Observe um garoto – ou guri, piá, pivete, dependendo da sua
região -, pode ser uma menina também, tanto faz, você verá como ele é cheio de
energia, curioso e alegre. Uma criança normal gosta de brincar, qualquer uma,
exceção feita àquelas com algum distúrbio psíquico que leva à apatia e às que,
por alguma grave restrição física, cansou de sonhar em mover os braços e as
pernas. É verdade que a falta de limites e o excesso de estímulos, ambos quase
sempre motivados pela displicência dos pais, está formando uma geração de
capetas hiperativos e mimados, ou seja, agitados e petulantes em demasia. Logo
mais estarão frustrados com a frieza, a indiferença e a segregação da sociedade
adulta. Mas isso é tema de outro post. Grosso modo, as crianças urbanas,
ocidentais e a caminho de se civilizarem são tão divertidas e espertas quanto
as “selvagens”. O lado instintivo também grita por dentro. O sortudo que ainda
preserva a memória de quando era pequeno certamente me ratificará. O sortudo
que tem um filho facilmente isso identificará.
Contudo, a educação, o mercado de trabalho, a televisão, a
internet, a moral, etc, exigem dos pais que seus filhos percam ligeiro esse
lado brincalhão e improdutivo. É preciso aprender a ler, a somar, a escrever, a
decorar, a cantar o hino, a repetir frases em inglês, em francês, em cantonês,
etc. Disciplina é a palavra, é a ordem. É claro que há uma unanimidade entre os
moleques: a chatice de ficar sentado na carteira obedecendo à tia, de fazer os
deveres e de prestar atenção em cada besteira dita na escola. Doutrinar é a
palavra de ordem. Os pais têm ciência do modelo pedagógico e do conteúdo
programático para onde enviam os filhos, apenas não entram em detalhes para não
perderam tanto tempo e por confiarem nos diretores, secretários e inspetores.
Detalhe, os bebês crescem rapidinho, a mãe ainda se recupera
dos quilinhos a mais e da descarga hormonal, o pai ainda se recompõe
financeiramente com os gastos extras e então o pimpolho mal pode ser carregado
no colo. Quando vai reparar na ternura, já passou. O menino fala gírias e
bate-boca por futilidades. A mocinha já está de olho nos garotos mais velhos e
talvez esteja aprendendo a beijar. Todos sabem que precisam seguir inúmeras
normas, e eles mesmos criam outras, afinal tendem a copiar o que está implícito
em sua rotina. O futuro do país em grande parte depende deles, a sociedade
almejada deverá ser como infundida diariamente em suas cacholas em formação:
racional, organizada, produtiva, civilizada e hierarquizada. Desse modo
prosseguem o jogo. Reprimem cedo suas propensões infantis e travam no tempo. Água
represada deixa marcas indeléveis no terreno. Não é fácil notar a criancice dos
jovens adultos e a precocidade da puberdade? É como se os assuntos fossem
praticamente os mesmos durante uns 20 anos, dos 10 aos 30.
Eis o cenário que vislumbro: brincadeiras são por pouco tempo
mera distração, gradualmente a competição se torna séria e o instinto de
prevalecer aliado ao pecado capital da vaidade deixam as inocentes crianças
neuróticas. Então o mundo se divide em dois, de um lado os agradáveis
vencedores e do outro os detestáveis perdedores. Ninguém quer fazer parte do
segundo, apesar da maioria nele se encontrar. A leveza de brincar pelo
exclusivo prazer lúdico está se perdendo cedo. O que realmente importa é performance
e destacar-se. O céu é o limite. O pequeno da turma (café-com-leite) tem que
ficar esperto, sua fase de inserção e aprovação é ligeira, célere, em breve ele
terá que se afirmar, tentando superar os mais velhos. Essa seriedade é um saco.
Esse sistema quadrado, rígido e excludente combinado com
adolescentes que usam uma coroa na cabeça dentro de casa tem seus efeitos claramente
percebidos. É o desaforo, a ausência de comprometimento com qualquer causa
solidária, a agressão gratuita e a sexualidade precoce. Eles não são ensinados
a casar cedo, mesmo assim querer fazer sexo, é claro, e são compelidos a isso,
sob pena de ser o cabaço da galera. Quem receber esse rótulo irá se retrair ou
então partir para cima dos outros, exercendo aquela marra típica dos juvenis
nervosinhos e urbanoides. Sem ritos de passagem claramente identificáveis, como
ocorre nas sociedades tradicionais e primitivas, os próprios jovens inventam
uma forma de separar os que se julgam prontos para a vida e os que ainda estão
embaixo da saia da mamãe. O problema é que na verdade ninguém quer perder o
teto e a mesada do papai.
É a autonomia com um grande lastro por trás, e jamais se
admite covardia ou moleza. Os índios caçam, recebem instruções desde cedo para
enfrentar a vida florestal, reconhecem seu papel social e quando se tornam
adultos encontram-se confiantes e sem qualquer vontade de zombar do vizinho. Seu
lastro é a natureza. Sua escola é em campo aberto. Sua ambição é viver. Sua
alegria está em cada momento. Ele caminha, corre, pula, atira flecha, etc. Enquanto
as nossas ficam em salas quadradas, presas em cadeiras quadradas e carregando
mochilas quadradas. Os hormônios anseiam por correria e contato, como entre os
indiozinhos, porém a grande diferença é que os segundos têm atendidas suas
necessidades imediatas e os primeiros se frustram insertos em disciplinas e
restrições motoras com promessas de felicidade. Sei que essa é consequência
inevitável de uma sociedade mais complexa, povoada e progressista, que talvez
se iluda mais que a outra, por mais mítica que seja.
Cada estágio de crescimento tem sua hora de acontecer, é
difícil adivinhar o que as crianças exatamente pedem – e nem devem ser
plenamente atendidas para não criarmos reizinhos metidos -, o fato é que o
organismo dá sinais comportamentais, que são ignorados por professoras mal
treinadas e mal amadas, que acusam os fedelhos de endemoniados. Como etapas são
puladas, elas nunca se efetivam, fica sempre aquele gostinho de quero mais.
Além disso, há uma liberdade de voltar atrás e repetir certos atos que não deveriam
ser convenientes para certas idades e posições. Esse relativismo é um saco
também, um mínimo de repreensão deve ser internalizada para impedir que brote
uma geração de retardados. É o velho bom senso sendo requisitado. Certeza que
essa relação entre o indivíduo e sua sociedade nunca deixará de ser
conflituosa, desde que permaneça a ideia moderna de sujeito, de um ser à parte
dos outros objetos do mundo e fundamentalmente diferente de qualquer outro
membro do grupo. Certeza também é que os mais velhos sempre têm suas esperanças
frustradas com as reações dos mais novos, decepcionantes e aparentemente sem
futuro, então um ataca o outro, de rebelde e de senil. São pais e filhos, em
perpétua dialética.
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