13 de setembro de 2013

Morremos

Todo mundo vai morrer um dia. Todo mundo sabe disso, ou deveria saber, ou deveria se preparar para o momento fatal. A grande maioria delega esses pensamentos soturnos para os últimos suspiros, lá pra quando estiver se convalescendo, contorcendo-se em dores, internado numa enfermaria mijando na cama infestada por percevejos. Poucos são os sujeitos obscuros que ficam pensando na morte o tempo todo. Mas é bom fazer conjecturas para o que acontecerá com seu corpo, com sua família, com seu espólio, com seu nome, reputação, etc. Os que se sentem mais apegados à vida é que deveriam gastar mais tempo com esses planos incontroláveis, justamente por serem controladores em excesso – se no próprio mundinho já é difícil ser o dono da situação, imagina quando não mais existir. Porém, costumeiramente eles são os que batem na madeira: saravá, vade retro Funérea mortífera, aqui não! Pois o homem é um ser ilógico e esperançoso.

O que acho mais interessante sobre a morte, o ponto de não mais existir mentalmente, de não ser mais possível ter consciência da situação (para mim a morte é morte cerebral ou coma irreversível), são os projetos que arrastamos para o futuro. Dizemos para nós mesmos que aquilo será cumprido um dia, juramos que será importante realizá-los, mantemos os esboços numa despensa qualquer e nos recusamos a dispensá-los. Eles existem, algures. Ora, será mesmo que iremos efetivá-los? Gostamos de imaginar que sim. E se a pessoa não for mais capaz de levar adiante o projeto, como fica? Se morrer, não sofrerá; se viver impossibilitado fisicamente, talvez não sofra porque o que não tem remédio, remediado está. Essas promessas doem mais quando temos plena capacidade de cumpri-las, mas preterimo-las em prol de outras prioridades ou simplesmente por darmos atenção às distrações que nos tentam diariamente, por toda parte, em cada passatempo inútil e nocivo ao valorizado plano ainda não tirado do papel. Dói achar-se ignóbil, burro, idiota e indolente. Então nos enganamos, inventamos desculpas e praticamos a má-fé; sem hipocrisia já teríamos nos matado.

Morremos a conta-gotas, são raras as pessoas disciplinadas e focadas em seus objetivos, principalmente nesses tempos pós-modernos, de fluxo intenso e imenso de informações e cidades que pululam de pessoas carentes e competitivas puxando camisas para receberam mais um pouco de atenção. Eu diria que é raro mesmo haver pessoas que traçam objetivos e que acreditam que aquilo terá algo de realizador e garantidor de felicidade e progresso pessoal. Depois dessa primeira fase, são raríssimas as que vão à luta para realizar seus sonhos de forma metódica e ao mesmo tempo descolada, sem aquele apego neurótico que causa frustração excessiva em caso de fracasso. É mais fácil se deixar levar pelo sistema e pelos grupos coesos e de propostas mesquinhas que alimentam o ego dos medíocres, que isolados sentir-se-iam derrotados e inúteis. Quem tem pensamento reflexivo, crítico e organizador, que consegue separar o joio do trigo nesse mundão confuso, estressante e hostil? A maioria queda e aceita a incompleta realidade de seu ambiente limitante, deixando suas alegrias para os fugazes momentos de prazer, o amanhã que se dane. Então morre qualquer possibilidade de heroísmo. Alegoria esquizofrênica.

É claro que eu sou um desses, mas ao menos reconheço minhas falhas e me esforço razoavelmente para melhorar minha vida após esses projetos, uma crença não banal de que porventura serão concluídos e trarão uma satisfação incomparável. O maior problema é executar um plano de cada vez e não misturar tudo, como se eu fosse capaz de dar conta dos doze trabalhos de Hércules. Sou mais uma vítima dessa sociedade acelerada que convence cada membro de que o mundo não é o bastante. Como eu invejo aqueles que se contentam com pouco, desde que esse pouco valha mais que todas as minhas parcas conquistas. Eu queria eliminar tudo o que não fosse vida, tudo que não me diz respeito, e que após essa faxina nunca mais voltem a me perturbar. Mas não temos nem essa peneira mágica nem essa disciplina samurai; somos uns desgraçados que fingem matar um leão por dia e na verdade só fazem matar o tempo para posteriormente zombar dele, alegando ser um fracote. Mas o duelo é inglório, ele sempre vencerá. Ai daqueles que sequer reconhecem esse infausto combate. Jamais terão noção do tamanho de sua derrota. No segundo fatal ainda se julgarão capaz de fazer algo mais. Infelizmente, morreram faz tempo...


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