II
Há
um filósofo francês, especializado em questões da Medicina, chamado Georges
Canguilhem (1904-1995), sua tese de doutorado continha o título O Normal e o
Patológico. Ele se esforçou por sistematizar uma filosofia para as ciências
da vida. Convém expor sua diferenciação entre normalidade, que eu vinha falando
na seção I, e normatividade. Esta é a capacidade para avaliar estados humanos
pela racionalidade do fenômeno vital, enquanto a primeira é simplesmente um
critério valorativo, que separa os estados normais dos patológicos. Canguilhem se perguntava: “O
conceito de doença será o conceito de uma realidade objetiva acessível ao
conhecimento científico quantitativo? A diferença de valor que o ser vivo
estabelece entre sua vida normal e sua vida patológica seria uma aparência
ilusória que o cientista deveria negar?” Ele não acreditava que a relação entre
o normal e o patológico se desse através de mera variação quantitativa. A saúde
seria uma categoria fundamental de imposição de uma normatividade social à
vida. O autor ia contra o conceito de
média que regulava as leis da fisiologia.
Nessa
experiência clínica o normal estaria assentado num campo mensurável acessível à
observação, com meios de abstrair o corpo a um padrão geral de cálculo. Como o
corpo, nesse caso, foi reconfigurado baseando-se nos princípios da física moderna, a individualidade complexa do sujeito
se dissolveu em sistemas e, de uma vez, simplificou-se em prol da manipulação
por experts. A partir dessa constituição de uma tecnologia de
normatização do corpo temos o guia da racionalidade clínica que, na verdade, é
uma anatomia fascinada pela procura da lesão de órgãos e tecidos como causa
explicativa para desvios de conduta; um sistema de saber e de orientação da praxis
que procura naturalizar seus dispositivos de justificação, como se estivéssemos
diante de fatos que falassem por si mesmos. E quem afirma existir apenas
diferenças quantitativas entre normal e patológico admite a possibilidade de
definir a saúde perfeita, no entanto, isso não passaria de um conceito
normativo, um tipo ideal. Concluindo logicamente, essa idealização
estabeleceria normas, que visam desvalorizar a existência a fim de legitimar a
correção da mesma.
Mas correção ou modificação em nome do quê? Canguilhem responde e defende o
contrário, apelando à fenomenologia. O patológico só começaria quando é reconhecido
como tal pela consciência (quando exatamente?), então marcada pela experiência
da doença, Em medicina, como em qualquer outra área onde há primazia do olhar
humano, é o pathos que chama o logos,
fazendo-o funcionar. A ontologia, por
conseguinte, se faz presente para, com menos mecanicismo, fundar as normas, porque
a normatividade dependerá do que o próprio vivente relata e de como ele sofre
em suas relações sociais e nos períodos de introspecção. (Pode haver
controvérsia, mas não consigo pensar no ser humano como um autômato). Para o
francês, a norma própria ao normal é, antes de tudo, individual.
Sendo assim, a dimensão quantitativa
deixa de exclusivamente autorizar a intervenção médica na atividade
terapêutica, e a dimensão qualitativa passa a ser preponderante. Além disso,
como a perturbação do equilíbrio anterior é a doença, essa alteração em alguma
localidade do organismo implicará numa alteração do todo, fazendo com esse
organismo por inteiro adoeça. Para o filósofo a normalidade se relaciona
obrigatoriamente com o meio, simplesmente porque é onde o sujeito responderia
às exigências do momento. Desse modo, a patologia poderia até ser uma variação
normativa da vida, mas não seria regida pela mesma norma que a fisiologia, ou
seja, ela restaria relacionada à vida e não à saúde. Logo, cairiam por terra
todas as prescrições dos DSMs, tidas quase como a Lei entre os psiquiatras.
O meio
ambiente humano é fundamentalmente mediado por construções de valores sociais. Discordar dos
valores vigentes e não se identificar com qualquer outro é um ponto de
urgência. Temos, então, uma famosa sentença de Canguilhem: “Viver é, mesmo para
uma ameba, preferir e excluir". Tanto no menor nível quanto no maior, são
as crenças, ideologias e paixões que dão sentido à vida. Cabe aos donos do
poder e à tradição hegemônica reconhecer isso, conscientizando-se de que estão
torturando seu povo ao reduzir a margem de escolha e ao classifica-lo “doente”.
Contudo, é possível que o biopoder deseje justamente essa opressão.
O componente
político se infiltra neste ponto, do definir “o que é doente” e “o que é
sofrimento psíquico”. A rigor, não há qualquer relação imediata entre a dor
física e o desprazer advindo de um sofrimento tido como patológico que acaba
por levar as pessoas à clínica. Há certas dores buscadas como forma de irromper
uma autoviolência criadora, ou pelo menos uma superação de limites. Como diz Nietzsche:
“Só a grande dor [...] nos obriga, a nós filósofos, a descer em nossas
profundezas e a nos desfazer de toda confiança [...] Duvido que tal dor nos
deixe melhor, mas eu sei que ela nos aprofunda”. É como a fatídica máxima: “o
que não me mata me fortalece”. Quem não decai não poderá se elevar um dia.
Em última
instância, a doença é tudo que faz o
corpo falar, agitar, gritar, que transforma o corpo em um problema e que demanda cuidados e intervenção. Ela é a produção
de normas de ajustamento entre o organismo consigo mesmo e com o ambiente
circundante; normas então vivenciadas como restrição do mundo e da capacidade
de atuação do indivíduo biológico; normas incômodas, pois vinculadas às pulsões
de morte, conforme exposto na seção I. Novas normas deverão servir de embrião
do desenvolvimento de novos comportamentos, doravante afirmadores. É o lado bom
das crises: fazer ver o que a zona de conforto interdita, proíbe. O que aparece
como rompantes de neuroses e anormalidade pode ser o prenúncio de uma nova
potência de normatividade em relação à vida. Em outras palavras: o conceito de
normal se renova ciclicamente. Bom para os artistas.
E o
conceito de vida, o que é? Bem, é especulativo, um conceito que, longe de impor
uma normatividade reguladora única a nossas expectativas de realização, deve
ser capaz de expor a raiz da profunda a-normatividade e indeterminação que
parece nos guiar no interior dos embates na vida social. Afinal, queremos crer
que o inferno são os outros. Como já dito, a vida é uma atividade normativa
polarizada contra tudo o que é valor negativo, tudo o que significa decréscimo,
decadência e impotência, e resignação nesse estágio. Se a diversidade orgânica
não implicar em tal polarização, a diferença pouco importaria, não significaria
doença. Por outro lado, seres vivos que se afastaram do tipo específico, muitas
vezes serão os inventores de novas perspectivas e hábitos. A vida, mesmo no
animal, não é mera capacidade de evitar dissabores e se conservar. Ela é
tentativa, ensaística, atividade baseada na capacidade de afrontar riscos e
triunfar, tolerando ocasionais monstruosidades. Ao comparar com o citado acima,
vemos uma posição nietzscheana no filósofo francês, que procura vincular a
criação de valores com a vontade de potência.
Essa
posição de centro produtor de valor é própria a todo homem são (normativo). Uma
norma única de vida é sentida de modo privativo, e não positivamente, como
gostaria a fria medicina. Sendo a saúde a produção de normas de um organismo dentro
de seu meio, a norma seria carregar um potencial adaptativo e não simplesmente
se conformar com o que há. Do contrário (organismo completamente adaptado e
fixo), surgiria a doença, por estar ausente a margem de ação a fim de suportar fatais
mudanças e infidelidades do meio. Uma vida sã e confiante é uma vida flexível,
diferente das máquinas. Ser capaz de trazer várias soluções a um conjunto de
problemas e ainda definir significados valorativos da ação operada garante a
saúde. Nessa linha, um reflexo não é mera reação, mas ação a partir de uma
intenção dotada de sentido e de orientação. Essa vida reflexiva afasta-se da
menoridade.
Sintetizamos
a experiência intelectual de Canguilhem através das seguintes perguntas:
compreendemos bem um organismo biológico quando vemos nele apenas um feixe de
funções e órgãos que se submetem a padrões gerais de mensuração e
quantificação, respondendo às exigências de ajustamento a um meio causalmente
fechado? Essa vida não seria apenas o exemplo de uma razão que se transformou
em princípio de autoconservação; princípio que tem em vista apenas as
configurações imediatas do meio ambiente em um presente instantâneo e pontual?
Vida mutilada por não reconhecer mais sua potência de produção de valores? Caminhamos
a isso ao excluir a subjetividade da normatividade?
Ficam as
contundentes indagações.
- Textos-base:
MARTINS,
Erik F. Miletta. Notas sobre “O Normal e o Patoológico” de G. Canguilhem.
Extraído do site www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/n00006.htm.
PUTTINI, Rodolfo. O Normal e o
Patológico e a Epistemologia das Ciências da Vida e da Saúde em Georges
Canguilhem. Extraído do site www.cetrans.com.br/artigos/Rodolfo_Puttini.pdf.
SAFATLE,
Vladimir. O que é uma Normatividade Vital? Saúde e doença a partir de Georges
Canguilhem. Extraído do site http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1678-31662011000100002&script=sci_arttext.
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