11 de novembro de 2013

Juventude ensinada a ser covarde


O iluminismo talvez tenha sido o primeiro grande movimento a defender a autonomia do sujeito pelo uso da Razão, a isso de chama Modernidade; ante a histórica opressão das instituições hegemônicas (Igreja, Estado e Senhores semideuses) cada indivíduo deveria tomar ciência de suas potencialidades e agir em prol de seus interesses, sempre os mediando com as demandas que o cercam (direitos aliados a deveres). Em resumo, o século XVIII lançou as bases teóricas, o século XIX ensaiou uma prática aliada a teorias mais modernas e o século XX enfim enraizou os princípios iluministas em todo Ocidente, é claro que com graus relativos à localidade e ao estágio civilizatório em questão. Portanto, nos países ocidentais foi imperativa a separação entre o poder republicano e o eclesiástico – é o processo de laicização ou secularização. É óbvio que no dia a dia ainda se notavam pequenos centros atrasados e os esparsos devotos a algum tipo de reverência aos coronéis ou sacerdotes da região, nada que políticos aplicados em instaurar o pleno Estado de Direito não pudessem evitar.
Contudo, o problema reside justamente neste ponto: quem foram os arretados, bravos e determinados que alteraram as leis, a fim de efetivar a autonomia de seu povo e conterrâneos? Interesses mais imediatistas e corporativistas não costumam falar mais alto quando o que está em jogo é uma disputa entre milhões de iguais, incorrendo inevitavelmente em perda de privilégios e da idolatria a meros ilusionistas? Somente líderes modestos e visionários defenderiam e se engajariam em prol dessa isonomia generalizada, gerando uma cultura de meritocracia e também de menores pretensões e presunções aos bem sucedidos. É mais fácil ser preguiçoso e deixar as coisas rolarem: que os acasos da vida cuidem da sorte, que o destino esteja nas mãos de algum deus ou santo e que o dedo indicador velozmente aponte a um culpado qualquer, tanto ao miserável bode expiatório quanto ao invisível dono do poder. Quem está psicologicamente preparado para ser o único responsável pelo próprio fracasso, bem como para dividir os louros da vitória com vários benfeitores? Questões existencialistas...
A sociedade já passou pelo processo de individualismo extremo, nunca antes visto na história do planeta, e agora tende a corrigir essa ingenuidade com a idéia de sustentabilidade, ao menos é o que vislumbro para este século. Processo bastante doloroso e cercado de teimosia, afinal o homem é um animal deveras vaidoso. Sendo assim, o ego deixaria de estar no centro das ações e das emoções, passando a se acomodar numa posição mais humilde. Os fragmentos não são vistos apenas num quadro cubista, mas pela janela do apartamento e dentro do próprio quarto. As antigas referências e solidez se diluem no atual mundo líquido, confundindo qualquer um que tente estruturar um sistema com motivos racionalmente justificáveis do porquê das coisas serem como são – é  a controversa pós-modernidade.
Nesse cenário, o medo se impõe como corriqueiro, as ameaças estão por toda parte e são incontroláveis, por mais que gastos com segurança tentem nos persuadir que a partir de então poderemos dormir em paz. Isso tanto é culpa de uma grandiosa cultura do medo que estimula os “cidadãos de bem” a se trancafiarem em casa quanto da razão cética que projeta cenários onde qualquer catástrofe pode acontecer, disparando casos de neurose, ansiedade e depressão. A intenção de libertar o homem se tornou uma faca de dois gumes: uns com liberdade em excesso e outros temendo a liberdade dos primeiros. A vigilância encontra-se disseminada, não só nessa parte física, mas também na parte imperceptível, isto é, nas entrelinhas dos discursos, conforme se nota com a volta do politicamente correto. Como há vários mecanismos e ferramentas tecnológicas que permitem a uma pessoa minimamente inteligente e esforçada conseguir (quase) tudo o que quiser – e tanto é assim que vemos hackers adolescentes tocarem o terror em governos inteiros, entre outros casos chocantes que intensificam o debate popular e midiático sobre a maioridade penal –, o meio mais eficiente que a sociedade encontrou para reprimir seus membros foi por meio das mensagens do poder que se mostram e se escondem diariamente, sendo mais acessadas por estudiosos e gente esperta, não pelo cidadão mediano. É incrível quão poucos são os que se reconhecem tapados e covardes, no entanto formam a maioria da população. E é incrível como exige-se coragem de todos, sob pena de ser taxado de arregão, franguinho ou fracote, mas se possível a galera sai de fininho quando a batata assa pra valer e a mão começa a queimar.
O ser humano historicamente teve se conviver em grupos reduzidos, onde era preciso agir in loco para poder interferir no meio. Havia normas tacitamente instauradas para estimular, repreender, recompensar e punir os membros. Com o advento da informática e com a explosão demográfica, portanto da comunicação global, instantânea e em massa, isso ficou muito difícil. Leis e mais leis fizeram-se necessárias. Ou então espionar tudo e todos, como se enxugasse gelo. Percebo nisso uma tendência ao retorno do senso de coletividade, pouparia custos, bem como um abandono da privacidade, agora um luxo, ou mera excentricidade.

O que isso tudo tem a ver com a covardia da juventude? É devido a esse panorama, mais outros pontos que deixo de fora, que a família se fechou cada vez mais para paparicar seus rebentos e formar mimados antiéticos. A única coisa sagrada passou a ser a própria vida e a do filho que recebe o “excelente código genético” de pais que precisam se achar importantes. Caso o mundo não reconhece o valor desse pai, ele fará com que seu micro clã seja espetacular. Tratar o filhote como reizinho eleva a autoestima tanto da cria quanto do genitor. Doravante, se alguma besteira fosse cometida pelo filhinho querido, ele se esconderia debaixo da saia da mãe, se um rolo qualquer acontecesse, correria para a aba do pai, se algum babaca o importunasse, chamaria o titio delegado para resolver a treta – exemplos de amparo familiar não faltam. Não creio que isso ocorra desde sempre, havia outras coisas sagradas. A mortalidade infantil era elevadíssima, nascer e morrer era mais banal que na atualidade.
A família protege em excesso a criança e, isoladamente, não a prepara para a vida política (cidadania). O Emílio de Rousseau deveria necessariamente ser criado em comunidade precisamente para evitar a proliferação de Narcisos. No lar, sem concorrência, o garoto acostuma-se a pedir, a fazer o que bem entende, a tirar proveito das situações, caso aja como um pimpolho, conforme a professora ensinou, e a se dar melhor ainda, caso aja como o amiguinho malandro se gabou. Para enfrentar o que pode dar errado, como um trapezista que dispensa a rede de segurança abaixo de si, quem está disposto? Alguns trocam os pés pelas mãos e se tornam tempestuosos, ignorando qualquer tipo de risco, vivendo intensa e brevemente, como um James Dean. A meu ver, estes se sentem enfastiados com a facilidade de tudo e resolvem brincar de roleta russa para haver um pouco de emoção. Por outro lado, quando aparece um aventureiro consciente e treinado pulando de precipícios, pegando ondas enormes e escalando montanhas gélidas, sempre vem um temeroso para taxá-lo de louco, problemático e suicida. Ora, o objetivo é viver ou simplesmente perdurar? Recuar diante do amor, hesitar aplicar toda a força que há dentro de si, ser prudente e espalhar as fichas para pelo menos ganhar um pouco aqui e ali, esquivar-se do sofrimento à frente (inevitável e balsâmico), são formar de viver pela metade, posteriormente será necessário se contentar também com meia felicidade. Mas isso existe? Se sim, vale a pena?
Há diferença entre covarde, corajoso e intemperante (um Aquiles touro-louco). O meio-termo é a coragem. Nela encontra-se o indivíduo equilibrado que sabe dos riscos que corre, e opta por atravessá-los, pois tem um objetivo maior, e se consegue superá-los sentir-se-á o máximo, talvez recebendo, de quebra, honrarias por seu feito. Porém, hoje em dia as coisas são executadas com um lastro de segurança. Logo que alguém vai comprar um veículo, uma casa ou uma jóia, o vendedor já oferece o seguro, como se apenas o pão-duro ou o desmiolado fosse recusá-lo. Aparentemente, há tanto a perder que é melhor subir degrau por degrau do que saltar por vários de uma só vez, porque haveria a possibilidade de quebrar a cara, literalmente, em caso de falhas. É tão difícil assim simplesmente se divertir e não se preocupar com bagatelas, preferindo aproveitar o momento de virilidade e de provisória insensatez? É sempre um dilema escolher entre gastar e poupar. Passamos por ele o tempo todo. O problema é que noto que a maioria prefere ou adiar seus sonhos ou não se responsabilizar pelos efeitos colaterais enquanto (acha) que realiza seus ideais.
Há um instinto de conservação predominando em praticamente todos os lugares. Voltamos a ser macaquinhos que aprontam na surdina, que dão um tapa e fogem logo, que fazem algazarra para distrair a vítima, que agem em bando para espalhar a responsabilidade por atos quase sempre inglórios. Quem sabe nunca tenhamos deixado de ser efetivamente o astuto homo sapiens, que sobreviveu graças à sua diferenciada flexibilidade e malícia. E fomos nos convencendo de que somos homo politicus, então no “deixa que eu deixo” ninguém se compromete, que a culpa recaia no destino ou em conspirações escusas. Ser corajoso é ser ético, é fazer aquilo que a maioria não ousa fazer, ou que pelo menos espera até a linha de frente garantir que não há problema em atravessar a ponte. Ser ético o tempo todo é ser herói, é ser modelo de ação para a maioria que se escora nos protegidos do líder, puxando o saco de ambos e se vangloriando por fazer parte de um time vencedor. Ser herói hoje em dia é ser anacrônico, ou ninguém dá bola ou é achincalhado prima facie, por propor loucuras e não ter amor à vida nem respeito à tradição. Parece-me que existem heróis, e aos montes, por aí, todavia passam despercebidos devido ao comportamento de manada que impera – são tantos os grupinhos especializados e padronizados vigorando em praça pública ou virtual. Vale mais ser mais um no bojo. Vale mais ter uma ninharia para chamar de sua.
O que expus retrata a decadência de valores viris e senhoris, o espírito guerreiro foi transferido para o esporte. A diferença é que na guerra é preciso criar as próprias normas e honrar os veteranos que superaram tanto a disciplina militar quanto as tentações do massacre e da humilhação aos derrotados. Já no esporte está tudo esquematizado, basta seguir o padrão tático, ter um pouco de talento e de raça que o atleta vencerá, sendo coroado e idolatrado por seus freqüentes títulos. Ai daquele que não praticar o fair play, terá que dar n explicações sobre sua falta de caráter. As câmeras logo o denunciariam. Não há muito espaço para improvisação e nem para dilemas éticos, como ocorre invariavelmente no campo de batalha.

A covardia é o medo consentido. E quem sente medo diariamente está com o caráter vil formado; diante de uma situação perigosa, o alarme soará, seu instinto de bicho assustado dará os comandos às pernas, ligeiro correrá até escapar da terrível ameaça ou até ele perder o fôlego, não sem antes procurar um abrigo qualquer com seu radar de homem das cavernas. Contudo, momentos de perigo, ou ao menos de dúvida sobre a melhor solução, se sucedem de hora em hora, não tem como fugir o tempo todo, a pessoa pode até tentar, mas toda renúncia sempre será um tipo de escolha. Ainda que os problemas sejam varridos para debaixo do tapete, amanhã ou depois esse manto será retirado e o entulho voltará com tudo para cobrar os juros do fujão. Há uma frase muito boa sobre tudo isso: “Os covardes morrem várias vezes antes de sua morte, mas o homem corajoso experimenta-a apenas uma vez” (W. Shakespeare).
Agora, focando no jovem, há um eterno retorno do conflito pais e filhos, leia-se uma geração a ser ultrapassada por outra. Na adolescência, digamos dos 11 aos 21 anos, os hormônios estão à flor da pele e a petulância é uma ordem interna da vontade de poder, por mais que não haja qualquer embasamento a esse sentimento de superioridade. Ali se fazem mais presentes que no adulto mais maduro e calejado: o espírito de rebanho, o temor da exclusão social, a submissão à voz do líder do grupinho almejado, a ânsia desmedida e infundada de ser aceito naquela panelinha sem graça e autoritária.
Esses nichos, essas gangues juvenis, essas tribos urbanas e infantis praticam o bullying como autodefesa e estratégia de sobrevivência, pois como não há raízes, o jeito é cortar indícios de raízes dos vizinhos. Esses nichos costumeiramente recebem qualquer novato e postulante à vaga de imbecil arrogante com desprezo e hostilidade, ato que sofrerá pequenas variações no futuro, quando for ele mesmo um membro cativo. O novato passará por provações, exigências, trotes, ritos e protocolos inoportunos. São exames que exigem menos coragem do que tenacidade, persistência e flexibilidade, ou seja, personalidade suprimida. O mais interessante é que após passar pelos testes o calouro jura que foi corajoso. Diante de uma falsa questão qualquer resposta servirá e ilusória será. Para fazer parte da patota vence-se pelo cansaço. O pior é que está cheio de trouxa para se submeter a isso com um largo sorriso no rosto, ansiando, babando, a fim de condescendentemente retribuir a seus tiranos. Para compensar essa inferioridade momentânea ele irá se rebelar contra pais, professores e demais educadores de fato, pois sabe que estes jamais revidarão suas agressões como deveriam. Numa atroz inversão, a culpa de suas humilhações não será dirigida aos que o tratam como criança, mas aos que o veem como potencial adulto responsável, pois ele mesmo ainda é mais um imaturo e marrento, ainda não está pronto para ser grande.
Não está pronto e dificilmente um dia estará. Geração Peter Pan: quer a leveza das brincadeiras e não quer o peso e a dureza da vida adulta circunspecta. Quer direitos e benesses até seus 30, 40 anos, quer ser herdeiro, playboy, madame, VIP. Quer ter status e causar inveja. Claro, sem heroísmo, apenas com a máscara da vitória, comprada, tecida ou bem maquiada. É uma viadagem sem fim. Posso estar sendo machista e conservador, mas os valores femininos parecem ter corrompido definitivamente os antigos valores viris e aristocratas. A sociedade pode ter se tornado melhor, mais tolerante e capaz de enfrentar novos desafios, assim como os neandertais deveres rudes e ríspidos sucumbiram e nós não, essa vida mais racional e cheia de picuinhas demandou novas posturas, azar dos que não se adaptarem, eles não terão sucesso.
Eu somente constato esse quadro. Talvez a coragem seja um valor dispensável ao século XXI, para tristeza dos saudosistas de bestas-feras valentes e destemidas vestindo toscas armaduras e impunhando punhais por eles mesmos forjados. Não haverá outro William Wallace nem outro Lampião, viraram lenda, que os filminhos de Hollywood, as séries da HBO e os livros de história nos dêem um mísero apanhado do que foram esses guerreiros. Para o bem e para o mal, não se repetirão. Para o bem ou para o mal, não seremos corajosos.


P.S.: Dessa vez eu não quis dividir o texto, provavelmente só quem estiver realmente interessado irá lê-lo na íntegra, pois sei que ficou longo/prolixo.

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