“Uma esmola pelo amor de Deus, uma esmola, meu, por
caridade”, dizia o cancioneiro popular em meados dos anos 90, retratando muito
bem a realidade das grandes cidades, em cada esquina gente pedindo trocados
para sobreviver. O governo não pode cuidar de todos, a responsabilidade deve
ser transferida a cada cidadão que devia ter estudado e se formado para então
trabalhar em um emprego digno ou pelo menos prestando serviços para um grupo de
consumidores que deveria aumentar em taxas próximas à da inflação. Mas sabemos
que a economia é dinâmica, o sistema é falho, as pessoas trapaceiam, o governo
é displicente e desordenado, os empresários exploram e os funcionários sempre
que podem dão aquela boa enforcada no trampo. Além disso, a autonomia que a escola
deveria estimular rotineiramente para suas crianças talvez não seja bem
assimilada por jovens que estão mal acostumados com excesso de direitos e
déficit de deveres. Quem não é um privilegiado deve ir se acostumando desde
cedo que precisa cumprir várias ordens diariamente sem deixar de elaborar
projetos que, se não significam independência, pelo menos pretendem levar à
auto-realização, tanto em nível profissional quanto em nível particular.
O que eu quero dizer é que há um meio-termo, não dá para
esperar tudo de mão beijada pela providência divina, pelo estado acolhedor,
pelo coronel ou traficante protetor ou pelo papai poderoso; e não dá para
tentar resolver tudo sozinho, como um atacante que pensa que pode driblar meio
time e fazer um golaço – isso até acontece, só que em raríssimas ocasiões, além
do mais nunca é o suficiente para ganhar o campeonato. É claro que a
superestrutura tem que ajudar, ou seja, as condições macroeconômicas têm que
ser propícias para elevar o nível de renda e de educação e a qualidade de vida
do povo, o que é mais bem medido pelo IDH do que pelo PIB, porém essas medidas
de nada servirão se não forem acompanhadas por distribuição de renda e estímulo
tanto ao egoísmo quanto à solidariedade, isto é, que os cidadãos sejam
autônomos, procurando beneficiar sua família, sua cidade, seu país e, por que
não, seu planeta. Não é uma utopia, porque tentar evitar danos maiores é uma
prática bastante realista, condizente a uma ética que talvez seja repassada no
ensino básico, porém nos níveis superiores é preterida pelo decoreba dos
vestibulares e das exigências do mercado: especialistas que manjam tudo da
parte técnica e deixam muito a desejar em conhecimentos gerais, entre eles
ética, política e estética. Nessas áreas nenhum saber é definitivo e raramente
é fechado. Para ilustrar essa tendência à expertise sem a devida visão global
das coisas, digo que engenheiros, matemáticos e técnicos em computação
interferem muito na sociedade com seus serviços, apenas não possuem essa
consciência, por não perceberem o efeito imediato, logo delegarão a
responsabilidade aos corruptos de sempre.
Eu tenho que repetir o mantra: a sociedade é complexa.
Porque é mesmo, quanto mais se estuda seus meandros, mais vão se revelando os
nós, uns sobres os outros e impossíveis de serem desatados sem danos
colaterais. Para tapar um buraco cria-se outro. O indivíduo quer sua cota de
felicidade e prosperidade; enquanto ela se basear em algum tipo de predação
(ganha-perde), haverá os que riem alto e os que choram em silêncio. Aliás, quem
não é vaidoso socialmente? Máscaras e marras camuflam o fracasso e a confusão em
que (quase) todos se encontram. Quem não tirar vantagem da situação, fingirá
que tirou, e então o sorriso jocoso restará estampado na cara dos malandros de
plantão, sem desconfiarem do escárnio que sofrem pelas costas. É possível subir
um degrau por mérito próprio ou por demérito do concorrente.
Pedir emprego é humilhante? Trabalhar dentro da lei é
degradante? Folgar nas férias é condenável? Serão poucos os que responderão
afirmativamente. Mas pedir esmola sem ao menos oferecer um produto ou serviço
inútil certamente será visto com maus olhos pela maioria. Vale mais tentar cobrar o triplo do preço de
um produto simples numa balada; o vendedor será esperto, enquanto o pedinte que
trafega pela porta será o incorrigível vagabundo maltrapido. É fácil dizer qual
dos dois é o ganancioso e qual vive no ostracismo. É o mito do progresso: o
avanço técnico-científico É avanço ético e moral. A sociedade capitalista comporta
o vigarista, mas tem horror ao cínico, que não movimenta o mercado consumidor e
gostaria de viver de brisa, recolhendo o que encontra pelo caminho e usufruindo
o que os transeuntes lhe ofereceram de bom grado. Se o trabalhador ordinário
rela o ano inteiro para ter um curto período de vida mansa, porque condenar o
índio ou mendigo? Se eles se recusam a se esquentar a cabeça com o que não lhes
diz respeito e que talvez piore o mundo ou a natureza, sobrecarregada de
detritos e gases tóxicos, que sirvam de exemplo a ser considerado.
Todos pedem, a diferença é que alguns que se contentam com
pouco e outros pensam que o mundo não é o bastante. A esmola que damos sem
perceber corre por aí, de mão em mão, de garganta em garganta, de palavrão em
palavrão, mas só vemos como abençoado aquele que nunca admitiu que a recebera.
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