O presente trabalho expõe
significados e exemplos sobre a tolerância e a indignação. O objetivo é
esclarecer sobre cada um dos termos e tentar estabelecer um vínculo, saber qual
é a relação que existe entre eles. Não que eles sejam antônimos, mas não
costumam andar juntos. Quando não há tolerância costuma haver indignação, como
se fosse um cansaço após tanta permissividade ou como se a tolerância tivesse
encontrado seu limite, e vice-versa: quando sobra indignação a tolerância não
costuma estar presente, afinal ninguém reclama do que está bom e correto.
Espero que esta exposição seja útil e que o leitor tolere possíveis falhas,
lapsos, erros gramaticais e imprecisões históricas, que sua indignação se
dirija a eventos mais importantes.
Primeiramente, quero discorrer
rapidamente sobre o significado desses dois termos.
Indignação é simplesmente uma revolta ou um estado de ânimo
irritado; o indignado deseja corrigir injustiças e se vingar de alguma forma de
quem a causou; ela tende a ser boa quando leva a uma ação isolada, quando sai
da reclamação inócua para a solução do problema, quando não se resume a
encontrar explicações estapafúrdias nem a uma vida de perpétua indignação; ela
tende a ser ruim quando se deixa levar pela imaginação e inventa cenários que
não condizem com a realidade e podem levar a uma injustiça ainda maior que
aquela que a motivou.
Tolerância
originalmente se referia à liberdade religiosa, a permitir que aqueles que
professavam crenças e seguiam ritos diferentes da religião predominante
pudessem crer e praticar o que seu Deus pedia ou líder religioso pregava;
posteriormente, tolerar teve seu sentido ampliado para respeitar qualquer
divergência de pensamento ou diferença de atributos corporais ou origem social,
ou seja, o termo se vinculou à ética e à política em geral, se confundindo com
questões acerca da liberdade, do preconceito e da inserção social; a tolerância
pura/irrestrita pode levar ao conformismo.
Tolerar é suportar o que não lhe
agrada, permitindo que o outro faça, seja ou goste do que bem entender. Tolerar
é saber que as pessoas são diferentes e há inúmeras possibilidades de vivência
e que isso não significa que esse outro é superior, inferior ou danado, mas que
apenas adota um estilo de vida diferente da maioria. Tolerar é preferir a paz à
guerra, é saber lidar com conflitos e opiniões das mais variadas e opostas e
ainda assim ser capaz de “deixar passar”, pois viver sem um mínimo de riscos é
impossível. Tolerar é o que deu origem à modernidade, ao processo de não implicar,
não perseguir e nem matar os estranhos ou estrangeiros, só porque eles
aparentam ser uma ameaça ao status quo.
Tolerar é notar que o crescimento populacional e a democracia devem
necessariamente passar pelo respeito mútuo e pelo fim de práticas medievais e
bárbaras como a tortura e o derramamento de sangue por motivos fúteis, como
usar quipá, chapéu alongado ou crucifixo invertido. Enfim, tolerar é estar
aberto às mudanças, ao movimento contínuo do devir, ao fluxo incessante de
informações que trespassam e afetam a todos, apesar de muitos tentarem ignorar
essa força que exige humildade dos seres conscientes.
A tolerância foi um assunto
recorrente no começo da Idade Moderna, devido ao processo histórico da Reforma
e Contra-Reforma, que ocorreou nesse período e afetou a Europa inteira. Foi uma
época de transição, um momento de crise que exigia reflexões e mudanças de
comportamento. O pensamento religioso sempre teve dificuldade em lidar com as
diferenças; opiniões divergentes eram tidas como afrontas, pois se o ideal, a
perfeição, existe, ele deve ser buscado e quem o recusa será um herege, um
maldito que se recusa a seguir os desígnios da divindade. Se as ideologias não
forem seguidas à risca isso faria ruir a causa maior, que é a conservação da própria
religião. Tendo isso em mente, fica fácil entender o porquê do fanatismo ser
tão comum em seu seio. Exemplo maior é a Inquisição católica – qualquer pessoa
minimamente culta e compassiva sabe que foi uma época terrível, quando morreram
inúmeros inocentes, cujos crimes forjados serviam para que o medo reinasse e a
Igreja parecesse poderosa como antes fora. O número de protestantes aumentava
sem parar e representava uma ameaça ao imenso poderio que se esfacelava, alguma
medida parecia imperiosa, aniquilar com os dissidentes foi a solução radical
instaurada. Foram tantas mortes e atrocidades que até mesmo de dentro da igreja
pensadores passaram a questionar, ainda que em sigilo, as práticas cruéis e as
almas queimadas ad majorem gloriam Dei.
O grupo de “indignados” foi crescendo até gerar os iluministas, que condenavam
essas práticas de forma veemente e defendiam maior tolerância e racionalidade
para organizar a sociedade.
Filósofos precursores como
Espinoza, Montaigne, Jean Bodin e John Locke se debruçaram sobre o tema (a
tolerância) e escreveram textos que romperam com a tradição teológica,
influenciando gerações e tornando-se clássicos da filosofia. Todos defendiam a
tolerância como forma de humanismo – é interessante que, no limite, o humanista
é um herético, destronando Deus de seu altar fictício. Foi Espinoza quem trouxe
a discussão para bases exclusivamente racionais, deixando de forma derradeira de
apelar à vontade de Deus para justificar a prática da tolerância, alegando
simplesmente que leis violentas e intransigentes não ajudam ao exercício da fé
nem a melhorar a sociedade. Locke aprofundou essa ideia e demonstrou que o que
realmente importa são as leis civis, i.e., o Estado deve focar naquilo que
garanta os direitos dos cidadãos e o pleno desenvolvimento da nação e do
intelecto, punindo violações a essas leis – as leis divinas que cada igreja
administre como achar conveniente, desde que ela não interfira na jurisdição do
Estado. Foi a partir disso que a laicidade estatal e a pluralidade de ideias e valores
se tornou possível, terminando nessa miríade de opções tão característica da
contemporaneidade, tão decadente e interessante. Não que isso tenha sido o fim
da imposição do pensamento único, mas foi o fim de sua legitimação. Se não
fosse esse questionamento implacável e essa defesa intransigente da liberdade
de pensamento, talvez o Ocidente ainda estivesse sob o jugo sacerdotal.
E onde se encaixa a indignação
nesse contexto histórico? O fato é que antigamente era mais fácil se sentir
indignado. Se um descontente denunciasse um ímpio à autoridade competente, esta
logo tratava de anular e extirpar esse mal, em prol da ideologia vigente. A
falta de acesso a visões de mundo destoantes àquela reinante, que não permitia
objeções, facilitava o fanatismo institucionalizado. Quando todos são idiotas,
ser esperto é danoso; é como o caipira que não suporta o “sabichão metido a
besta”. Nesse ponto a ignorância é uma benção, pois não planta a semente da
dúvida e ninguém hesita em defender suas convicções, herdadas ou impostas, mas de
qualquer forma amplamente difundidas. Porém, quando visões altamente
conflitantes se chocam e não se pode fazer nada a respeito – em caso de
agressão a pessoa seria processada e/ou iria para a cadeia –, fica mais difícil
se sentir indignado. Ou seja, de que adianta ficar indignado se nada vai mudar,
se apenas irá crescer um sentimento ruim por dentro a ponto de tornar o indivíduo
cada vez mais rancoroso e amargo com um mundo que não corresponde ao que ela
julga justo? Hoje em dia ser um eterno indignado é ser um “reclamão”, alguém
que incomoda seu interlocutor com um reiterado chororô. Ora, que ele aceite a
derrota e faça melhor da próxima vez.
Foco agora no aspecto da
racionalidade. Faço uma comparação entre o exercício da razão entre o tolerante
e o indignado. A tolerância é claramente um avanço da sociedade civilizada;
enquanto ser ainda dominado por seu lado animal, o homem não consegue exercer a
tolerância, pois quando a paixão “sobe à cabeça” só muita disciplina e/ou
reflexão poderá conter atos desmedidos, como agressão, xingamentos e
truculência. Isso é nítido não só quando se compara o homem de hoje com o de mil,
dez mil, cem mil anos atrás, mas comparando a criança mal criada, o adulto
ignorante, o pequeno burguês mimado e o rei tirano com a criança bem educada, o
adulto informado, o eleitor responsável e o governante esclarecido. A principal
diferença entre eles é o acesso à informação, o exercício reflexivo, a atenção
às questões éticas, a visão das consequências de cada ato do cotidiano e os
demais ensinamentos do projeto iluminista enquanto proposta da racionalidade em
prol da autonomia e do bem-estar do maior número de indivíduos, que evitam a
todo custo uma guerra, especialmente a civil, que destrói as instituições e a
identidade da nação. Contudo, uma tolerância indiscriminada seria o perdão
cristão, que sorri ao agressor e ainda oferece a outra face para “levar mais tapas”,
ela não deve ser almejada, pois quando está em jogo a paz, a liberdade e a
existência plena admitir essa tolerância equivaleria à conivência à repressão,
seria banalizar o desrespeito e demais comportamentos reprováveis. Nesse caso,
é preciso ser razoável, ter bom senso.
Se a tolerância é a razão bem
dirigida, a indignação é a razão entregue “ao deus-dará”. A razão encontra-se
ali num estágio de confusão, mas como o sujeito precisa de alguma explicação
minimamente coerente, vai pensando abobrinhas, achando que seus argumentos são
válidos, ou então passa a acreditar no que uma autoridade, uma pessoa instruída
ou dissimulada fala. Decorre disso, por exemplo, a proliferação da mídia
sensacionalista, que não investiga diligentemente um crime ou um suspeito e
parte logo para a acusação, decretando desde logo sua culpa, permitindo que a
massa de indignados aponte seus dedos calejados e suas armas enferrujadas aos
infaustos meliantes. A imaginação não tem limites, por outro lado a lógica
possui intransponíveis limites. Portanto, fácil é simular uma conjuntura, ou
até uma conspiração, e crer nela, porque acalmará anseios exacerbados e
sequiosos pelo equilíbrio perdido. No entanto, isso raramente estará de acordo
com os fatos, que são mais insípidos, indiferentes aos desejos humanos, tão
cheios de angústia, culpa e pressa. Dessa forma, a indignação pode ser perigosa
se não estiver aliada com uma boa dose de racionalidade. Por outro lado, uma
dose de ímpeto pode fazer com que a pessoa ou o povo lute por seus direitos,
saindo do marasmo, da alienação e da opressão. Um pouco de indignação traz um
sentimento de que se está vivo e algo precisa melhorar.
Às vezes são aprovadas leis
“radicais”, que adotam a “tolerância zero” contra a criminalidade ou até mesmo
atos errados e banais, como jogar papel na rua. Quando isso acontece é porque
os governantes/legisladores passaram a defender uma moral não condizente à
média da população, é como pedir a todos que sejam santos numa terra de
pecadores. É mais ou menos o que o cristianismo pregou por anos, internalizando
o pecado original e a culpa nos fiéis, que passaram a achar que sua existência
terrena estava para sempre condenada e só depois de morto se poderia atingir a
felicidade, num paraíso desenhado aos mais ascetas. Haver poucos virtuosos em
meio a tantos viciados não pode dar em boa coisa, é provável que no fim a
maioria reste contaminada. Um bom regime deve ser ligeiramente superior ao
cidadão ordinário e não extremamente superior, tentando nivelar por cima seu
povo. As mudanças pretendidas devem ser estimuladas aos poucos e não dessa
forma radical, pois deveras coercitiva e ineficiente. Ou as pessoas formarão um
rebanho resignado fácil de manipular ou a indignação será geral e ninguém
cumprirá a lei, sendo um tiro no pé do projeto inicial, que buscava o melhor
dos mundos, um oásis em meio à decadência generalizada. Grande exemplo disso é
a Lei Seca americana, que teve motivação religiosa e terminou de forma
desastrosa, pois nunca houve tanto bandido poderoso e alcoólatra ignorado pelas
autoridades. Nesse cenário de guerra civil velada, o governo se via de mãos
atadas, até que revogou a lei e as coisas puderam voltar a alguma normalidade.
É claro que o mundo não é um
mar-de-rosas, que as pessoas não são boazinhas e nem que ser feliz é um destino
inexorável. É claro que o pacto social se fez necessário para domar o ímpeto
das pessoas e demais atos inconsequentes. O contrato social barra (ou pelo
menos deveria proceder assim) atos que desestimulam a convivência pacífica
entre os homens. Com a regulamentação de leis e com a liberdade de pensamento e
de associação acaba ficando mais barato para a máquina estatal, pois aumenta o
nível de confiança, gastando-se menos em fiscalizar e reprimir “subversões” que
em nada atrapalham o andamento da sociedade. Como Hobbes tinha uma visão
extremante pessimista do homem em estado primitivo e Rousseau, uma visão
ingenuamente otimista, percebemos como é difícil estruturar uma sociedade. Deve
haver uma definição de justiça e do que deve ser estimulado a fim de promover o
bem-estar das pessoas que ali vivem, seja de maneira hierárquica ou
igualitária; o que importa é haver critérios para distinguir o que é
considerado justo e desejável do que é injusto e condenável. A partir disso, temos
esses sentimentos rotineiros, como a indignação e a satisfação. A adoção de um
conjunto de valores levará a reações das mais diversas. Se se acreditar que
tudo está decidido de antemão e não há o que melhorar, dificilmente haverá
tolerância, pois qualquer desvio de rota será uma ameaça à perfeição
instituída. E se se acreditar no progresso paulatino, é mais provável haver a
promoção da tolerância, pois admite-se testes, erros e correções.
Uma sociedade que esteja aberta a
atender demandas de sua população, e consiga responder satisfatoriamente a boa
parte delas, poderá ser considerada bem ajustada, enquanto a que se fecha ou
que não se importa com o cumprimento das leis poderá ser tido como errática,
inepta, injusta, corrupta ou tirana. Não é porque ninguém se indigna que o povo
vive bem, assim como é incorreto dizer que um grupo tolerante adora/ama os seus
semelhantes. Na verdade, a indignação
é um estado de alta insatisfação dentro de um contexto que permite cobranças
por justiça e a tolerância é o
respeito pelas diferenças. Em ambos os casos há graus de atuação, dentro de uma
zona cinzenta difícil de definir onde começa e onde termina cada caso. Certo é
que na sociedade contemporânea, permeada por valores ocidentais oriundos do Iluminismo,
a intolerância é algo que só deveria ser aplicada aos intolerantes – o não
respeito a direitos é o limite da tolerância – e a indignação é algo
inevitável, pois temos a todo momento contato com situações injustas, que
clamam por reparação. O grande perigo nesse caso é se reduzir a cobranças por
ninharias ou encontrar-se num estágio de anestesia, quando não se consegue mais
se indignar nem lutar por algo, como se tivesse desistido de melhorar o mundo.
Isso mina o espírito democrático e a noção de prioridade. Novamente, recorrer
ao bom senso poderá ser de grande valia.
Concluindo, vejo que tolerância e
indignação estão em perpétuo conflito. O tolerante tende a se indignar menos e
nos momentos em que se sente indignado não costuma traduzir essa revolta em
algo grave, como quebra-quebra ou desacato à autoridade. Quem é tolerante tende
a ser mais equilibrado emocionalmente, pois seu lado racional é trabalhado o
suficiente para brecar reações intempestivas. Já a indignação tende a ser uma
intolerância, pois nasceu de um fato que não deveria ter acontecido nem se
repetir e a pessoa gostaria de anulá-lo, ou ao menos repará-lo. No entanto, não
há uma relação inversamente proporcional entre elas, i.e., se aumentar a
tolerância diminuiria a indignação e vice-versa, há somente uma tendência de
que isso ocorra. Finalmente, o tolerante, por servir-se mais da razão, tem mais
chances de se adaptar ao atual contexto, assaz turbulento e pluralista,
enquanto o indignado, por se deixar levar por suas emoções, tem mais chances de
se sentir infeliz, turrão e deslocado. Nem tudo a razão consegue controlar,
porém ela é útil para corrigir erros pontuais, buscando um equilíbrio entre o
descontentamento e o júbilo, seu e dos demais.