26 de maio de 2013

Orgulho de não ser Eclético


O ecletismo foi uma escola filosófica que escolhia e unia teses sem ligar muito à coerência interna e à origem das mesmas. Ela se propôs a absorver várias doutrinas e “através da análise e da dialéctica, reuni-las num todo legítimo, com vista à obtenção de uma doutrina melhor e mais vasta." Em suma, buscava-se a verdade a partir do consenso e de uma síntese das teorias anteriores. Os primeiros ecléticos salientavam não haver como o homem ter um critério claro, único e distinto que o levasse à grande verdade, logo tendo de se contentar apenas com a probabilidade de certeza dos fenômenos. Esse seria o norte até a essência das coisas. Tudo bem, uma posição cética, no que tange defender a verossimilhança, criticar os grandiosos sistemas filosóficos e destruir dogmas e valores absolutos. Todavia, essa posição “libera geral” não luta, “se nada é verdadeiro, tudo vale igualmente”, tende a agregar e nivelar por baixo. Quanto de probabilidade legitimaria uma opinião certeira? 90%, 75%, 50%? Ninguém define. É o triunfo do relativismo, oriundo de espíritos pragmáticos e decadentes, que justapõem ideias e objetos que caíram em seus colos e foram tocados por mãos cheias de dedos curiosos. Quando a cultura local não orgulha mais, cede-se aos hábitos do conquistador, tão imediatista, grosseiro e agitador. Afinal, é melhor aliar-se ao vencedor!

Quem me conhece sabe que eu não sou eclético. Pelo contrário, já ouvi muito sobre a minha teimosia e chatice de gosto, de não me abrir ao novo e ao que tá pegando nas rodinhas. Todo mundo havia gostado de alguma porcaria e eu não: pronto, torcia-se o nariz à minha pessoa. É provável que nem fosse levado muito em conta a minha restrição estética, mas sem dúvida eu perdia uns pontos no quesito simpatia e com isso fazia-se pouca questão manter-me por perto. Em poucas linhas vocês perceberam como está correlacionado: não ser eclético, logo não consensual, ser chato, não gostarem do chato e separá-lo dos grupos tão legais e descolados.

Ah, esses ecléticos, julgam-se tolerantes, puxam o saco um do outro e com isso garantem a hipocrisia social que impera nesses tempos paradoxais do politicamente correto. Com a liberdade de expressão era para acompanha-la o respeito pela opinião alheia, por mais tosca que fosse, mas a consciência de que a própria opinião é mais uma entre inúmeras outras somente vale dentro do próprio grupo, quem está fora ou entra no grupo e se adequa ou é um alien passível de escárnio. O senso de justiça e de beleza é interno e pouco flexível, as visões de mundo divergentes ameaçam a unidade do grupo e só são permitidas após muita conversa ou quando vindas de uma autoridade. Vejam, a ética não é uma ciência moral erigida por colunas avulsas e portas abertas isoladamente, ela demanda treinamento, como um esporte exige músculos, reflexos, sintonia e visão de jogo. Só tendo experiência e estando atento a detalhes para atingir essa maturação.

 

Este é o cenário pós-moderno: saturação de ideias, informações, teorias, conceitos e estilos. O que ainda não foi pensado nesse planeta achatado? Ecletismo é juntar essa balbúrdia de imagens, textos e discursos e dar uma nova roupagem, aparentando novidade. Há a convicção de que o estilo vale mais que a técnica, que é facilmente copiada por experts. Porém, um leitor atento logo nota o mau gosto da releitura extravagante e da abreviada combinação de estilos, como num clipe da Lady Gaga. Isso então é o bom, que vende feito água de coco na praia e energético em rave? Isso é acompanhar tendência e não ser excluído pelo restante dos consumidores despossuídos de juízo crítico? Na obra símbolo do apanhado geral, cuja identificação é imediata, pois há pedaços comuns ao urbanoide aflito e fragmentado, o pop resplandece e vende, e precisa vender.

O eclético não se prende – ele é leve, pois já basta o peso dos grilhões imperialistas em seu pé – a um estilo ou a uma tribo, ele está disposto a fazer várias caretas e poses, a vestir vários panos e badulaques, a frequentar a boate bombada, o pé sujo soturno, o clube de tênis e a feijoada com pagode, desde que haja gente a conhecer e diversão a experimentar. É sociável e vaidoso, não se furta a aparecer, espalhar folia e espelhar cretinice. Quem quer estar ligado em tudo acaba sendo superficial e criando empatia pelo que diz o amigo popular, o ídolo ou o âncora.  Ah, os formadores de opinião, eles possuem o dom de influenciar gente banal e esvaziada – cada vez mais comum em sociedades sem tradição ou que não reverenciam seus antepassados e heróis, às vezes por que sequer os têm. Formam a opinião de quem, de fato? Se a pessoa nem tem uma argumentação rudimentar sobre o assunto qualquer coisa tá massa, principalmente se ela não estudou lógica ou não tem o talento para pensar metodicamente, como acontece com a maioria.

Sem referências, tudo pode ser verdadeiro, tudo parece ter sentido, toda aresta é aparada. Não sobram dúvidas, como nunca se pensou a respeito do tema, o que vier estará correto. O homem raciocina por comparação, se o discurso parece bem embasado ou se o interlocutor é carismático ou então se a vontade da pessoa é imperiosa, seu desejo terá que se encaixar na promessa de felicidade sob pena de sofrer em demasia, pois irá comparar com o que mandarem a pessoa conferir. Assim fica fácil ser convencido por uma opinião razoável, não sendo incomum ela se tornar regra. O interesse é o que mais distorce saberes objetivos, e quando ele não entra em campo? Atira-se a fecha, pinta-se o alvo em volta, e voilà, temos um discurso que acertou na mosca! A opinião foi formada, só que a partir do zero vírgula alguma merreca. O problema é isso se prolongar, sem checar a verdade das múltiplas opiniões. Nessas condições, a contradição será aceita numa boa.

O eclético se exime de emitir qualquer opinião autêntica e apela ao senso comum. Obviamente, essa é a maneira mais fácil, rápida e confortável de ter aceitação quase unânime nas mais diversas rodas. Ele carrega consigo um arsenal de clichês e lugares comuns e os dispara quando confrontado por um raro espertinho ou para pagar de entendido e gente boa. Sua honrosa falta de preconceito é usada como forma de maquiar a falta de conceito e originalidade desde o berço. De tanto tentar conciliar o que é divergente e crer na própria liberdade, esqueceu-se de cultivar a personalidade. Preferir algo é excluir vários outros. Preferir tudo é excluir a si mesmo.

 

Desconfiem, todos têm interesses, às vezes escusos, outras vezes canalhas mesmo e na maioria das vezes com a mais sincera das boas intenções. Sempre haverá algo por trás, mas ninguém tem tempo, ou não quer tê-lo, para destrinchar a malícia ou os subjacentes intentos do palestrante, artista ou jornalista. Engole-se logo, misturando de forma aleatória e harmoniosa o que era para ser mais austero e tumultuado. Sobriedade e chatice minhas? Percebo que ninguém quer sujar a própria reputação nem criar um mal-estar com o outro. Ter critério é não gostar de muita coisa, seja por incoerência lógica, seja por um espírito não comportar elefantes e ratos. Questão de gosto não envolve verdades, ok, mas (à exceção de quem possui o transtorno de personalidade múltipla) simplesmente não dá para contemplar e defender movimentos artísticos e sociais com a mesma paixão. Ninguém está pronto e acabado, mas também ninguém pode ser tão aberto às influências do mundo.

Pode doer, sangrar, embirrar, contudo é preciso talhar galhos feios em prol de outros mais saudáveis. A árvore agradecerá. Se ela tiver razão, sentimentos e juízo.

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