pois vinculadas às pulsões de morte, conforme exposto na seção I. Novas normas deverão servir de embrião do desenvolvimento de novos comportamentos, doravante afirmadores. É o lado bom das crises: fazer ver o que a zona de conforto interdita, proíbe. O que aparece como rompantes de neuroses e anormalidade pode ser o prenúncio de uma nova potência de normatividade em relação à vida. Em outras palavras: o conceito de normal se renova ciclicamente. Bom para os artistas.

E o conceito de vida, o que é? Bem, é especulativo, um conceito que, longe de impor uma normatividade reguladora única a nossas expectativas de realização, deve ser capaz de expor a raiz da profunda a-normatividade e indeterminação que parece nos guiar no interior dos embates na vida social. Afinal, queremos crer que o inferno são os outros. Como já dito, a vida é uma atividade normativa polarizada contra tudo o que é valor negativo, tudo o que significa decréscimo, decadência e impotência, e resignação nesse estágio. Se a diversidade orgânica não implicar em tal polarização, a diferença pouco importaria, não significaria doença. Por outro lado, seres vivos que se afastaram do tipo específico, muitas vezes serão os inventores de novas perspectivas e hábitos. A vida, mesmo no animal, não é mera capacidade de evitar dissabores e se conservar. Ela é tentativa, ensaística, atividade baseada na capacidade de afrontar riscos e triunfar, tolerando ocasionais monstruosidades. Ao comparar com o citado acima, vemos uma posição nietzscheana no filósofo francês, que procura vincular a criação de valores com a vontade de potência.

Essa posição de centro produtor de valor é própria a todo homem são (normativo). Uma norma única de vida é sentida de modo privativo, e não positivamente, como gostaria a fria medicina. Sendo a saúde a produção de normas de um organismo dentro de seu meio, a norma seria carregar um potencial adaptativo e não simplesmente se conformar com o que há. Do contrário (organismo completamente adaptado e fixo), surgiria a doença, por estar ausente a margem de ação a fim de suportar fatais mudanças e infidelidades do meio. Uma vida sã e confiante é uma vida flexível, diferente das máquinas. Ser capaz de trazer várias soluções a um conjunto de problemas e ainda definir significados valorativos da ação operada garante a saúde. Nessa linha, um reflexo não é mera reação, mas ação a partir de uma intenção dotada de sentido e de orientação. Essa vida reflexiva afasta-se da menoridade.

Sintetizamos a experiência intelectual de Canguilhem através das seguintes perguntas: compreendemos bem um organismo biológico quando vemos nele apenas um feixe de funções e órgãos que se submetem a padrões gerais de mensuração e quantificação, respondendo às exigências de ajustamento a um meio causalmente fechado? Essa vida não seria apenas o exemplo de uma razão que se transformou em princípio de autoconservação; princípio que tem em vista apenas as configurações imediatas do meio ambiente em um presente instantâneo e pontual? Vida mutilada por não reconhecer mais sua potência de produção de valores? Caminhamos a isso ao excluir a subjetividade da normatividade?

Ficam as contundentes indagações.

 

- Textos-base:

MARTINS, Erik F. Miletta. Notas sobre “O Normal e o Patoológico” de G. Canguilhem. Extraído do site www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/n00006.htm.

PUTTINI, Rodolfo. O Normal e o Patológico e a Epistemologia das Ciências da Vida e da Saúde em Georges Canguilhem. Extraído do site www.cetrans.com.br/artigos/Rodolfo_Puttini.pdf.

SAFATLE, Vladimir. O que é uma Normatividade Vital? Saúde e doença a partir de Georges Canguilhem. Extraído do site http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1678-31662011000100002&script=sci_arttext.

16 de maio de 2013

O que é ser/estar Normal? (pt. I)


"O espanto verdadeiramente vital é a angústia suscitada pela doença".


I

Está para sair o tal do DSM-5, um manual para psiquiatras diagnosticarem pacientes com psicopatologias. A cada edição ele aumenta seu escopo de doenças, e com isso o número de doentes pelo globo afora. Quer dizer então que o mundo de fato está acabando e todos estão loucos? Interprete como quiser, mas eu mantenho o ceticismo quanto a isso, vários pensadores concluíram que “dificilmente alguém que passa por conflitos psíquicos e períodos de incerteza entrará em um consultório psiquiátrico sem um diagnóstico e uma receita médica”. Isto é, querem tanto rotular comportamentos e padrões de conduta que inventaram esse monte de transtornos para saberem com o que estão lidando, portanto, irão se sentir mais seguros para reagir e curar. Ao enquadrar os sintomas e dar um nome ao problema, acaba-se com a ansiedade gerada pela ignorância. Mas! Quanto mais se tenta conhecer, mais ignorante a pessoa se percebe, cada nova descoberta leva a outra e a generalização passa a ser especialização, afunilando-se e levando a graus cada vez mais precisos. A pergunta que se faz é: isso é realmente necessário? Já não se sabe há tempos que de perto ninguém é normal e que não há diretrizes e receitas para cada situação enfrentada e cada imprevisto inevitável?
O pior é que esses doutores juram seguir métodos rigorosos, objetivos e imparciais, como exige toda boa ciência. Senão vejamos: a evolução do pensamento científico não se deu por uma série independente, mas conectada à evolução de ideias filosóficas, metafísicas, políticas e religiosas (doutrinas estranhas ao rigor metodológico), buscando esclarecer a gênese dos padrões de racionalidade, bem como estabelecer as condições de exercício que se assumem o aspecto de técnicas e proposições com referência, entre outras formações discursivas. E na prática clínica, estamos lidando com pessoas, o que significa entrar em um terreno incerto, complexo e imprevisível.
Pergunta: existem ciências do normal e do patológico? Se afirmativo, e a medicina diz sim, como ela estabelece o que é normal? Há boas chances de essa tradição positivista estar permeada de falácias, geradas uma sobre a outra, porque uma vez iniciado o processo, não se consegue abdicar das conquistas e dos ganhos obtidos. Deveria haver uma troca justa entre o paciente e seu médico, contudo os Ph. Deuses auferem a outra parte como mais um objeto do mundo e não como um sujeito social e histórico. Penso não adiantar tratar o ser humano como máquina – até certo ponto ele nada mais é que um apunhado de células e compostos orgânicos e químicos, porém seu poder de decisão recebe influência de uma porrada de lugares.
            Então chegamos à dificuldade de afirmar categoricamente que o sujeito é de tal forma e fim de papo. O pessoal de jaleco ou se esquece disso, tentando fundar uma ciência exata no que é inerentemente subjetivo, movediço e dependente de padrões morais – moral estabelecida endogenamente, ou seja, predominando os aspectos sociais e ambientais (peculiaridades locais) sobre os biológicos – ou esse pessoal almeja desesperadamente a internalização de uma normatividade disciplinar decidida em laboratório. Vai saber o que eles intentam. Talvez o excesso de razão os tenha deixado malucos, paranoicos, querendo transformar toda experiência de sofrimento em patologia. Perigoso. Como eles não sofrem, oh, desejam solidariamente que ninguém mais sofra. Não há juramento de Hipócrates, há juramento “diagnosticar e curar”, só que na base do custe o que custar.
Eu sigo minha vida com o lema na cabeça “no pain, no gain”. Onde já se viu conseguir coisas boas sem sofrer uns arranhões, levar umas topadas e rolar umas lágrimas na face amaciada? Rugas, cicatrizes e manchas fazer parte de toda vida digna: melhor se arriscar a perder o juízo do que se trancar num gabinete alheio às convulsões psíquicas e sociais. É muito sem graça ser totalmente normal, como prega a cartilha dos conservadores. Você ficaria sem história para contar e provavelmente não teria pessoas queridas ao seu lado. Quem coleciona amores e amigos possivelmente deixou uns desafetos pelo caminho, ao menos nas fases críticas. Basta relaxar e viver como se não houvesse psicopatologia séria além da que lhe faz causar danos diretos a outrem ou a si. Todos são vaidosos, invejosos e orgulhosos, claro que há nisso uma escala de intensidade; se for sofrer porque recebeu uns adjetivos, pode taxar essa pessoa de desequilibrada, não tolera juízos dos outros, tem teto de cristal.
O que, afinal, é ser ou estar normal? É difícil (impossível?) solucionar a questão em definitivo. O nome deste blog carrega um duplo sentido que faz qualquer um se perguntar: é anormalidade ou a normalidade? Ou ainda, a normal idade ou idade anormal? Tanto faz, é tudo igual. Qualquer um tem seus altos e baixos e não há juiz ou médico infalível que vá bater o martelo ou o estetoscópio em seu peito a fim de convencê-lo por a + b que o laudo ou a sentença dele é a correta, do tipo “siga-me ou se ferre”. É sempre mais uma opinião, por mais metódico e bem intencionado que ele seja, é um indivíduo que lhe conhece por um ou dois pontos de vista, e não pelas inúmeras perspectivas que teus 20, 40 ou 60 anos foram capazes de armazenar na cachola ainda flexível e sadia. Só a própria pessoa teria plena capacidade de se julgar sã ou biruta. Mas por qual critério? Bem, dizem que quem perdeu o medo de ficar louco é porque está precisando de uns remedinhos, quiçá de um estágio no manicômio. Mas quem não se engana, não é mesmo? O doidinho pode estar mais lúcido que eu.
          Bom, meu critério sobre quem é/está normal é: o sujeito ser capaz de responder as demandas de sua sociedade e de discernir crimes e não crimes, praticando atos que não violem a legislação penal. Quem escapa disso é bandido ou maluco. Mas se seguir a lei é ser justo, a lei em si não pode ser injusta? Claro que sim, mas só se for analisada de fora, se o texto não é contraditório ele é inerentemente justo, ainda que amanhã se revogue o artigo, quando passará a ser injusto, assim mesmo, de uma hora pra outra. Ou seja, assim como a justiça não possui um critério metafísico para se fazer valer, a normalidade também não possui esse tipo de condenação, avulsa ao que de fato acontece naquela sociedade. Se o hábito de mutilar partes do corpo é tido como normal em certas tribos ou mesmo núcleos ditos civilizados, essa normalidade causa espanto a quem não segue tal praxe. Como então garantir que não são os membros/cidadãos os anormais, mas sim o conjunto social inteiro? É só julgando de fora, porém o critério pode se relativizar até o limite. Será que há uma ONU da normalidade? Quem sabe seja necessário, pois muitas tretas e contendas se originam porque um se acha normalzinho e acusa o outro de ser pervertido ou subversivo, e vice-versa.
         Existe alguma exigência social universal? Talvez nenhuma, e tudo seja questão de estabelecer significados no seio do grupo social. Porém, darei um passo adiante e direi que sobreviver e reproduzir (o grupo e a pessoa) seja universal. O resto seria discurso metafísico. Ainda que algumas sociedades castrem e sacrifiquem alguns de seus membros, isso não revoga minha teoria, pois os líderes instituíram – apesar de não admitirem isso, apontando o dedo para a tradição ou a mitologia, é o que ocorre –essa violência como necessária para aplacar a ira dos deuses, que doravante passariam a ser benevolente com aquele grupo. Uma sociedade só seria realmente doente se estimulasse, ainda que indiretamente, comportamentos negativos, como suicídio, depressão e castidade. Ela não restaria por muito tempo, a doença tende a exterminar o adoecido e é justamente o que acontecerá. A sociedade pode até ser decadente e perdurar, como é o cristianismo, mas não pode ser doente, senão se apagará da face da Terra, quem sabe até dos livros de história, pois esta é contada pelos vitoriosos.
         Tudo que não deseja se expandir, e consequentemente se afirmar a fim de se manter, está doente; resignado com as pulsões de morte irá se retrair até desaparecer. Porque a saúde não é uma constante de satisfação, mas o poder de dominar situações hostis. A falta de vontade, a covardia e o isolamento são sintomas da autodestruição. Esse adoecido quer se conservar sem se adaptar às mudanças do meio; não tardará para outro Ser mais afirmativo e flexível tomar seu lugar, podendo sequer ter ocorrido a falência derradeira do doente. Nada mais justo, pois a natureza tende a manter só o que é normal, os excessos servirão de adubo e alimento à harmonia do ecossistema. Ainda que essa harmonia seja bastante assimétrica.
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P.S.1: Haverá mais uma parte, mais técnica e sóbria.
P.S.2: Em homenagem a este blog, que complementa 4 anos, escolhi o tema que nomeia o mesmo.