16 de maio de 2013

O que é ser/estar Normal? (pt. I)


"O espanto verdadeiramente vital é a angústia suscitada pela doença".


I

Está para sair o tal do DSM-5, um manual para psiquiatras diagnosticarem pacientes com psicopatologias. A cada edição ele aumenta seu escopo de doenças, e com isso o número de doentes pelo globo afora. Quer dizer então que o mundo de fato está acabando e todos estão loucos? Interprete como quiser, mas eu mantenho o ceticismo quanto a isso, vários pensadores concluíram que “dificilmente alguém que passa por conflitos psíquicos e períodos de incerteza entrará em um consultório psiquiátrico sem um diagnóstico e uma receita médica”. Isto é, querem tanto rotular comportamentos e padrões de conduta que inventaram esse monte de transtornos para saberem com o que estão lidando, portanto, irão se sentir mais seguros para reagir e curar. Ao enquadrar os sintomas e dar um nome ao problema, acaba-se com a ansiedade gerada pela ignorância. Mas! Quanto mais se tenta conhecer, mais ignorante a pessoa se percebe, cada nova descoberta leva a outra e a generalização passa a ser especialização, afunilando-se e levando a graus cada vez mais precisos. A pergunta que se faz é: isso é realmente necessário? Já não se sabe há tempos que de perto ninguém é normal e que não há diretrizes e receitas para cada situação enfrentada e cada imprevisto inevitável?
O pior é que esses doutores juram seguir métodos rigorosos, objetivos e imparciais, como exige toda boa ciência. Senão vejamos: a evolução do pensamento científico não se deu por uma série independente, mas conectada à evolução de ideias filosóficas, metafísicas, políticas e religiosas (doutrinas estranhas ao rigor metodológico), buscando esclarecer a gênese dos padrões de racionalidade, bem como estabelecer as condições de exercício que se assumem o aspecto de técnicas e proposições com referência, entre outras formações discursivas. E na prática clínica, estamos lidando com pessoas, o que significa entrar em um terreno incerto, complexo e imprevisível.
Pergunta: existem ciências do normal e do patológico? Se afirmativo, e a medicina diz sim, como ela estabelece o que é normal? Há boas chances de essa tradição positivista estar permeada de falácias, geradas uma sobre a outra, porque uma vez iniciado o processo, não se consegue abdicar das conquistas e dos ganhos obtidos. Deveria haver uma troca justa entre o paciente e seu médico, contudo os Ph. Deuses auferem a outra parte como mais um objeto do mundo e não como um sujeito social e histórico. Penso não adiantar tratar o ser humano como máquina – até certo ponto ele nada mais é que um apunhado de células e compostos orgânicos e químicos, porém seu poder de decisão recebe influência de uma porrada de lugares.
            Então chegamos à dificuldade de afirmar categoricamente que o sujeito é de tal forma e fim de papo. O pessoal de jaleco ou se esquece disso, tentando fundar uma ciência exata no que é inerentemente subjetivo, movediço e dependente de padrões morais – moral estabelecida endogenamente, ou seja, predominando os aspectos sociais e ambientais (peculiaridades locais) sobre os biológicos – ou esse pessoal almeja desesperadamente a internalização de uma normatividade disciplinar decidida em laboratório. Vai saber o que eles intentam. Talvez o excesso de razão os tenha deixado malucos, paranoicos, querendo transformar toda experiência de sofrimento em patologia. Perigoso. Como eles não sofrem, oh, desejam solidariamente que ninguém mais sofra. Não há juramento de Hipócrates, há juramento “diagnosticar e curar”, só que na base do custe o que custar.
Eu sigo minha vida com o lema na cabeça “no pain, no gain”. Onde já se viu conseguir coisas boas sem sofrer uns arranhões, levar umas topadas e rolar umas lágrimas na face amaciada? Rugas, cicatrizes e manchas fazer parte de toda vida digna: melhor se arriscar a perder o juízo do que se trancar num gabinete alheio às convulsões psíquicas e sociais. É muito sem graça ser totalmente normal, como prega a cartilha dos conservadores. Você ficaria sem história para contar e provavelmente não teria pessoas queridas ao seu lado. Quem coleciona amores e amigos possivelmente deixou uns desafetos pelo caminho, ao menos nas fases críticas. Basta relaxar e viver como se não houvesse psicopatologia séria além da que lhe faz causar danos diretos a outrem ou a si. Todos são vaidosos, invejosos e orgulhosos, claro que há nisso uma escala de intensidade; se for sofrer porque recebeu uns adjetivos, pode taxar essa pessoa de desequilibrada, não tolera juízos dos outros, tem teto de cristal.
O que, afinal, é ser ou estar normal? É difícil (impossível?) solucionar a questão em definitivo. O nome deste blog carrega um duplo sentido que faz qualquer um se perguntar: é anormalidade ou a normalidade? Ou ainda, a normal idade ou idade anormal? Tanto faz, é tudo igual. Qualquer um tem seus altos e baixos e não há juiz ou médico infalível que vá bater o martelo ou o estetoscópio em seu peito a fim de convencê-lo por a + b que o laudo ou a sentença dele é a correta, do tipo “siga-me ou se ferre”. É sempre mais uma opinião, por mais metódico e bem intencionado que ele seja, é um indivíduo que lhe conhece por um ou dois pontos de vista, e não pelas inúmeras perspectivas que teus 20, 40 ou 60 anos foram capazes de armazenar na cachola ainda flexível e sadia. Só a própria pessoa teria plena capacidade de se julgar sã ou biruta. Mas por qual critério? Bem, dizem que quem perdeu o medo de ficar louco é porque está precisando de uns remedinhos, quiçá de um estágio no manicômio. Mas quem não se engana, não é mesmo? O doidinho pode estar mais lúcido que eu.
          Bom, meu critério sobre quem é/está normal é: o sujeito ser capaz de responder as demandas de sua sociedade e de discernir crimes e não crimes, praticando atos que não violem a legislação penal. Quem escapa disso é bandido ou maluco. Mas se seguir a lei é ser justo, a lei em si não pode ser injusta? Claro que sim, mas só se for analisada de fora, se o texto não é contraditório ele é inerentemente justo, ainda que amanhã se revogue o artigo, quando passará a ser injusto, assim mesmo, de uma hora pra outra. Ou seja, assim como a justiça não possui um critério metafísico para se fazer valer, a normalidade também não possui esse tipo de condenação, avulsa ao que de fato acontece naquela sociedade. Se o hábito de mutilar partes do corpo é tido como normal em certas tribos ou mesmo núcleos ditos civilizados, essa normalidade causa espanto a quem não segue tal praxe. Como então garantir que não são os membros/cidadãos os anormais, mas sim o conjunto social inteiro? É só julgando de fora, porém o critério pode se relativizar até o limite. Será que há uma ONU da normalidade? Quem sabe seja necessário, pois muitas tretas e contendas se originam porque um se acha normalzinho e acusa o outro de ser pervertido ou subversivo, e vice-versa.
         Existe alguma exigência social universal? Talvez nenhuma, e tudo seja questão de estabelecer significados no seio do grupo social. Porém, darei um passo adiante e direi que sobreviver e reproduzir (o grupo e a pessoa) seja universal. O resto seria discurso metafísico. Ainda que algumas sociedades castrem e sacrifiquem alguns de seus membros, isso não revoga minha teoria, pois os líderes instituíram – apesar de não admitirem isso, apontando o dedo para a tradição ou a mitologia, é o que ocorre –essa violência como necessária para aplacar a ira dos deuses, que doravante passariam a ser benevolente com aquele grupo. Uma sociedade só seria realmente doente se estimulasse, ainda que indiretamente, comportamentos negativos, como suicídio, depressão e castidade. Ela não restaria por muito tempo, a doença tende a exterminar o adoecido e é justamente o que acontecerá. A sociedade pode até ser decadente e perdurar, como é o cristianismo, mas não pode ser doente, senão se apagará da face da Terra, quem sabe até dos livros de história, pois esta é contada pelos vitoriosos.
         Tudo que não deseja se expandir, e consequentemente se afirmar a fim de se manter, está doente; resignado com as pulsões de morte irá se retrair até desaparecer. Porque a saúde não é uma constante de satisfação, mas o poder de dominar situações hostis. A falta de vontade, a covardia e o isolamento são sintomas da autodestruição. Esse adoecido quer se conservar sem se adaptar às mudanças do meio; não tardará para outro Ser mais afirmativo e flexível tomar seu lugar, podendo sequer ter ocorrido a falência derradeira do doente. Nada mais justo, pois a natureza tende a manter só o que é normal, os excessos servirão de adubo e alimento à harmonia do ecossistema. Ainda que essa harmonia seja bastante assimétrica.
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P.S.1: Haverá mais uma parte, mais técnica e sóbria.
P.S.2: Em homenagem a este blog, que complementa 4 anos, escolhi o tema que nomeia o mesmo.

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