"A sinceridade imprudente é uma espécie de nudez que nos torna indecentes e desprezíveis." – Marquês do
Maricá
Anos atrás havia um quadro no Fantástico chamado “O Super Sincero”. Salgado
era a figura que fazia as vezes do sujeito que simplesmente não consegue dizer
mentiras. Ele era o personagem de Jim Carrey em O Mentiroso 24/7, isto é, o tempo todo. É claro que a alcunha
“Salgado” não era à toa, pois quem diz verdades costuma ser alguém amargo, que
joga sal nos olhos dos outros, que não dá refresco, em oposição ao sujeito
doce, afável, fácil de digerir, de conviver, de ter por perto para alegrar a
moçada e confortar as mocinhas. O interessante é que esse tipo de pessoa (a
sincera) vira caricatura, é tão rara de ser vista que damos risada quando nos
deparamos com tamanha sinceridade expressa no cinema, na televisão ou na
literatura. A sociedade precisa de suas máscaras; o povo quer ouvir
amabilidades e não quer ser desafiado por um pentelho que encosta-o contra a
parede. Admito que muitas vezes importa menos o quê se diz do que como
se diz, mas em certos círculos sequer eufemismos ajudam. Em prol do convívio
social e do tratado de paz, muita cautela, migué e cara-de-pau.
Como é bom jogar a sujeira para
debaixo do tapete, quem descobrir a montanha de farelos não terá em quem jogar
a culpa, fará o serviço ingrato de limpar aquelas migalhas e ficará tudo por
isso mesmo. A esperança é persistente, nós gostamos de pensar que nossos erros
não darão em nada ou que no futuro esqueceremos dessas cagadas, e se alguém
vier nos acusar de algo haverá sempre uma desculpa – “eu era novo”, “virei
outra pessoa”, “isso é coisa do passado, mudei”, todos já falaram algo do tipo.
Numa sociedade invariavelmente hipócrita não fará diferença ser mais um a
enganar e se enganar. Entre manter-se fiel ao que acredita e ao que realmente é
a verdade do mundo, opta-se pelas próprias convicções, afinal elas definem e
limitam o sujeito. Após um processo reflexivo e doses de humildade, quem sabe
ele mudará de posição e aceitará como as coisas são; porém, de supetão, é algo
raro. A identidade forjada é tida como primordial, acima das flutuações de
humor, das oscilações hormonais, das variações de juízo e das cascas trocadas e
que largamos pela estrada.
“Faça o que eu digo, não faça o
que eu faço”, diz o velho chavão demagogo. Quando se é criança ouve-se o
conselho de dizer sempre a verdade, mas servir de exemplo para ela não é comum
– “fala para ele que eu não estou”. Isso serve muito mais para servir de
controle aos pais e professores do que de padrão ético. O discurso é um, a
prática é outra; o imediatismo impera. Tudo ocorre sem qualquer hesitação. Com
o passar dos anos, o garotinho juvenil abandona essa “ingenuidade” e aprende a
contar suas lorotas e a não ser punido por elas, pelo contrário, gosta de
enganar aos trouxas e de se dar bem. Talvez ele sirva-se de um mínimo de “boa
consciência”, de moral cristã, de sujeito correto, e equilibre as verdades que
o comprometem com as mentiras que o favorecem, encontrando assim a chave do
sucesso. Porém, uma pessoa ambiciosa estará se lixando para essas amarras, pois
percebeu que “os vencedores” não se prendem a isso, estão focados nos
objetivos, que em algum momento ou outro implicam em passar o rolo compressor
em quem estiver pelo caminho.
Já alertava Oscar Wilde que "pouca sinceridade é uma coisa perigosa, e muita sinceridade é absolutamente fatal.” O cinismo se tornou sinônimo
de cara-de-pau, de picaretagem, de arrogância, justamente aquilo que a escola
helênica lutava contra. Ora, não podiam os concidadãos suportar alguém tão
desapegado e inferior, economicamente falando, então passaram a inverter a
moral da história, como convém aos vencedores. Temos, portanto, o cínico como canalha
e a gentalha como detentora da verdade. No mundo democrático isso não está
muito longe da verdade, pois é onde o número faz a força, legitima
discursos. Aí, as mentiras servem,
socialmente falando, de apoio e confiança mútuos, é o cata-piolho diário dos
macacos numa espécie mais evoluída, racionalmente falando. Quem se negar a exercer
a prática habitual de ajudar e ser ajudado será excluído, não terá certas
benesses que agradam a maioria, especialmente os que se importam com o capital
social.
A maioria é evoluída
culturalmente enquanto a maioria é preponderantemente primitiva/primata? Não
gosto de falar que ainda somos bichos, mas observar a humanidade parece levar a
esta conclusão: somos bichos dotados de maior número de tecnologias. Enquanto a
verdade e a sinceridade forem às pessoas inconvenientes e perturbações que as
retiram de sua homeostase, de um lugar cômodo e privilegiado do qual não
gostariam de sair sem receberem em contrapartida alguma grana ou um prazer
intenso, o homem ainda estará pouco evoluído. O mundo high-tech parece colocá-lo
num Olimpo sem contra-argumentação dos éticos e anacrônicos. Durará pouco para
ele ficar mal-acostumado, como é de praxe. Não será difícil derrubá-lo de lá
outro sujeito mais abusado. Nesse embate performático ele estará num beco sem
saída ou entregue ao pragmatismo sem valores de base? Penso que ele só almeja
vencer, nunca convencer, pois isso exigiria pronunciar verdades.
Eu também minto, mas tenho certeza
que menos que a média estatística. Nem sempre fico bem com isso, mesmo com as
mentirinhas. Evito situações sociais, especialmente as embaraçosas, penso que
os outros fazem o mesmo comigo, claro que pelo motivo inverso. Ser filósofo, ou
ter a pretensão de ser um, demanda isso. Não tenho o que os outros pensam ter
importância, assim como eles não tem o que eu julgo de grande valia. Cada um na
sua busca de ser feliz. Sendo assim, meu valor faz minha verdade, ou seria o
oposto?
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P.S.: “Verdade”, neste texto, tem
o significado de “expressar situações ou acontecimentos verdadeiros” e não o sentido
forte e filosófico de “verdade do mundo”. Exceto os desmemoriados e os malucos,
que não podem comparar a verdade com a mentira, o restante tem consciência de
quando diz a verdade, como um polígrafo nos atestaria.