Em cada época apela-se a uma referência
legitimada socialmente e o cético é a mosca a zumbir, perturbar e confundir os
menos convictos de que supostas autoridades bastariam para elucidar o mundo. Os
donos da verdade também não gostam da impertinência do cético, levam a
interpelação como uma afronta a sua capacidade intelectual e moral, como se eles
fossem idiotas ou incultos ou mentirosos. Julgo a dúvida cética como
pertinente, apesar de ser incômoda e insolúvel: como garantir que o que é dito,
independentemente do contexto, é verdadeiro? Como ter certeza de que as
justificativas são suficientes para se alcançar a verdade? Certo é que todo
ceticismo radical cai por terra quando se é confrontado com o mundo real, com a
vida prática; é preciso agir, e para tanto, é preciso crer intuitivamente em
alguns pressupostos, e.g., que há um buraco em minha frente e que eu irei me
machucar gravemente se eu ignorá-lo, que eu estou aqui escrevendo estas extravagâncias
porque estou afim e não sou marionete de uma inteligência superior.
E quais foram as autoridades
históricas? Deus, Rei, Razão, Lei e Método. E no quê se resume o ceticismo? Epoché, i.e., suspensão do juízo. Ora,
agir de acordo com as convenções sociais é algo bastante razoável e apropriado,
preserva os dentes e põe a cabeça no lugar. Ora, o objetivo da vida é atingir a
verdade e comportar-se apenas de acordo com ela? Não me parece. Vejam: ambas as
partes (o crente e o cético) afirmam estar certos e costumam agir coerentemente
(prática coadunando a teoria), porém só o contexto pode dar a resposta de que
tais hábitos estão efetivamente de acordo com a verdade, que é sempre
provisória. Mudou o ambiente, mudaram-se os hábitos; mudou o vestido, mudou a
autoestima. Se a verdade do universo existe, ela não nos é acessível, é o limite
kantiano em ação: nosso aparato mental apenas nos permite saber do que é passível
de ser captado, apesar dos aparelhos tecnológicos terem evoluído enormemente
até então. No fim das contas o que legitima um dono da razão enunciar verdades
é seu pertencimento a alguma linha canônica vigente, por exemplo, à mecânica
quântica, à newtoniana ou à ptolomaica. Teorias existem aos milhões, porém
somente uma ínfima parte vinga e convence à elite intelectual, até que é
falseada e substituída por outra que reina por poucos ou muitos anos. Em suma,
via proposições toda conclusão faz sentido internamente, mas é objetada
facilmente de fora como silogismo.
Quero adiantar que não estou me
posicionando em favor do relativismo. Sou um racionalista, portanto, penso ser
possível se aproximar do conhecimento acerca do funcionamento do universo, que
é indiferente às vontades humanas. Porém, a dúvida cética é uma pedra no sapato
que é melhor deixar num canto, para não atrapalhar a brincadeira. Do contrário,
seria melhor desistir de estudar e cair na farra.
Quero sair agora do campo epistemológico
e me aproximar da área histórica. Qual é o sentido das cinco autoridades enunciadas
logo acima? Deus foi a autoridade durante a Idade Média, era tanto o objetivo
das reflexões como o meio de se atingir qualquer verdade, via iluminação. Em
seguida, isso passou a ser privilégio dos reis, incluo a santidade papal nesse
conjunto. Posteriormente, a razão foi a grande referência (fundação da Idade
Moderna), ainda que a princípio se tenha tentado conciliar teologia com
racionalismo (vide Descartes, Leibniz, Pascal e Malebranche) - na prática a categoria anterior continua subsistindo, com menos força, mas à espreita para voltar a se afirmar e, com sorte, predominar. Até que veio o
Iluminismo e defendeu a razão como a verdadeira iluminação, e não as revelações
miraculosas e arbitrárias da divindade. Seguiu-se disso a necessidade de
estruturar as sociedades via Estado laico, e não mais o teocrático, a saída foi
a invenção de legislações, do direito civil. Como negar que a lei tenha sido uma
boa proposta? A fim de garantir alguma coesão social, universalizou os ideais da
nação e puniu quem deles se desviava. Ora, a legitimação não estava mais em
outra instância, mas aqui mesmo, reclamar falta de participação ficava mais
difícil. Após, veio o positivismo e, por fim, o método científico. A ciência
hoje às vezes faz o papel de Deus lá atrás: “Não sou eu quem diz, é a ciência!”
Dessa forma, imiscui-se da parcialidade jocosa e joga nas costas do discurso
cientificista as verdades proferidas, muitas vezes sem cuidado, com um
pedantismo típico dos homens, os mestres do subterfúgio. Cuidado com os novos
ídolos!
Se antes era a intuição que
revelava verdades, agora é a razão potencializada, pretensamente isenta de
psicologismos, que cumpre essa função. E qual é o maior atributo da razão?
Proceder por partes. Ratio significa
dividir. O que está sendo levado às últimas consequências pela ciência, cada
vez mais especializada e com mais dificuldade de unificar discursos que se
tornaram herméticos. A “teoria de tudo” na física é o maior exemplo, não se
percebe uma solução satisfatória à vista, o horizonte está nebuloso.
Antigamente, a intuição encontrava respostas às dúvidas mais inquietantes da
natureza, os homens inclusos. Intuir é sentir por dentro; a solução chega num
átimo, há iluminação de tudo ao mesmo tempo agora. Não há conceitos, a
linguagem é dispensada, o processo não ocorre por partes, o que dificulta ao
sujeito moderno (ao pós-moderno também, mas menos) compreender tal metodologia.
Isso tudo é como o pensamento
selvagem em conflito com o do antropólogo, conseguirão eles se entender? Quem
irá fazer concessões e sair de seu mundo confortável em prol do diálogo e da
compreensão? Quem abdicará de suas verdades para adentrar na verdade esquisita/excêntrica?
Quanto a isso, o sujeito racional terá mais facilidades, afinal está acostumado
a proceder por partes e a dissimular. Contudo, logo ele voltará ao que é
valorizado por seus contemporâneos: o método. Enfim, a verdade parece absurda a
quem não está pronto para compreendê-la. Bom mesmo é estar flexível e atento,
apto a captar as mais diversas verdades, pois aparentemente saímos do contato
com elas enriquecidos, assim como alegam os crentes após acessar o divino. Noto
nessa jornada homérica a persistência da nostalgia do mundo das ideias (perfeito
e tranqüilo). O homem é carente e ambicioso. E em que implica isso tudo? Que saber
é poder e todos o almejam.
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