5 de outubro de 2014

Sobre The Walking Dead e Morte Cerebral


Filmes de zumbis há vários. Se não tivesse feito sucesso com a galera não haveria tantos. É fácil entender o porquê do sucesso: o outro é semelhante a nós, porém malvado. Mas de que tipo de zumbis os malucos estão falando? Seres despertados por: espíritos malignos, descontentes almas penadas, alienígenas, radiação, experiências genéticas mal-sucedidas. Ou seriam apenas humanos pentelhos que se recusaram a morrer? Grosso modo, a definição de zumbi é: um ser que perdeu a capacidade de consciência, mas que ainda se serve do corpo humano para cumprir funções básicas, como locomoção e alimentação – para nosso desespero é do nosso corpo que eles se alimentam. Não precisavam ser canibais, é claro, mas se assim não fossem não haveria filme de horror nem fascínio pelo público espectador. Além disso, essa metáfora é para remeter à busca nostálgica pela humanidade perdida, assim como várias religiões falam sobre a busca do homem decaído pelo paraíso divino.

Foco agora na mais recente leitura sobre zumbis: a série The Walking Dead. Nela todas as pessoas estão infectadas, precisando apenas “morrer” para se tornarem zumbis, inevitavelmente. Eu vejo que dessa forma ninguém morre de fato (por isso as aspas), sendo o morto-vivo uma expressão genérica para facilitar a conversação. Há na verdade uma passagem de “estado consciente” para um “estado primitivo”, que mantém intacto somente a parte do cérebro que regula funções básicas de sobrevivência, como locomoção, articulação e alimentação. Essa interpretação da série se coaduna tanto com a declaração médica (morte cerebral como morte de fato) quanto com o argumento-zumbi de David Chalmers (um ser que sente as mesmas coisas que os humanos, mas que não tem os qualia, ou seja, consciência de nada). No entanto, a série discorda da interpretação de Chalmers no seguinte ponto: como se origina a consciência. Tendo em vista o filósofo defender o emergentismo, isto é, a consciência seria um subproduto da mente como um todo, longe de ser uma entidade puramente física, enquanto a série cinde o cérebro em dois: superior (de onde provém nossa humanidade) e inferior (de onde provém nossa animalidade). Ambos concordam que a consciência é fator determinante para a “natureza humana”, mas discordam em como ela se dá, se efetiva. Em The Walking Dead ela é localizada, para o filósofo ela é distribuída.

Para uma pessoa não se tornar zumbi ela precisa ter morte cerebral e para um zumbi parar de atazanar as pessoas ele também precisa ter seu cérebro danificado. Há cenas em que a criatura está só na carcaça, até mesmo somente com a cabeça, estando com seu cérebro inteiro ela ainda reage. Ou seja, é claro o apelo à morte cerebral como morte de fato. E quais são as implicações disso? Eu percebo uma defesa à dignidade da vida humana, se ela não vale a pena de ser vivida, que a pessoa morra logo e pare de sugar recursos de quem pode e quer viver plenamente – se o outro puder doar seus órgãos, melhor. No entanto, a série não é tão ingênua e faz o telespectador refletir sobre o que é uma vida digna, afinal os viventes quase não fazem outra coisa além de matar zumbis ou escapar deles. Essa dúvida é a que cada um que possui um parente acamado em coma profundo persistente deve ter. “Será que a vida ali não é ainda melhor que a minha, já condenada pelo sistema? Desligo ou não os aparelhos? Será que já não estamos todos a zumbizar, vagando pelo mundo ainda sem encontrar sentido, sofrendo ainda mais que os mortos-vivos por justamente termos consciência de nossa situação miserável, enquanto eles encontram-se livres dessa angústia existencial?” Sei que nem todos fizeram esses questionamentos durante os episódios, mais preocupados com a chacina de zumbis, mas são perguntas que aparecem após um olhar um pouco mais cauteloso e distante.

O fundamento para ainda querer viver, para querer manter vivo um parente em coma, para tentar curar um zumbi, para lutar contra todos os zumbis do mundo é a esperança. Sem ela a série teria acabado na primeira temporada, sem ela a eutanásia estaria liberada no mundo há muito tempo, sem ela algumas vacinas jamais teriam sido produzidas. O mito grego da caixa de Pandora é o mais clássico e demonstra a ambiguidade desse sentimento que sempre acompanhou a humanidade. Vemos um coração batendo, um pulmão respirando, um braço se movendo, um morto-vivo grunhindo, nossa primeira reação é pensar que há chances, pois o mais difícil é criar a vida, mantê-la ou melhorá-la seria um detalhe que dedicação e tecnologia podem e costumam contornar. Morto é morto, não volta mais. Quase-morto não é morto, pode reviver. Os esperançosos ainda teimam contra o laudo médico de morte cerebral, assim como (na série) sobreviventes teimavam em matar a filha ou o pai zumbi. Esse é mais um dilema da condição humana. A diferença é que o decreto de morte cerebral como morto de fato retira de nós essa nossa renitente subjetividade, substituindo-a pela “legitimidade infalível” da ciência. O quanto o homem moderno delegou seu direito de vida e morte aos decretos científicos? 

Nenhum comentário:

Postar um comentário