O cara começa a usar terno e gravata, passa a ser respeitado
por gente respeitável, acha que está pagando de grã-fino e não consegue mais
sentir-se bem sem a beca impecável.
A garota usa roupa justa e maquiagem que esconde espinhas,
rugas e celulites, passa a ser xavecada como nunca antes e não consegue ir ao
supermercado sem decote e camuflagens.
O garoto ganha o sonhado videogame, aprende a jogar os games
da moda com os amigos, diverte-se como sempre quis e não consegue mais largar
as sedutoras tecnologias.
A menina adentra à nova escola, enturma-se entre as pop girls,
aprende a fofocar e não consegue abdicar da língua solta e venenosa.
O tiozão compra uma caranga com apetrechos que não cabem
numa folha, sente-se confortável e poderoso, esquece a Belina 84 velha de
guerra, leva a família para passear e diz: carro agora só com câmbio
automático!
Assim é o homem: vaidoso, ambicioso, folgado e teimoso. Uma
vez na posse de bens e serviços que lhe trazem a satisfação que seu poder
aquisitivo e o mercado em volta podem fornecer, não irá recusar massagens em
poltronas aquecidas. Os avanços tecnológicos e científicos prometem muito mais.
Cuidado com o que você pede, poderá conseguir, passando a pedir mais, até um
dia não conseguir. Gostamos de limites só para brincar com eles. Enquanto não
topamos com a parede ou não enfiamos o dedo na tomada para ver se queima mesmo
ou se dá um barato, não arrefecemos; nossa vontade nos move, a adrenalina é
viciante, assim como a zona de conforto. Quem nunca brincou de prender a
respiração e fingir-se de morto?
O problema dessa zona é a covardia e o fim da liberdade,
pois é preciso escolher: segurança ou liberdade, não dá para ter alto nível de
ambos. Não adianta, é impossível, basta estudar a história. E como a vida de
cada indivíduo está cada vez mais valorizada, ao menos por aqueles diretamente
interessados no sujeito,o que inclui ele
próprio, temos na hipercivilização essa tendência à segurança a qualquer custo.
A falta de privacidade é ainda capaz de chocar somente os velhos, ou quem se
acha ultrapassado. Vale mais ser vigiado e poder fazer o que se gosta, desde
que não sofra o maldito bullying – o que implica, obviamente, em redução do
leque de opções a usufruir –, do que sair por aí com a paronoia de ser
assaltado, atropelado, estuprado ou, veja só, empurrado. Os artistas preferem
ter um amplo sistema de monitoramento em casas, chácaras, carros, salões, etc,
mesmo na parte interna, talvez excetuando a suíte, do que gozar da liberdade do
anonimato. Ou seja, o dinheiro compra tudo, até a ilusória liberdade. E a falta
de grana garante muita coisa, inclusive a verdadeira liberdade. Domestica, meu
senhor, domestica! Existe vida autêntica sem correr grandes riscos?
No futuro, nossos herdeiros olharão para trás e dirão:
coitados, como podiam viver sem x, y e z? Assim como olhamos para nossos
antepassados e dizemos compassivamente coisas do tipo: como eles sofreram, não
tinham banheiro nem celular nem hospitais nem carne assada nem avião nem
shoppings nem direitos nem vida longa nem Cristo. Imagine você se a ciência (só
ela inda é capaz de grandes e objetivas descobertas) descobre o elixir da
juventude (alquimia no more!),
doravante o envelhecimento e a morte se tornariam uma opção de escolha ou mero
azar, não mais algo inevitável e trágico; como nos sentiríamos com 88 anos,
caducos e de muleta? Nossos netos e bisnetos sentiriam muita pena de nós, eles
iriam viver por séculos, enquanto nós teríamos mais algumas horas. Sem
tristezas, assim como sem alegrias, não há boa vida. Quem hoje não ri da
ingenuidade de certos lamentos e angústias da juventude?
Em dois séculos a expectativa de vida aumentou
consideravelmente, assim como a população do planeta, é provável que seja
preciso de outro para comportar tanta gente. A cada dificuldade superada ignoramos
os longínquos esforços, que caducaram, enquanto nós sobrevivemos e ferramos
mais um pouco com o que está ao redor. Sentimo-nos demais, só damos o devido
valor a algo depois que o perdemos; comparamos e concluímos que de fato estamos
em situação pior. Mas é claro, só um completo idiota fica o tempo todo chorando
pelo leite derramado.
Não há resposta sobre como viver, esqueçam auto-ajudas, é
tudo balela; viver é complexo demais para haver um manual, certamente best-seller. É isto o que há: ética e
tentativas para ser feliz. Uns optam pelo caminho mais tortuoso e trágico
(espíritos-livres) e outros preferem uvinha na boca e serviçais num estalar de
dedo (burocratas). Chata é a unanimidade. Quem não teve pelo menos uma vez na
vida uma crise existencial? “Viver é perigoso”, repetia Riobaldo o seu mantra
explorando os sertões, não só deste país venturoso e entregue aos desejos
animalescos, mas também desse mundo ausente de propósitos claros e necessários
além dos biológicos. Portanto, quem vive sem passar por perrengues, apertos,
sustos e solavancos vive realmente?
Olho compassivamente para o futuro: que pena, farão passar
qualidade por quantidade. Mais anos de vida não necessariamente significam mais
vida. Se você pudesse pedir ao gênio da lâmpada viver até os 200 anos,
certamente pediria mais anos à frente e não que já estivesse perto de seu 200º
aniversário. E por que, já que os 200 anos serão os mesmos? Aí você vê a
importância de querer e saber viver. O que passou provavelmente não será
experimentado da mesma maneira que daqui pra frente.
Ante o exposto, de agora em diante, você quer se arriscar ou
descansar?
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