"O espanto
verdadeiramente vital é a angústia suscitada pela doença".
I
Está para sair o tal do DSM-5, um manual para psiquiatras
diagnosticarem pacientes com psicopatologias. A cada edição ele aumenta seu
escopo de doenças, e com isso o número de doentes pelo globo afora. Quer dizer
então que o mundo de fato está acabando e todos estão loucos? Interprete como
quiser, mas eu mantenho o ceticismo quanto a isso, vários pensadores concluíram
que “dificilmente alguém que passa por conflitos psíquicos e períodos de
incerteza entrará em um consultório psiquiátrico sem um diagnóstico e uma
receita médica”. Isto é, querem tanto rotular comportamentos e padrões de
conduta que inventaram esse monte de transtornos para saberem com o que estão
lidando, portanto, irão se sentir mais seguros para reagir e curar. Ao
enquadrar os sintomas e dar um nome ao problema, acaba-se com a ansiedade
gerada pela ignorância. Mas! Quanto mais se tenta conhecer, mais ignorante a pessoa se percebe,
cada nova descoberta leva a outra e a generalização passa a ser especialização,
afunilando-se e levando a graus cada vez mais precisos. A pergunta que se faz
é: isso é realmente necessário? Já não se sabe há tempos que de perto ninguém é
normal e que não há diretrizes e receitas para cada situação enfrentada e cada
imprevisto inevitável?
O pior é que esses doutores juram seguir
métodos rigorosos, objetivos e imparciais, como exige toda boa ciência. Senão
vejamos: a evolução do pensamento científico não se deu por
uma série independente, mas conectada à evolução de ideias filosóficas,
metafísicas, políticas e religiosas (doutrinas estranhas ao rigor metodológico),
buscando esclarecer a gênese dos padrões de racionalidade, bem como estabelecer
as condições de exercício que se assumem o aspecto de técnicas e proposições
com referência, entre outras formações discursivas. E na prática clínica, estamos lidando com pessoas, o que significa entrar em
um terreno incerto, complexo e imprevisível.
Pergunta: existem ciências do
normal e do patológico? Se afirmativo, e a medicina diz sim, como ela
estabelece o que é normal? Há boas chances de essa tradição positivista estar
permeada de falácias, geradas uma sobre a outra, porque uma vez iniciado o
processo, não se consegue abdicar das conquistas e dos ganhos obtidos. Deveria
haver uma troca justa entre o paciente e seu médico, contudo os Ph. Deuses auferem
a outra parte como mais um objeto do mundo e não como um sujeito social e
histórico. Penso não adiantar tratar o ser humano como máquina
– até certo ponto ele nada mais é que um apunhado de células e compostos
orgânicos e químicos, porém seu poder de decisão recebe influência de uma
porrada de lugares.
Então chegamos à dificuldade de afirmar
categoricamente que o sujeito é de tal forma e fim de papo. O pessoal de jaleco
ou se esquece disso, tentando fundar uma ciência exata no que é inerentemente
subjetivo, movediço e dependente de padrões morais – moral estabelecida endogenamente,
ou seja, predominando os aspectos sociais e ambientais (peculiaridades locais) sobre
os biológicos – ou esse pessoal almeja desesperadamente a internalização de uma
normatividade disciplinar decidida em laboratório. Vai saber o que eles intentam.
Talvez o excesso de razão os tenha deixado malucos, paranoicos, querendo
transformar toda experiência de sofrimento em patologia. Perigoso. Como eles
não sofrem, oh, desejam solidariamente que ninguém mais sofra. Não há juramento
de Hipócrates, há juramento “diagnosticar e curar”, só que na base do custe o
que custar.
Eu sigo minha vida com o lema na
cabeça “no pain, no gain”. Onde já se
viu conseguir coisas boas sem sofrer uns arranhões, levar umas topadas e rolar
umas lágrimas na face amaciada? Rugas, cicatrizes e manchas fazer parte de toda
vida digna: melhor se arriscar a perder o juízo do que se trancar num gabinete
alheio às convulsões psíquicas e sociais. É muito sem graça ser totalmente normal,
como prega a cartilha dos conservadores. Você ficaria sem história para contar
e provavelmente não teria pessoas queridas ao seu lado. Quem coleciona amores e
amigos possivelmente deixou uns desafetos pelo caminho, ao menos nas fases
críticas. Basta relaxar e viver como se não houvesse psicopatologia séria além
da que lhe faz causar danos diretos a outrem ou a si. Todos são vaidosos,
invejosos e orgulhosos, claro que há nisso uma escala de intensidade; se for
sofrer porque recebeu uns adjetivos, pode taxar essa pessoa de desequilibrada,
não tolera juízos dos outros, tem teto de cristal.
O que,
afinal, é ser ou estar normal? É difícil (impossível?) solucionar a questão em definitivo.
O nome deste blog carrega um duplo sentido que faz qualquer um se perguntar: é
anormalidade ou a normalidade? Ou ainda, a normal idade ou idade anormal? Tanto
faz, é tudo igual. Qualquer um tem seus altos e baixos e não há juiz ou médico
infalível que vá bater o martelo ou o estetoscópio em seu peito a fim de
convencê-lo por a + b que o laudo ou a sentença dele é a correta, do tipo “siga-me
ou se ferre”. É sempre mais uma opinião, por mais metódico e bem intencionado
que ele seja, é um indivíduo que lhe conhece por um ou dois pontos de vista, e
não pelas inúmeras perspectivas que teus 20, 40 ou 60 anos foram capazes de
armazenar na cachola ainda flexível e sadia. Só a própria pessoa teria plena
capacidade de se julgar sã ou biruta. Mas por qual critério? Bem, dizem que quem
perdeu o medo de ficar louco é porque está precisando de uns remedinhos, quiçá
de um estágio no manicômio. Mas quem não se engana, não é mesmo? O doidinho
pode estar mais lúcido que eu.
Bom, meu critério sobre quem é/está normal é:
o sujeito ser capaz de responder as demandas de sua sociedade e de discernir
crimes e não crimes, praticando atos que não violem a legislação penal. Quem
escapa disso é bandido ou maluco. Mas se seguir a lei é ser justo, a lei em si
não pode ser injusta? Claro que sim, mas só se for analisada de fora, se o
texto não é contraditório ele é inerentemente justo, ainda que amanhã se
revogue o artigo, quando passará a ser injusto, assim mesmo, de uma hora pra
outra. Ou seja, assim como a justiça não possui um critério metafísico para se
fazer valer, a normalidade também não possui esse tipo de condenação, avulsa ao
que de fato acontece naquela sociedade. Se o hábito de mutilar partes do corpo é
tido como normal em certas tribos ou mesmo núcleos ditos civilizados, essa
normalidade causa espanto a quem não segue tal praxe. Como então garantir que
não são os membros/cidadãos os anormais, mas sim o conjunto social inteiro? É
só julgando de fora, porém o critério pode se relativizar até o limite. Será
que há uma ONU da normalidade? Quem sabe seja necessário, pois muitas tretas e
contendas se originam porque um se acha normalzinho e acusa o outro de ser
pervertido ou subversivo, e vice-versa.
Existe alguma exigência social universal? Talvez nenhuma,
e tudo seja questão de estabelecer significados no seio do grupo social. Porém,
darei um passo adiante e direi que sobreviver e reproduzir (o grupo e a pessoa)
seja universal. O resto seria discurso metafísico. Ainda que algumas sociedades
castrem e sacrifiquem alguns de seus membros, isso não revoga minha teoria,
pois os líderes instituíram – apesar de não admitirem isso, apontando o dedo
para a tradição ou a mitologia, é o que ocorre –essa violência como necessária
para aplacar a ira dos deuses, que doravante passariam a ser benevolente com
aquele grupo. Uma sociedade só seria realmente doente se estimulasse, ainda que
indiretamente, comportamentos negativos, como suicídio, depressão e castidade.
Ela não restaria por muito tempo, a doença tende a exterminar o adoecido e é
justamente o que acontecerá. A sociedade pode até ser decadente e perdurar,
como é o cristianismo, mas não pode ser doente, senão se apagará da face da
Terra, quem sabe até dos livros de história, pois esta é contada pelos
vitoriosos.
Tudo que não
deseja se expandir, e consequentemente se afirmar a fim de se manter, está
doente; resignado com as pulsões de morte irá se retrair até desaparecer. Porque
a saúde não é uma constante de satisfação, mas o poder de dominar situações
hostis. A falta de vontade, a covardia e o isolamento são sintomas da autodestruição.
Esse adoecido quer se conservar sem se adaptar às mudanças do meio; não tardará
para outro Ser mais afirmativo e flexível tomar seu lugar, podendo sequer ter
ocorrido a falência derradeira do doente. Nada mais justo, pois a natureza
tende a manter só o que é normal, os excessos servirão de adubo e alimento à
harmonia do ecossistema. Ainda que essa harmonia seja bastante assimétrica.
#£(¨@*
P.S.1: Haverá mais uma parte, mais técnica e sóbria.P.S.2: Em homenagem a este blog, que complementa 4 anos, escolhi o tema que nomeia o mesmo.
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