13 de março de 2014

Sobre 'A Questão da Técnica'

Excepcionalmente, posto algo acadêmico. A resenha abaixo foi um trabalho de faculdade, mas eu (meu professor tb!) achei tão bom, além de ter gostado tanto do tema, que resolvi publicar aqui, já que não haveria outro lugar para publicá-la.

O presente texto é uma resenha do artigo A Questão da Técnica, mas poderia ser dito: Interpretando Heidegger. Irei expor com minhas próprias palavras o que entendi desse texto clássico da filosofia, tão cheio de termos, conceitos e frases complicadas, ou seja, de difícil compreensão. O objetivo é tornar o texto palatável e acessível a qualquer interessado sobre essa crítica contundente à modernidade, ainda que isso custe o rigor e a linguagem habituais da filosofia. Corro também o risco de fazer uma interpretação equivocada do pensamento heideggeriano; desde o começo alerto o leitor às minhas limitações.
O ponto-chave do texto, cujo sentido é tácito por sinal, é o resgate do Ser. Em nenhum momento Heidegger escreve algo como “temos que resgatar o ser que foi perdido após tantos séculos de predomínio da técnica”, mas é exatamente isso o que ele quer dizer. A fraqueza do homem perante a Natureza é notória, o mito prometeico de concessão do fogo aos primitivos simboliza essa nossa indefesa diante dos perigos que a qualquer momento podem exterminar com um grupo ou até mesmo com a espécie. Sendo assim, o homem desenvolveu técnicas e mais técnicas para se proteger e, posteriormente, para dominar a natureza. Ou seja, no primeiro momento é questão de sobrevivência, depois se torna questão de conforto e por fim o orgulho humano exige algo mais: a dominação do que for passível de controle. Para Heidegger essa situação histórica, e mesmo antropológica, fez com que o homem esquecesse quem ele era, decorre disso o apelo ao Ser e a ontologias que escapem à corrente técnica, que é cada vez mais eficiente.
Esta é a tese central do artigo: “A técnica é um modo de desabrigar. A técnica se essencializa no âmbito onde acontece o desabrigar e o desocultamento, onde acontece a aletheia” (p. 381). E a pergunta principal é: “A questão da técnica é a questão acerca da constelação na qual acontecem o desabrigar e o ocultamento, onde acontece a essenciali-zação da verdade. Contudo, de que nos serve olhar para a constelação da verdade?” (p. 394). É preciso um esforço intelectual e uma interpretação filosófica para saber o que significa tudo isso. A introdução ao artigo, de Leopoldo e Silva, ajuda-nos a decifrar A Questão da Técnica, ele afirma que pensar a essência da técnica além dos escopos metafísicos e epistemológicos seria pré-requisito para poder superar o viés exclusivamente humanista da tradição filosófica (p. 369). E como isso se procederia? Concebendo o produzir em sentido lato, como faziam os gregos, isto é, vendo a própria natureza (physis) como um produzir (poiesis). “Vê-se então o que teria de reducionista a interpretação em termos de relação entre meios e fins, no sentido estritamente instrumental. Isso nos leva a observar a relação que existe entre poiesis, techné, episteme e verdade no sentido de desocultamento – aletheia” (p. 370). Grande exemplo disso é o florescer da flor.
Heidegger nos relembra a teoria causal aristotélica, na qual são quatro as causas que regem o universo: a material (o que é), a formal (como é), a final (para que serve) e a eficiente (quem age). Ele argumenta que a mais importante é a última, pois esta “determina de modo exemplar toda causalidade” (p. 377). E quem seria o responsável por ela? Tanto a própria natureza quanto o homem. Mas na civilização é o produto deste o mais valorizado. É ele quem visualiza, escolhe, pondera, intenciona, prevê e finaliza a coisa. Para o filósofo ter esse fim em mente é o que compromete todo o sistema. O logos deveria levar à luz a essência das coisas, isto é, retirar o véu que cobre tudo que existe, mas isso não costuma ocorrer. A culpa é justamente da técnica, uma vez que ela determina os meios de como se deve proceder geralmente. Portanto, a causa eficiente está comprometida com um destino que não é o dele, mas da história. A ação do homem é meramente a causa secundária dos efeitos determinados primordialmente pela técnica, que esse homem não consegue captar a essência, restando a ele reproduzir o que está dado. A solução a essa existência à mercê dos outros (moral e técnica predominantes) é sugerida mais à frente no texto.
Onde o filósofo alemão queria chegar com esses rodeios metafísicos? Basicamente no conceito-chave de sua filosofia: o Dasein. O Dasein vincula o existir no mundo com a verdade, mas essa verdade deve ser entendida como aletheia (desvelamento, desabrigar), e não no sentido corriqueiro e usual da ciência – verdade aprisionada e demarcada para fins de verificação com os precisos e infalíveis instrumentos da técnica. Desviando o foco do conhecimento para a origem do mesmo (entre os gregos), Heidegger argumentou que mesmo nas ciências modernas subjaz algo que os cientistas ignoram, ou preferem não ver, que é a técnica como processo natural das coisas, não como uma primazia humana, exclusividade que fez o homem se arrogar dono do mundo. Comprometido com a técnica os modernos só fizeram desabrigar, levar à frente, o que não deveria fazer sentido ao Ser. Mas é claro que Heidegger não se expressa nesses termos, ele diz da seguinte forma:
“O desabrigar que domina a técnica moderna, no entanto, não se desdobra num levar à frente no sentido da poiesis. O desabrigar imperante na técnica moderna é um desafiar que estabelece, para a natureza, a exigência de fornecer energia suscetível de ser extraída e armazenada enquanto tal” (p. 381).

O homem apenas acelera um processo que acontece e sempre aconteceu por aí, a diferença é que a natureza é indiferente aos resultados; os animais e as plantas não dão valor nem se vangloriam por suas obras, enquanto o homem valoriza aquilo que para o restante do universo é mais um fruto a ser transmutado posteriormente. O problema é que para os modernos esse fruto perdeu sua finalidade, muitas vezes é descartado, apesar de ter sido reservado/estocado, ou então se tornou um fim em si, numa busca frenética por mais, como a ganância por dinheiro, sem perguntar o porquê de tal acumulação. Nesse fluxo o homem se aliena, deixando também de se perguntar por que age, vive e consome.
Assim como não se olha mais para o rio, mas para seu potencial energético, não se olha para o homem inteiro, mas para sua força produtiva, nem para a sociedade, mas para seu mercado consumidor. Heidegger chama isso de “um extrair na medida em que explora e destaca” (p. 382). Ora, nada mais moderno que rotular, o que na verdade é servir-se da figura de linguagem metonímia para entender o todo. A partir dessa objetivação de tudo que lhe é externo (com fins utilitaristas, hedonistas e rentáveis) o próprio homem se objetiva, coisifica, perde sua essência, resignando-se ou, pior, estimulando-se em ser encomenda dos outros. Também deixa escapar a essência da técnica, uma vez que só enxerga os efeitos desta e não o que de fato ela é. Nessa visão de mundo há uma verdade, mas é apenas a verdade da técnica moderna, escrava do sistema, tanto o capitalista quanto o socialista, porém a poiesis não é mais referência para transformação. O grande motivo para intervir no mundo passa a ser ditado pela própria técnica, tipicamente compulsiva e dominadora. Por fim, a visão mística e artística do mundo se perde, pois esta precisa de paciência, tempo e entrega às forças externas, enquanto a técnica moderna deseja tudo controlar e acelerar. E esse desenrolar não é casual, é algo inevitável.
A esse chamado da técnica o homem moderno dificilmente irá conseguir escapar, a menos que desenvolva seu senso crítico. Em outras palavras e com outro objeto de estudo Heidegger elaborou a mesma idéia da Escola de Frankfurt, em especial dos autores Adorno e Horkheimer. A alienação que o sistema produtivo impõe ostensiva ou sutilmente, mas todo dia, ao homem produz o resultado de uma massa de indivíduos controlados e aliados do poder. O interessante é essa entrega passar a ser feita sem questionamento após um período, não importando se a vida desses seres é satisfatória ou não, pois vale mais a inclusão social e a obediência do que a paz de espírito. Submersos à técnica todos esses incautos e cegos sequer seriam capazes de entender para onde se movem. Querer ser mais uma peça do tabuleiro anula a possibilidade de acabar com esse jogo.
A essência dura, ou melhor, perdura. Todo sistema tem ideias (eidos), algumas vingam, outras fracassam, mas para esse sistema ser considerado vitorioso precisa que a maior parte de suas ideias dure o máximo possível. Vivemos sob a égide de vários sistemas (capitalismo, liberalismo, democracia, republicanismo, cristianismo, etc), eles definem o modo de pensar e se comportar da absoluta maioria de seus “discípulos”, que não tem muita escolha a não ser seguir o que for conveniente e supostamente verdadeiro. A esse sistema Heidegger cunhou o termo “armação”, que seria uma forma de paradigma, moral ou referencial; uma estrutura a qual dificilmente alguém deixaria de acompanhar. O perigo inerente a ela é que ela carrega essências, coisas que perduram, o que só acontece porque suas ideias são consentidas. Mas se o indivíduo não teve a liberdade de consentir a elas, porque ele deveria abraçá-las? Porque o sistema é maior e deve vencer. Só quem realmente se pôr em desafio, pensar criticamente e agir autenticamente poderá escapar dessa alienação e conseguir viver digna e plenamente.
Sobreviver não basta à vida. Enquanto o homem não tentar escapar de seu micro-cosmos para procurar se situar no mundo ele ainda não estará apto a ouvir o chamado poético da natureza. Daí vincular o dasein com a arte, o belo, o autêntico. “Onde quer que o homem abra seu ouvido e seu olho, abra seu coração, liberte-se de todo o seu pesar, ao imaginar e operar, ao pedir e agradecer, em toda parte já se encontrará levado para o que está descoberto” (p. 384). Pode parecer coisa de hippie, mas essa é a abertura ao ser. Ela só seria possível quando o homem soubesse das armadilhas de sua sociedade, da tirania da técnica e dos fluxos extravagantes da própria natureza, algo que falta ao sujeito moderno, deveras enfraquecido e imerso no pensamento cartesiano, kantiano e positivo.
Estar mais próximo da técnica primordial, isto é, daquela que a própria natureza realiza ainda hoje em dia, apesar da influência do homem se fazer notar em quase todos os recantos deste planeta, seria adquirir autonomia, podendo ser livre para pensar e agir de acordo como os desígnios de uma metafísica sem grilhões, isto é, da arte que anuncia a essência do ser a fim de contemplá-la e está aberta a múltiplas interpretações e atualizações. Isso passa por abandonar parte dos ditames da Razão, não para se tornar um irracionalista, mas adotando uma proposta pós-metafísica, que “abre possibilidades de um outro modo de pensar, que não recuse a técnica, que não alimente nostalgias, mas que faça da técnica que nos domina uma questão a ser enfrentada com a liberdade possível” (p. 373). Aquele que não estiver bitolado e hipnotizado pelos atrativos, encantos e tentações da técnica e ainda se sentir desafiado ao desabrigar produtor exortado por Heidegger, então estará pronto para encontrar a saída, para experimentar o Dasein.
Conforme dizia Nietzsche “quando você olha demais dentro de um abismo, o abismo olha para dentro de você”, ou seja, para se salvar do niilismo de um mundo tecnocrata é preciso tanto conhecer esse perigo imenso – o de se anular em prol do vazio – quanto superá-lo. E para Heidegger essa superação se dá pelo questionamento constante e perspicaz acerca da essência da técnica, bem como pela meditação artística que desvela os fundamentos do ser, não de forma técnica (pelo método científico), mas pela desconfiança nessa verdade que dizem ter descoberto e que deve ser legitimada por todo bom cidadão pensante. Aqui temos a crítica heideggeriana ao humanismo, muito mais adestrador que emancipador do homem. Por este ser alguém que representa o mundo (fenomenologia) e tem vontade de se afirmar nele (existencialismo), logo esse processo só poderia se dar através do “conhece-te a ti mesmo” e da expressão da subjetividade, algo sadio e natural. Contudo, o humanismo, na visão heideggeriana, aprisiona esses anseios, ou seja, reprime a humanidade, em prol de ideais como a verdade, a justiça, a igualdade e a democracia. Decorre disso tudo o tal “resgate do ser”, bem como a salvação do homem.

Referências

Leopoldo e Silva, Franklin. “Martin Heidegger e a Técnica”. Scientiæ Studia. São Paulo, v. 5, n. 3, p. 369-74, 2007. 

HEIDEGGER, Martin. “A Questão da Técnica”. Scientiæ Studia. São Paulo, v. 5, n. 3, p. 375-96, 2007.  

P.S.1: Por ser tão sério, sem figura(s) desta vez.
P.S 2: Se vc não lê Heidegger só por saber q ele foi nazista, tá na hora de mudar seus conceitos.

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