9 de dezembro de 2013

Uma concepção do poeta

(ou o que entendo por metafísica de artista



Sem o apolíneo e sem o dionisíaco restaria só o feio, o grotesco e o horripilante, e por vezes encontramo-los por aí, espalhados pelo chão como fragmentos perdidos dos produtos de um comerciante chinês fracassado e alucinado, já em processo de desrazão, isto é, prestes a adentrar num hospício qualquer, desses de beira de parque. Se essas bizarrices valem a pena serem contempladas? Divirta-se e depois me conte como elas são, ou apenas lhe parecem, fenomenologicamente falando. Apenas considere a possibilidade (ok?) de eu sorrir ironicamente de volta a você. Anote: tentar é melhor que reclamar.
Há baixa e alta cultura, como existem baixas e altas mulheres e elevados e rebaixados automóveis, mas nada que implique em correlação diretamente proporcional de fonte de prazer, pois é tudo uma questão axiológica e de experiência de vida. Se parece o máximo ficar indo de bar em bar bebendo e sorrindo como o cara mais contente e sortudo do mundo, azar o dele, só os idiotas se acham felizes o tempo todo. Para ser realmente feliz é preciso de um parâmetro de comparação, o que no caso significa ter passado por tristezas, amarguras e melancolias. É lá e cá. Toda rosa tem seus espinhos e toda estrada tem suas trepidações; quando não há curvas nem barrancos o sono chega rapidinho. Benditos desalinhos!
Razão e emoção, vulgarmente falando, devem ser aliadas para que um indivíduo possa declarar-se sadio; ambas em excesso – e ao mesmo tempo é claro – fará desse sujeito alguém mais altivo, podendo diferenciar, enquadrar e selecionar entre acontecimentos diversos, tanto os internos quanto os externos – algo que os demais desafortunados restariam inaptos para identificar, sua baixa cultura os resume em marionetes do sistema operante e dominador. Alguém se lembrou do conceito marxista de alienação? Quem for incapaz de abstrair que se ferre, apesar do materialismo imperante ver com maus olhos os sujeitos fantasiosos, deveras patéticos, afetados e malogrados em relação aos donos da turma, com séquitos a seus pés e carrões na garagem. Falar demais tem lá suas vantagens, mas é tão frágil que exige que jamais se pare de falar, especialmente de se vangloriar. O sensato fala o que, como e quando for necessário, e sempre ouve mais que diz.
Pose, imagem e futilidades, isso passou a ser bacana, afinal consegue-se realizar as próprias vontades, seja através do contato direto, seja pelo mundo virtual, com o objeto de desejo, o sonho de consumo; coisa que não passa de persistente ilusão, pois não há reflexões sobre o valor desse objeto, portanto o desejante torna-se presa do desejado. Nada contra essa submissão, a crítica é por esse sujeito julgar-se top, vip: um pouco de desilusão o traria para a realidade, quem sabe pela primeira vez na vida. Na modernidade líquida transgressor é quem se dedica exclusivamente por uma pessoa e brocha se nem ele e nem a outra se amarem. Devoção a uma simbologia única. Mas somos ensinados e estimulados a abrir demais a cabeça e a beber de várias fontes. Então, esquecemos de quem somos ou fomos.
Tudo isso seria algo transcendental, concordo, contudo o resgate de uma dose de metafísica não faria mal a ninguém. Alguém irá discordar de mim por esse apelo a algo mais que o mero usufruto das mercadorias que todos nós nos tornamos? A fim de ter autonomia, não ser a vítima neurótica que vive tagarelando e procurando por bodes expiatórios ridículos para compensar a frustração por ser tão néscio ou ignóbil ou pusilânime (palavras bacanas). É ofensivo? Ora, às vezes é tão bom baixar a bola. Ir além do ego e não decair em moralismos. Abstruso? Confundir-se num mundo confuso é uma tentativa de inverter os sinais, ou seja, uma possível salvação entre os escombros do futuro, essa miríade de paraísos perdidos dos sujeitos prepotentes, sempre carentes, pois não há aprovação que lhes satisfaça.
Assim como o homem só ensina bem o que para ele tem poesia, o homem só ama incondicionalmente quem desperta nele constantes poesias. Mas isso é muito raro, de perto todos tem defeitos e só uma musa/deusa é capaz de tal proeza, pois perfeita e estável num pedestal de cristal ou num podium olímpico. Aí entra o poeta para buscar inspiração para viver solitariamente ou ao lado de quem for. Alivia saber que há uma semi-divindade para devotar suas composições e seus sentimentos sublimes. É preciso praticar a sublimação para esse sujeito não se resumir ao prazer solitário nem se ferir demais com tal amor não correspondido – ou alguém sente-se bem com a rejeição eterna? Desistir não é possível porque o prazer foi intenso demais para ser abdicado, assim como o próprio sofrimento torna-se algo diferente após ter sido ressignificado por repetidas demonstrações de afeto elevadas esteticamente, se não pela forma inovadora, artisticamente falando, pelo menos através da expressão de uma subjetividade que luta para se afirmar e não decair/adoecer.
Viver o que é dito, viver como deveria ser, viver apesar da pressão contrária e da necessidade de compostura e adaptação ao meio. O poeta encontra-se nesse conflito perpétuo, quer realizar as fantasias, mas se frustra porque o mundo não é tão belo quanto seus iluminados olhos percebem nem as pessoas em geral têm uma concepção poética desse mundo infausto. Melhor delirar um pouco do que render-se inteiramente à burocrática realidade. Apesar de seu corpo invariavelmente envelhecer a cada dia, sua alma poética renova-se a cada contato com as musas, rejuvenesce aceder ao mundo platônico, desde que provisoriamente. Sem a música viver seria completa e irremediavelmente errático, assim como sem substâncias ou hormônios que distraem o vigilante e amolador ego viver seria insuportável, exceto se nos tornássemos máquinas perfeitamente racionais.
Por um pouco de provocações, ironias e esculachos, é somente isso o que pede o espírito dionisíaco dos poetas, que tanto leem e zelam pelas palavras corretamente encaixadas nos versos, ainda que soltos e subversivos. A boa obra de arte abarca esses dois lados, e que me perdoem os críticos. Dedicar a vida à arte custa esses espasmos incompreensíveis para os meros mortais defensores da etiqueta, por eles o artista acaba taxado de excêntrico ou, pior, de porra louca. Ora, jamais espere correspondência por uma dedicação fajuta, pela entrega feita pela metade; colhemos o que plantamos. Primeiro, projete o seu melhor, e posteriormente aguarde. Poderão vir tapas como retribuição, mas a boa consciência restará leve, a outra parte é que foi ingrata. A poesia deve ser escrita com sangue, a partir das entranhas, portanto o amor também deve ser visceral. Crer num Eros temperante como mediador do desejo carnal e da ascese simbolista. Aqui e agora importa muito, pois o estado de espírito não volta; sentimentos represados poderão entalar na garganta até a pessoa perder a voz, para nunca mais ser um artista, e no fim morrer, sem dúvida de modo mais triste. Portanto, perder em definitivo o acesso às figuras míticas é ficar concebendo as coisas de forma mecânica, sem possibilidade de redenção.
Só a arte salva. Só um artista é capaz de se salvar. Isso é acessível a todos. Assim como o amor. Porém, poucos querem ser autênticos e, ao mesmo tempo, devotos. É tão fácil seguir a corrente, imitar o padrão, fazer exigências, e, o que é pior, surtar quando suas expectativas não são cumpridas. Viver é andar numa corda bamba, é suportar, e até mesmo, demandar, oscilações; a coragem e a fortaleza não são virtudes vulgares. E o vulgo? Sobrevive.


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