16 de outubro de 2014

A rotina entre o peso e a leveza



Ah, como é dura a batalha do dia a dia! Ou você é do tipo alegrão que costuma dar bom dia aos gatos, às flores e aos céus, abraçar uma árvore e beijar uma criança remelenta? Todo mundo tem que fazer algo que não gostaria de fazer, em resumo: o que um dia deu prazer e agora não dá mais, o que nunca deu prazer e faz porque não tem jeito, o que ainda não dá prazer e deus o livre de sentir prazer nisso algum dia. É preciso exemplificar? Creio que dispensa ilustrações, você é experiente e tem boa memória para saber do que estou falando.

Um dia só tem 24 horas, certo? Para os ligeiramente sortudos, cerca de 20 horas do total são gastas com obrigações, que podem ser dispensadas apenas com muito esforço, por exemplo, com insônia, jejum e porquice. É claro que estou retratando uma pessoa comum, que cuida da casa, do corpo, dos parentes, que trabalha e/ou estuda e não tem grana o suficiente para se aposentar e viver de brisa. Não falo também de quem gasta 3, 4 horas no trânsito todo maldito santo dia. Penso que foi a partir da consciência dessas obrigações diárias que se inventou a ideia de paraíso: um local sem compromissos. Ora, toda liberdade é restrita. Ser algo no espaço-tempo é estar condicionado a mil situações. É cômodo imaginar-se fugindo disso, fora da casinha, tão gratificante e tão... insensato.

Não querer ter ou fazer isso e aquilo é uma coisa – todos têm queixas desse tipo, à exceção dos beatos e dos monges tibetanos –, outra coisa é querer escapar pela tangente, não há essa possibilidade, pois estamos dentro de um círculo que nos cerca. Pense no universo: pode existir multiversos, mas você nunca terá contato com o outro lado, tudo está contido neste mundo, com suas leis indiferentes a vontades. Exercício de imaginação tudo bem, tá valendo, já a teimosia infantil de recusar se adequar é tolice sem tamanho. Mas quem disse que o homem é um ser eminentemente lógico, não é mesmo? Alguém mais tolo ainda, que não acredita que descendemos dos primatas. Viciados pensam que poderão escapar dessa angústia de existir, mesmo que por breves momentos, porém no fim chega a conta, com juros e correções, ou até mesmo chicotes e camisas-de-força. Ou seja, radicalismo é compensado por outro radicalismo.

A rotina é indispensável à existência, nem uma nem a outra fazem sentido olhando-se de longe, portanto ambas são absurdas. Os eventos e as imagens escorrem pelos dedos como a nascente de um rio. Dentro de sua cabeça pode haver uma lembrança bela e agradável de episódios que lhe deram orgulho, contudo no mundo real essa lembrança não existe mais. Tentar fazer da rotina e da existência algo mais digno e prazeroso que a estéril realidade e a cretinice popular é algo admirável. Invejo você que conseguiu encontrar um sentido enobrecedor nas coisas, ainda que fajuto, ilusório. Você terá mais chances de suportar os aguilhões da rotina, sorrindo de volta a seus carrascos. Afinal será feliz, ainda que ingênuo muitas vezes. Estar leve ou pesado pode ser psicológico, mera questão de perspectiva e força de vontade.

A tentação de se entregar ao vazio e às ordens externas é imensa. Falava-nos Zaratustra: “O deserto cresce: ai daquele que abriga desertos!” Tento viver autenticamente e escapar ao menos desse niilismo. Percebeu a importância da reflexão na vida que se leva? Quando se está à deriva qualquer porto servirá, não há identidade nem preferências. Contudo, possuir gosto e estilo é excluir vários destinos. Isso também é assombroso, pois controle excessivo da própria vida pode virar neurose, para então se tornar um sujeito ranzinza e reclamão que adora e adota gatos.
Ante o exposto, concluo como muitos antes de mim: viver é perigoso.
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Abaixo, o dia 22 de maio do diário de Werther (in: Sofrimentos do Jovem Werther, de J. W. Goethe), que, muito melhor do que eu, ilustra o que escrevi acima:
“Que a vida humana é apenas um sonho outros já disseram, mas também a mim esta idéia persegue por toda a parte. Quando penso nos limites que circunscrevem as ativas e investigativas faculdades humanas; quando vejo que esgotamos todas as nossas forças em satisfazer nossas necessidades, que apenas tendem a prolongar uma existência miserável; quando constato que a tranquilidade a respeito de certas questões não passa de uma resignação sonhadora, como se a gente tivesse pintado as paredes entre as quais jazemos presos com feições coloridas e perspectivas risonhas ─ tudo isso, Guilherme, me deixa mudo. Meto-me dentro de mim mesmo e acho aí um mundo! Mas antes em pressentimentos e obscuros desejos que em realidade e ações vivas. E então tudo paira a minha volta, sorrio e sigo a sonhar, penetrando adiante no universo.

Que as crianças não sabem o porquê de desejarem algo, todos os pedagogos estão de acordo. Mas que também homens feitos se arrastem como crianças, titubeando sobre a face da terra, e, exatamente como elas, não saibam de onde vêm e para onde vão, até mesmo que não têm um fim determinado para suas ações, igualmente governados por biscoitos, balas e chibatas, ninguém faz gosto em acreditar. Quanto a mim, parece-me que não há realidade mais palpável do que essa.

Concordo de boa vontade, até porque sei o que vais me dizer a respeito disso, que são exatamente essas as pessoas mais felizes. Essas mesmas que, como crianças, vivem o dia-a-dia sem pensar no futuro, arrastam suas bonecas por aí, vestem-nas, despem-nas, e volteiam cheias de respeito diante da gaveta onde mamãe chaveia os bombons, e quando logram êxito, fazendo com que ela os dê, devoram-nos estufando a boca e gritando: Mais!… Sim, estas é que são criaturas felizes!

A coisa também vai bem para aqueles que dão um título imponente para seus trabalhos vagabundos, ou até para seus sofrimentos, e os descrevem como obras gigantescas feitas em prol da salvação e da prosperidade do gênero humano… Feliz daquele que consegue proceder assim! Mas aquele que reconhece em sua humildade onde tudo isso vai parar, quem vê quão gentil é o burguês ao ornamentar seu jardinzinho e elevá-lo à categoria de paraíso; quem tem noção de como o infeliz se arrasta infatigável pelo caminho, sob seu fardo, interessado apenas em contemplar por um minuto a mais a luz do sol – este, asseguro, também é tranquilo e, ao construir um mundo dentro de si, é feliz do mesmo jeito por ser humano. E então, por mais limitado que esteja em seus movimentos, ele mantém no coração a doce sensação da liberdade, sabendo que poderá deixar o seu cárcere quando quiser.”


P.S.: Meu livro chegou! Interessados em um exemplar devem entrar em contato por algum meio, virtual ou analógico.

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