Crianças precisam
se tornar seres sociais; para tanto, aos poucos vão perdendo a primazia da
natureza (determinismo biológico) sobre elas, substituindo-a pela cultura (a
segunda natureza). Ainda inocentes elas ignoram o devir, apesar de vivê-lo
intensamente a cada dia, bem como ignoram o papel da racionalidade, que
progressivamente é inculcada em suas cabecinhas em formação. Crianças vivem
apenas o presente, assim não sofrem as angústias de não saber o que serão ou o
que farão no futuro. Elas tampouco remoem o passado, com seu inconveniente peso
por traumas e decisões errôneas e com a sedutora idéia de paraíso perdido (nostalgia).
Isso é coisa de adulto; é coisa de civilizado neurótico.
E porque o
homem crescido e formado (ainda que sempre incompleto) padece dessas besteiras?
Porque é controlador e egoísta. Pensa que o mundo pode funcionar de acordo com
planilhas e algoritmos, mesmo que seja apenas o seu mundinho (seu quarto, sua
família, sua repartição). “Meu jeito, meu ritmo!”. Perdeu, de forma
irremediável, a leveza e a inocência infantis. Isso não era problema
antigamente, quando o papel do adulto e o papel da criança não se confundiam.
Porém, é problema sério hoje em dia, pois há pirralhos ansiosos pela
“autonomia” da vida adulta e há rapagões que lamentam a perda da irresponsabilidade
pueril, sendo que muitos teimam em viver como se tivessem vinte anos a menos. Quando
entenderem que não dá como parar o fluxo das coisas, talvez melhorem suas
posturas.
O fato é que o
homem moderno foi rompendo seu elo com a natureza pré-industrial, e agora o
homem contemporâneo se relaciona quase que exclusivamente em locais com clara
interferência humana (centros urbanos, salas repletas de itens de última
tecnologia, etc). Isso altera seu modo de pensar, portanto de agir. Uma vez que
desconhece como se portam os animais em seu habitat natural e como se
comportavam seus antepassados (humanos ou pré-humanos), esse homem só poderá
replicar as atitudes de seu ambiente high-tech e mercantilizado. Efeito disso são
os rótulos dados a ele: fetichista, consumista e egoísta.
E qual é a
conseqüência desse retrato histórico eu quero alertar? É sobre o efeito de
querer ter objetos, pessoas e eventos nas mãos a fim de serem manipulados ao bel
prazer, afinal vivemos numa sociedade hedonista. É sobre depositar um alto
valor, mesmo que efemeramente, em objetos que definem sua identidade. E não há
argumento que convença esse homem que tal procedimento é inviável e ilusório. Ele
poderia ser mais que a roupa que veste ou o carro que dirige. Contudo, por
haver inúmeras maneiras de realizar o fim quase unânime (ser grande e
valorizado), esses meios serão diligentemente empregados, pouco importando as
verdades enunciadas por filósofos. Se o ato aparentemente se concretiza e a
práxis parece ser verdadeira, logo é coisa de pensador maluco e renitente ficar
com essas críticas impróprias. A técnica venceu a disputa sobre o ser.
Ontologias são desprezadas diante das tecnologias, mais facilmente assimiladas
e mais prontamente manejadas. Resultados práticos e visíveis são preferidos
sobre abstrações e ruminações.
Do meu lado,
prefiro incorporar conceitos a mercadorias. Prefiro palavras, sons e figuras permeando
meu ser. Conhecer algo implica tirar-lhe a novidade, selecionar algo do que se conhece
é deixar-se afetar por ele, é identificar-se com tal substrato, até que este
seja mais uma característica da identidade desse indivíduo. Porém, não deveríamos
nos restringir. Mesmo que custe a alcunha de contraditório, mais coisas devem
ser trazidas ao ser. Com o tempo aprendemos a refinar nossos gostos e ímpetos. Ainda
que se insista em não mudar de personalidade, em não ceder ao devir, este fatalmente
agirá. Tentamos bravamente resistir, mas o devir é forte e ágil, sempre
encontrará uma brecha. E não tem problema, quem tiver erigido um caráter sólido
e criterioso retirará benefícios dos ventos da mudança. Eu gosto que essas
mudanças sejam mais de visão de mundo do que de restaurante ou tênis favorito.
A maioria das
pessoas gosta de relembrar as coisas boas e de remexer no vespeiro das coisas
ruins, querem encontrar uma essência, algo que as defina, mesmo que não de
forma decisiva. O eu é uma invenção
cultural para não ser reduzido a casos, porém no mundo só existem casos. Há
alguma forma da razão não esquematizar seus conhecimentos? Pensadores
pós-modernos tentaram fazer isso, muitos ainda não compreenderam seu método,
muito menos o povo em geral, que insiste em rotular pessoas, modas e bichos. Recorremos
à memória e encontramos lá um departamento que parece aglutinar certas
características, então deixamos tal item por lá, até ele aceitar ou contestar o
rótulo. A memória é como um ímã que une aspectos semelhantes e afasta os
dessemelhantes. Há como escapar dessa ferramenta preciosa e aprisionante? Sim,
esquecendo. Esquecer é entregar-se ao devir.
Ah, mas o esquecido
é o bocó da turma, ele é rechaçado em quase todas as culturas como ‘louco’.
Ninguém em sã consciência quer sê-lo. Tudo bem, mas só quem se põe aberto a
imprevistos, ou seja, aquele que assume o desconhecimento, pode se fascinar com
o que acontece à sua volta. No estranho, no imprevisível, no inapreensível
reside um novo valor, uma nova autoridade, um novo processo de conceituação. Após
a absorção do novo será restaurada a ‘essência’, que mais à frente outra vez
cederá seu lugar a mais coisas cativantes até então desconhecidas. Essa é a revelação
do profano, que contagia a ‘mente aberta’. O homem que se entrega
irreparavelmente às coisas expande seus limites e com isso torna-se mais
múltiplo que o homem que se fecha por estar satisfeito com o que tem e se é. Como
canta a balada do louco: “mais louco é quem me diz e não é feliz, eu sou feliz”.
Só a morte é
sem apelação, só ela anula a possibilidade de continuar experimentando
poeticamente o mundo, só ela é capaz de parar o devir que assombra e contagia o
ser. Fica meu conselho: se vivo, ignore o absoluto, não confie demais em
essências, não tenha muitas convicções, não defenda ferrenhamente uma
ideologia, pois o mundo dá voltas, aparentemente só o devir é para sempre. Tente
relembrar de como você era quando criança. O retorno é impossível e até indesejável,
mas essas doses de criancice fazem bem.
KAralho! Mano! Tu existe? kkk
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