O artista, com sua moral mais frouxa
que a do cientista, gosta de inventar sentidos para o que sente, ansiando por
mais que o óbvio e o ordinário. Após tomar consciência disso, doravante ele
continuará a acreditar em condições fantasiosas, ilusórias e agradáveis. Como
uma criança, mantém a imaginação fértil e vê graça em situações banais para um
adulto esclarecido. A empiria do mundo é necessária, mas está longe de ser
suficiente. Na verdade, ele precisa renunciar à frieza da explicação racional
ou da argumentação lógica e conclusiva. Ele até aceita essas verdades objetivas
e genéricas, porém se resumir a elas seria reduzir seu ser a condições
claustrofóbicas, dentro de um mundo material e desprovido de simbologias
abstrusas. Ou seja, ele vai além do que a ciência informar, numa tentativa de
não alienação, bem como para não se achar mais uma peça instrumental para o
objetivo de outros, objetivos esses raramente nobres ou motivadores.
O mundo é visto, portanto, como uma exposição gigantesca,
ora ao ar livre (as melhores) e ora em salas quadradas (as rentáveis). Cada
elemento da realidade pode ser combinado aleatoriamente com outro, ao bel
prazer do espírito sequioso por enlevar esse indivíduo inspirado e inspirador –
ao menos a quem aceita essa metafísica repleta de interpretações, ora herméticas,
ora psicodélicas. O que de fato importa é tornar a própria vida mais leve e
fornecer meios para fazer com que mais pessoas também relaxem, contemplem e
participem desta exclusiva visão de mundo, ora insinuando, ora chacoalhando a
sociedade. Isso tudo pode ser papo de doido, mas cada um é capaz de ver essas
cores, essa aquarela informacional que a inércia da rotina nos condiciona a não
enxergar; dá para vê-las mesmo num ambiente acizentado e sem fazer uso de
psicotrópicos, basta para tanto aceitar esses paliativos estéticos que incitam
as paixões adormecidas após anos de repetição (trabalho, deveres, afazeres
domésticos e praxes das relações sociais).
O sentimento mítico permanece no homem e, após a morte de
Deus, o misticismo se sentiu órfão e foi se abrigar em religiões pouco
fundamentadas, mas também entre os artistas insatisfeitos com dogmatismos, o
que gerou vanguardas modernistas e os movimentos hippie e beat, por
exemplo. O uso mínimo do intelecto (bom senso) é o suficiente para reconhecer a
falsidade de todas as religiões tradicionais; assim sendo, restou aos artistas
contemporâneos expressarem sua inquietude ateísta e instintiva de forma
alternativa e em conjunto com os gatos pingados desprovidos do manto divino. O
início do século XX foi pródigo nisso.
Que o século XXI não se resuma a cumprir os desígnios da
máquina, que as pessoas se esforcem em criar algo propositivo e além da rigidez
(talvez perfeição) dos computadores, essas calculadoras ambulantes incapazes de
brincar freneticamente, pelo simples fato de que isso dá prazer e uma ilusória
sensação de poder. Abordagens unívocas e consenso geral (unanimidade) enfastiam
e não seduzem, apesar de muitos se irritarem com opiniões e manifestações
contrárias à sua, mas isso é só o ego resistindo às possíveis ameaças. Enquanto
o ser humano estiver aquém da eficiência das máquinas, haverá primazia das emoções
sobre esquematismos caretas.
Que a obsessão e a neurose características de sujeitos
deveras racionais – condição típica da nossa época transbordante de informações
e conteúdos utilitários – sejam destinadas a obras confusas e vislumbradas pelo
público, ainda que restritas aos persistentes apreciadores de arte alheia à
indústria cultural. Essa tendência à especialização é mais um efeito
angustiante da sociedade pós-moderna, e ainda não se assentou; as pessoas não
sabem direito o que fazer com tantas expressões que sequer chegam a fundar
escolas e já se tornam ultrapassadas. Há muita coisa interessante por aí, porém
a ausência de interesse dos investidores por algo sem apelo comercial impede
maior aprofundamento do tema/técnica/estilo. O artista cria de acordo com o ritmo
e ciclo de suas inspirações ou vivências. Sem retorno, produz ou porque
acredita em sua obra ou porque não consegue não se expressar, é maior que sua
pessoa. É possível que após um tempo, quem sabe algumas décadas, esse artista
encontre quem desfrute da sua vaidade e do seu discurso até então
incompreensível ou inapreciável. A genialidade leva sempre um tempo maior para
ser digerida pelos medíocres. Para Van Gogh, de que adiantou ter vendido somente
um quadro em vida? Ele precisava criar, e criou, regozijando-se, sem dúvida,
com cada girassol pincelado.
Se o artista
experimenta seu monstrinho e este não o mata, sabe que o conjunto desses
esboços subjetivos terá seu valor reconhecido um dia, mesmo que por mais uns
poucos e esparsos malucos como ele. Esse é o sacrifício que a arte autêntica
exige. Viver julgando-se incrível, morrer julgado como miserável extravagante.
Quem está vazio não pode preencher ninguém, e a maioria das pessoas encontra-se
nesse estado, afinal o Ocidente é altamente niilista, por mais que não admita. Sendo
assim, a falta de feedback pode ser
recebida com algum consolo, pois certos mimos só fazem emergir a vanglória. Enfim,
a ficção faz parte da natureza humana, somente quando se tornar outra espécie
que o homem parará de sonhar. A arte é quem melhor cumpre esse papel de fábrica
de sonhos, mais que qualquer bugiganga nipônica ou yankee. Sem ela, viver seria
dispensável.
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