Excepcionalmente, posto algo acadêmico. A resenha abaixo foi um trabalho de faculdade, mas eu (meu professor tb!) achei tão bom, além de ter gostado tanto do tema, que resolvi publicar aqui, já que não haveria outro lugar para publicá-la.
O presente texto é uma
resenha do artigo A Questão da Técnica,
mas poderia ser dito: Interpretando Heidegger. Irei expor com minhas próprias
palavras o que entendi desse texto clássico da filosofia, tão cheio de termos,
conceitos e frases complicadas, ou seja, de difícil compreensão. O objetivo é
tornar o texto palatável e acessível a qualquer interessado sobre essa crítica
contundente à modernidade, ainda que isso custe o rigor e a linguagem habituais
da filosofia. Corro também o risco de fazer uma interpretação equivocada do
pensamento heideggeriano; desde o começo alerto o leitor às minhas limitações.
O ponto-chave do texto, cujo
sentido é tácito por sinal, é o resgate do Ser. Em nenhum momento Heidegger
escreve algo como “temos que resgatar o ser que foi perdido após tantos séculos
de predomínio da técnica”, mas é exatamente isso o que ele quer dizer. A
fraqueza do homem perante a Natureza é notória, o mito prometeico de concessão
do fogo aos primitivos simboliza essa nossa indefesa diante dos perigos que a
qualquer momento podem exterminar com um grupo ou até mesmo com a espécie.
Sendo assim, o homem desenvolveu técnicas e mais técnicas para se proteger e,
posteriormente, para dominar a natureza. Ou seja, no primeiro momento é questão
de sobrevivência, depois se torna questão de conforto e por fim o orgulho
humano exige algo mais: a dominação do que for passível de controle. Para
Heidegger essa situação histórica, e mesmo antropológica, fez com que o homem
esquecesse quem ele era, decorre disso o apelo ao Ser e a ontologias que escapem
à corrente técnica, que é cada vez mais eficiente.
Esta é a tese central do
artigo: “A técnica é um modo de desabrigar. A técnica se essencializa no âmbito
onde acontece o desabrigar e o desocultamento, onde acontece a aletheia” (p. 381). E a pergunta
principal é: “A questão da técnica é a questão acerca da constelação na qual
acontecem o desabrigar e o ocultamento, onde acontece a essenciali-zação da
verdade. Contudo, de que nos serve olhar para a constelação da verdade?” (p.
394). É preciso um esforço intelectual e uma interpretação filosófica para
saber o que significa tudo isso. A introdução ao artigo, de Leopoldo e Silva,
ajuda-nos a decifrar A Questão da Técnica,
ele afirma que pensar a essência da técnica além dos escopos metafísicos e
epistemológicos seria pré-requisito para poder superar o viés exclusivamente
humanista da tradição filosófica (p. 369). E como isso se procederia?
Concebendo o produzir em sentido lato, como faziam os gregos, isto é, vendo a
própria natureza (physis) como um
produzir (poiesis). “Vê-se então o
que teria de reducionista a interpretação em termos de relação entre meios e
fins, no sentido estritamente instrumental. Isso nos leva a observar a relação
que existe entre poiesis, techné, episteme e verdade no sentido de desocultamento – aletheia” (p. 370). Grande exemplo disso
é o florescer da flor.
Heidegger nos relembra a
teoria causal aristotélica, na qual são quatro as causas que regem o universo:
a material (o que é), a formal (como é), a final (para que serve) e a eficiente
(quem age). Ele argumenta que a mais importante é a última, pois esta
“determina de modo exemplar toda causalidade” (p. 377). E quem seria o
responsável por ela? Tanto a própria natureza quanto o homem. Mas na
civilização é o produto deste o mais valorizado. É ele quem visualiza, escolhe,
pondera, intenciona, prevê e finaliza a coisa. Para o filósofo ter esse fim em mente é o que compromete todo o
sistema. O logos deveria levar à luz
a essência das coisas, isto é, retirar o véu que cobre tudo que existe, mas
isso não costuma ocorrer. A culpa é justamente da técnica, uma vez que ela
determina os meios de como se deve proceder geralmente. Portanto, a causa
eficiente está comprometida com um destino que não é o dele, mas da história. A
ação do homem é meramente a causa secundária dos efeitos determinados
primordialmente pela técnica, que esse homem não consegue captar a essência,
restando a ele reproduzir o que está dado. A solução a essa existência à mercê
dos outros (moral e técnica predominantes) é sugerida mais à frente no texto.
Onde o filósofo alemão
queria chegar com esses rodeios metafísicos? Basicamente no conceito-chave de
sua filosofia: o Dasein. O Dasein vincula o existir no mundo com a
verdade, mas essa verdade deve ser entendida como aletheia (desvelamento, desabrigar), e não no sentido corriqueiro e
usual da ciência – verdade aprisionada e demarcada para fins de verificação com
os precisos e infalíveis instrumentos da técnica. Desviando o foco do conhecimento para a origem do mesmo
(entre os gregos), Heidegger argumentou que mesmo nas ciências modernas subjaz
algo que os cientistas ignoram, ou preferem não ver, que é a técnica como
processo natural das coisas, não como uma primazia humana, exclusividade que
fez o homem se arrogar dono do mundo. Comprometido com a técnica os modernos só
fizeram desabrigar, levar à frente, o que não deveria fazer sentido ao Ser. Mas
é claro que Heidegger não se expressa nesses termos, ele diz da seguinte forma:
“O
desabrigar que domina a técnica moderna, no entanto, não se desdobra num levar
à frente no sentido da poiesis. O
desabrigar imperante na técnica moderna é um desafiar que estabelece, para a
natureza, a exigência de fornecer energia suscetível de ser extraída e
armazenada enquanto tal” (p. 381).
O homem apenas acelera um
processo que acontece e sempre aconteceu por aí, a diferença é que a natureza é
indiferente aos resultados; os animais e as plantas não dão valor nem se
vangloriam por suas obras, enquanto o homem valoriza aquilo que para o restante
do universo é mais um fruto a ser transmutado posteriormente. O problema é que
para os modernos esse fruto perdeu sua finalidade, muitas vezes é descartado,
apesar de ter sido reservado/estocado, ou então se tornou um fim em si, numa
busca frenética por mais, como a ganância por dinheiro, sem perguntar o porquê
de tal acumulação. Nesse fluxo o homem se aliena, deixando também de se
perguntar por que age, vive e consome.
Assim como não se olha mais
para o rio, mas para seu potencial energético, não se olha para o homem inteiro,
mas para sua força produtiva, nem para a sociedade, mas para seu mercado
consumidor. Heidegger chama isso de “um extrair na medida em que explora e destaca”
(p. 382). Ora, nada mais moderno que rotular, o que na verdade é servir-se da
figura de linguagem metonímia para entender o todo. A partir dessa objetivação
de tudo que lhe é externo (com fins utilitaristas, hedonistas e rentáveis) o
próprio homem se objetiva, coisifica, perde sua essência, resignando-se ou,
pior, estimulando-se em ser encomenda dos outros. Também deixa escapar a
essência da técnica, uma vez que só enxerga os efeitos desta e não o que de
fato ela é. Nessa visão de mundo há uma verdade, mas é apenas a verdade da
técnica moderna, escrava do sistema, tanto o capitalista quanto o socialista, porém
a poiesis não é mais referência para
transformação. O grande motivo para intervir no mundo passa a ser ditado pela
própria técnica, tipicamente compulsiva e dominadora. Por fim, a visão mística
e artística do mundo se perde, pois esta precisa de paciência, tempo e entrega
às forças externas, enquanto a técnica moderna deseja tudo controlar e acelerar.
E esse desenrolar não é casual, é algo inevitável.
A esse chamado da técnica o
homem moderno dificilmente irá conseguir escapar, a menos que desenvolva seu
senso crítico. Em outras palavras e com outro objeto de estudo Heidegger
elaborou a mesma idéia da Escola de Frankfurt, em especial dos autores Adorno e
Horkheimer. A alienação que o sistema produtivo impõe ostensiva ou sutilmente,
mas todo dia, ao homem produz o resultado de uma massa de indivíduos
controlados e aliados do poder. O interessante é essa entrega passar a ser
feita sem questionamento após um período, não importando se a vida desses seres
é satisfatória ou não, pois vale mais a inclusão social e a obediência do que a
paz de espírito. Submersos à técnica todos esses incautos e cegos sequer seriam
capazes de entender para onde se movem. Querer ser mais uma peça do tabuleiro
anula a possibilidade de acabar com esse jogo.
A essência dura, ou melhor,
perdura. Todo sistema tem ideias (eidos),
algumas vingam, outras fracassam, mas para esse sistema ser considerado
vitorioso precisa que a maior parte de suas ideias dure o máximo possível.
Vivemos sob a égide de vários sistemas (capitalismo, liberalismo, democracia,
republicanismo, cristianismo, etc), eles definem o modo de pensar e se
comportar da absoluta maioria de seus “discípulos”, que não tem muita escolha a
não ser seguir o que for conveniente e supostamente verdadeiro. A esse sistema
Heidegger cunhou o termo “armação”, que seria uma forma de paradigma, moral ou
referencial; uma estrutura a qual dificilmente alguém deixaria de acompanhar. O
perigo inerente a ela é que ela carrega essências, coisas que perduram, o que
só acontece porque suas ideias são consentidas. Mas se o indivíduo não teve a
liberdade de consentir a elas, porque ele deveria abraçá-las? Porque o sistema
é maior e deve vencer. Só quem realmente se pôr em desafio, pensar criticamente
e agir autenticamente poderá escapar dessa alienação e conseguir viver digna e
plenamente.
Sobreviver não basta à vida.
Enquanto o homem não tentar escapar de seu micro-cosmos para procurar se situar
no mundo ele ainda não estará apto a ouvir o chamado poético da natureza. Daí
vincular o dasein com a arte, o belo,
o autêntico. “Onde quer que o homem abra seu ouvido e seu olho, abra seu
coração, liberte-se de todo o seu pesar, ao imaginar e operar, ao pedir e
agradecer, em toda parte já se encontrará levado para o que está descoberto”
(p. 384). Pode parecer coisa de hippie, mas essa é a abertura ao ser. Ela só
seria possível quando o homem soubesse das armadilhas de sua sociedade, da tirania
da técnica e dos fluxos extravagantes da própria natureza, algo que falta ao
sujeito moderno, deveras enfraquecido e imerso no pensamento cartesiano,
kantiano e positivo.
Estar mais próximo da
técnica primordial, isto é, daquela que a própria natureza realiza ainda hoje
em dia, apesar da influência do homem se fazer notar em quase todos os recantos
deste planeta, seria adquirir autonomia, podendo ser livre para pensar e agir
de acordo como os desígnios de uma metafísica sem grilhões, isto é, da arte que
anuncia a essência do ser a fim de contemplá-la e está aberta a múltiplas
interpretações e atualizações. Isso passa por abandonar parte dos ditames da
Razão, não para se tornar um irracionalista, mas adotando uma proposta
pós-metafísica, que “abre possibilidades de um outro modo de pensar, que não
recuse a técnica, que não alimente nostalgias, mas que faça da técnica que nos
domina uma questão a ser enfrentada
com a liberdade possível” (p. 373). Aquele que não estiver bitolado e
hipnotizado pelos atrativos, encantos e tentações da técnica e ainda se sentir
desafiado ao desabrigar produtor exortado por Heidegger, então estará pronto
para encontrar a saída, para experimentar o Dasein.
Conforme dizia Nietzsche
“quando você olha demais dentro de um abismo, o abismo olha para dentro de
você”, ou seja, para se salvar do niilismo de um mundo tecnocrata é preciso
tanto conhecer esse perigo imenso – o de se anular em prol do vazio – quanto
superá-lo. E para Heidegger essa superação se dá pelo questionamento constante
e perspicaz acerca da essência da técnica, bem como pela meditação artística
que desvela os fundamentos do ser, não de forma técnica (pelo método
científico), mas pela desconfiança nessa verdade que dizem ter descoberto e que
deve ser legitimada por todo bom cidadão pensante. Aqui temos a crítica
heideggeriana ao humanismo, muito mais adestrador que emancipador do homem. Por
este ser alguém que representa o mundo (fenomenologia) e tem vontade de se
afirmar nele (existencialismo), logo esse processo só poderia se dar através do
“conhece-te a ti mesmo” e da expressão da subjetividade, algo sadio e natural.
Contudo, o humanismo, na visão heideggeriana, aprisiona esses anseios, ou seja,
reprime a humanidade, em prol de ideais como a verdade, a justiça, a igualdade
e a democracia. Decorre disso tudo o tal “resgate do ser”, bem como a salvação
do homem.
Referências
Leopoldo e
Silva, Franklin. “Martin Heidegger e a Técnica”. Scientiæ Studia. São Paulo, v. 5, n. 3, p. 369-74, 2007.
HEIDEGGER, Martin.
“A Questão da Técnica”. Scientiæ Studia.
São Paulo, v. 5, n. 3, p. 375-96, 2007.
P.S.1: Por ser tão sério, sem figura(s) desta vez.
P.S 2: Se vc não lê Heidegger só por saber q ele foi nazista, tá na hora de mudar seus conceitos.