31 de janeiro de 2014

“Vai vir o dia quando tudo que eu diga seja poesia”


Kamiquase


O polilíngue paroquiano cósmico alardeia:
meia palavra basta
e meia piscada basta
mas na vida ninguém paga meia.


Anos distantes

    percorre um ano-luz
um percurso infindo
    onde a luz do sol reduz.

quão longe vai um ano-treva?
    abocanha imensidões
espaços e a vida cega?


Eu que vaticino

Você diz pra mim bem baixinho
meio de lado, a conta-gotas
“ai, você é mestre nisso
de cortar o clima”
Acha que assim me vaticina.
De surpresa lhe encho de beijinhos
e agora não me sai mais de cima.


Inversão

      Dita o monge um acre
Sua capa é seu disfarce
      Nele acredita um basbaque
E ignora o próprio desastre

      Qual filósofo-eunuco
cansado do inefável tédio,
      do infértil lusco-fusco,
inverte o alvo do mistério.


Falhas

A percepção falha
    Bradamos feito gralha
Queimamos feito palha
    Típico dessa nossa
Gentinha canalha


P.S.: Por tudo que disse e fiz, sinto muito, senti muito. Sentir é muito... lento.


29 de janeiro de 2014

“Quem parece são não é e os que não parecem são”


O agá

eu sou agá
de homem, hora, história
de hidrogênio, horta, histeria
de hércules a agamenom.
sou herói sem a galera
hiperbólica agachada
a hilarizar os hidrófobos.

eu sou agá
de hábil e agatino habitante
ou de hipocondríaco hibernante?


Largo e ao Lago

olha só, quando me largo é que me alargo
até de lado o lago parece alado
logo sobre ele eu voo, à toa e dopado,
então um soul entoo: o som do atordoado


sendeirice

se os dedos doessem
se doar ele pudesse
qual nada, seu deus apodrece.
apresse essa prece
senão o doente adoece
o padeiro padece
e o pedinte apetece.

em paralelo descem os pedidos
já amarelo aparece o fedido
parado parece arrependido
e sonsas reticências tece –
sua senciência anoitece.


Mágoa

Esta mágoa
Estou certo, não é boa.
Sai daqui uma tromba d’água
ela em meu peito lampeja,
rebenta e trovoa.



 P.S.: É possível que eu publique mais uma leva dessas poesias esdrúxulas. No caso, a inspiração é leminskiana.

23 de janeiro de 2014

Um papo cortês entre um crente e um ateu


A conversa a seguir não é tão incomum, só mais do que deveria:
- Fala aí pra mim, em que você acredita, afinal?
- Eu acredito no que existe, ué.
- Que cínico! Quer dizer que eu acredito no que não existe? Eu acho que existe e daí? Ham? Ah, e como você vai garantir a existência de algo?
- Calma, eu não quero acabar com suas crenças, somente acho que são pessoais e não universais. É o seguinte, à exceção da matéria tudo pode ser coisa da nossa cabeça. Dizem até que o próprio mundo é imaginação, mas aí é solipsismo, maluquice. Porém, sem contra-argumentação.
- Corta essa, o quadro que eu vejo ali na parede pode não estar lá, mesmo você me confirmando que está? Eu to vendo, bicho!
- É assim mesmo, porque eu posso ser uma resposta forçada sua.
- Esse papo é muito Matrix. Aquilo é ficção, mó viagem dos caras. A realidade é bem concreta. Assim como a presença divina. Você pode ignorar, mas Ele age em você.
- Pô, esse filme é sensacional. Preste mais atenção na história, nas cenas, nos diálogos, esqueça um pouco das lutas e do tiroteio. Leia as teorias pela internet. Há muita coisa escondida. Muitas referências para cinéfilos e muita filosofia para curiosos, além, é claro, de espiritualidade.
- É, não entendi direito a parada. O maluco fica voando para lá e para cá, leva mais porrada que o Rocky e não morre, para bala com a mão, tudo porque é o escolhido. Aquilo eu sei que não existe. Você vem me dizer que Matrix é mais crível que onde estamos?
- Não é bem assim, né. Eu sei que é ficção e uma obra complexa realizada após muita leitura e inspiração. Só digo que não é essa viagem toda não, quem for atento retirará lições.
- Tá, um dia vou rever essa merda. Agora, me explica essa história de tudo ser coisa da nossa imaginação. Você pode não sentir, mas eu sinto a presença do Senhor. Ele existe, sim!
- Isso é fé. Todo esse sentimento além de ser difícil de explicar é impossível de convencer a quem não tem esse acesso. E não dá para ter acesso a algo do mundo fora dos cinco sentidos. O tal sexto sentido é coisa de Cavaleiros do Zodíaco, muita adrenalina, porém infantil. Eu posso dizer qualquer coisa e você pode acreditar ou não em mim, vai depender mais do meu poder de convencimento. É assim que nasceram as lendas, os mitos, os dogmas, mais pelo palavrório que por evidências. O pior é que eles continuam sendo fabricados, devido ao excesso de gente sem pensamento crítico e cético. O adulto não pode continuar vendo o mundo como criança, um moderno não pode insistir em ver o mundo como um medievo. Conteste, destrinche, rebata, seja implacável... e humilde. Não é porque a embalagem é bonita que o produto é bom, muito menos que é durável. A aceitação geral de bobagens é culpa do sistema educacional que mais manipula e hipnotiza do que emancipa.
- Rá! Eu já não tô acreditando em você. Eu consigo duvidar. Tenho minhas convicções e não é só porque meu pai me ensinou, eu li e vi com meus próprios olhos. Fala sério, temos evidências, registros, relatos idôneos. Olha o mundo, como poderia ter surgido do nada? É claro que alguém o criou. Não sou tão bobo, achando que Deus teve a intenção de fabricar item por item, mas o básico ele fez, depois as coisas se misturaram e deu no que está aí. Como ele é eterno, ninguém o fez, Ele simplesmente é. E Ele retribui quem lhe segue, por isso que eu to bem de vida e você veste esses farrapos.
- Menos mal você crer na mudança, no fluxo, na transformação de estados. A química você aceita. Mas é ruim esse preconceito contra os descrentes. Assim como tem pobre herege, tem pobre fiel, assim como tem rico devoto, tem rico ateu. Enfim, a física explica quase tudo, e nunca estará completa. É assim que se funda o conhecimento, e não me venha com essa de que a verdade é exclusiva do grande criador. A física é uma ciência recente, muito mais que quase todas as religiões. Ainda não deu tempo para o povo ser exclusivamente fisicista, mas já tem muita gente que é. Veja, o Big Bang é um fato incontestável como a evolução das espécies e a lei da gravidade. Descobriram o DNA e ouviram uma tal de CMBR. Após o mega estouro, as partículas se combinaram, teve uma inflação cósmica após cerca de meia milhão de anos e bum, o Universo se expandiu e formou as galáxias, a vida e tal. O som veio desse começo formidável. Mas aí você vai me perguntar “e antes dessa explosão, o que havia?” Isso é um problema, difícil de solucionar, há várias teorias, do eterno retorno, por exemplo, que o universo inexoravelmente vai e volta. Porém, eu creio que havia uma particulazinha ínfima eterna, estava lá, totalmente estável. Lembre-se, não havia tempo nem espaço, era só ela. Por algum motivo, que não é difícil conceber, ela decaiu ou perdeu seu equilíbrio e, pronto, o mundo surgiu. Ouça, é preciso estudar, mas as pessoas preferem a interpretação mais usual e banal, como fazem as crianças. Satisfazem-se até acabarem as perguntas espinhosas.
- Espera aí um pouquinho, os físicos não sabem de tudo, eles mesmos vivem em polêmica. Um supera o outro, que já não serve mais. Einstein destruiu Newton que eu sei. A gente estuda esse cara só para aprender a fazer continhas. Os físicos fodões nem ligam mais pra ele, lá do começo do século dezoito. Em cem, duzentos anos está ultrapassado. Aí você vê, essas ideias científicas vêm e vão, mas as religiosas sobrevivem por muito mais tempo. Isso prova qual é a mais forte. Não é porque há disputas teológicas que Deus é menor, Ele é um só, e grande. Jesus, Buda, Maomé e vários outros profetas o pessoal louva até hoje. Ou vai negar que eles existiram e mudaram a história? E vai continuar assim enquanto o homem existir. Assim como os milagres.
- Milagre não existe, é má compreensão dos fatos e matemática ruim. Mas concordo que sempre haverá cultos a personalidades e a deuses, só que isso não ocorre por motivos racionais. É por interesse pessoal e social, bem como por força do hábito e por medo, dos tabus, dos pais, do juízo final, do estranho, etc. Por outro lado, a ciência não está interessada em questões existenciais, místicas, subjetivas, ela quer resultado prático. E lida com fatos, experiências, cálculos. Somente a ciência pura, objetiva e estritamente lógica é ciência de verdade (hard). As ciências humanas (soft) são tentativas de compreender como o homem pensa e a sociedade opera, no máximo fornecem tratados e conselhos; não podem assegurar definitivamente se é melhor viver no mato ou na metrópole, dentro da igreja ou num laboratório, é muito relativo para tamanha pretensão. Entende que há graus de objetividade? O discurso teológico está no degrau mais baixo, por isso demanda menor esforço intelectual, depois vêm as explicações racionais, mas não metódicas o suficiente para serem científicas. Estas são indispensáveis porque nem tudo a ciência vai responder, existem questões inverificáveis, nem por isso questões tolas, como “qual é o sentido da vida?” ou “para quê formar uma família?” ou ainda “sorrir é melhor que chorar?”, “qualquer prazer é preferível a qualquer dor?”, e por aí vai. Por fim encontra-se a ciência positiva, que eu já expliquei por cima em que consiste. Ela é interessante porque, apesar de ser feita pelo homem, esse é um fato casual, ela não precisa ser exercida por nós, mas por qualquer ser dotado de lógica operacional. Quando surgirem máquinas inteligentes, talvez elas ocupem nosso lugar ou então dividam o espaço acadêmico conosco. Logo, a ciência é feita por e para entes lógicos. É por isso que enviamos mensagens pro espaço em busca de ETs dotados desse padrão de pensamento. Quem sabe eles existam e cooperem em prol de uma ciência cada vez mais avançada.
- Porra, tu fala demais! Quem é que aguenta um chato como tu? Aliás, não concordo com essas divisões... Ah, você ta ficando louco. Já ta falando em ET, daqui a pouco vai dizer que foi abduzido e recebeu ordens para alertar o povo que eles estão chegando: “a verdade está lá fora”. Pff, papo furado. É mais fácil crer em extraterrestre que em Deus? Está ficando difícil conversar contigo, hein. Tudo isso pertence ao Senhor, se ele quiser, saberemos, senão ficaremos contentes com o que temos. A religião abarca tudo isso, explicações racionais, científicas e, sobretudo, a fé. Cara, sem fé não dá para viver, não sei como você consegue. Quando eu fico mal, pensando em matar alguém ou desistir de tudo, busco apoio na fé e tiro de lá forças que eu nem sabia que tinha, enquanto você ta sempre com essa cara abatida e branca. Já sei, você é um vampiro, por isso não pode ver uma cruz que dá no pé! É pra eu proteger meu pescoço?
- Hunf, seu piadista. De fato, a fé dá esperança. A ciência é niilista, tende a acabar com a graça das coisas; corta pela raiz a fantasia, a brincadeira, o barato de acreditar em superpoderes e no sobrenatural. Justamente porque há coisas impossíveis é que elas não existem, isso é fruto da nossa idéia errada dos eventos externos. Assim como dois com dois não pode ser diferente de quatro, tudo que não provenha da matéria não pode existir. E Deus não pode ser exclusivamente matéria, se fosse teria que ter outro nome. Não seria poderoso nem diferente de mim, você, aquela planta ou este prato. Os átomos e as partículas subatômicas são a estrutura do cosmos. Como eu disse, antes de existir toda uma física para explicar como as coisas funcionam havia mitos e lendas, das mais diversas. Muita gente caía na onda, até porque nem sabia como contestar. Ainda ser assim é pegar o atestado de ignorante incorrigível e erguê-lo com um orgulho de panaca. Basta uma ida à biblioteca ou uma busca na net para verificar que o universo é bem explicadinho, quase tudo se encaixa, exceto alguns detalhes e a teoria do mundo macro com a do micro. Não vou adentrar nesse ponto porque é muito técnico, basta eu dizer que eles operam de forma diferente, contudo não a ponto de escapar do materialismo. Isso tudo pode ser crença minha, afinal, pode haver algo além da matéria, que um dia (ou não) venha a ser descoberto, mas não é fé. Crença envolve conjunto de argumentos racionais, que as evidências e as teorias endossam, enquanto a fé é acreditar sem ter de passar pelo crivo da razão. Não consigo ser assim. É por isso que religião (que é baseada na fé) e ciência (que é baseada na razão e na empiria) não  dialogam. As tentativas de uni-las ou são forçadas ou servem para aplacar a curiosidade dos fiéis em tempos deveras racionais.
- Você mesmo admitiu que esse monte de teoria rebuscada pode estar errado, que no fim de tudo podem ter sido esforços em vão. Se tudo não passa de crença porque não crer no que é mais confortável e aceito socialmente? Tenho certeza que sofro menos que você e gasto menos tempo com leituras e pensamentos extenuantes. Relaxa e goza, tio.
- As implicações práticas de uma sociedade ignorante é dar cartão verde aos mais espertos usurparem dos incautos crédulos. E se apenas uma elite for detentora do saber, ou pelo menos dos meios que expões os saberes, estaremos à mercê de suas vontades. E pode crer, a corrupção é muito sedutora quando a impunidade é quase uma certeza. Não dá para se relaxar uma vez libertado da ignorância. Esta pode ser uma bênção, mas é por pouco tempo, em breve algum sacana irá acabar com sua festa e você não terá armas para se defender. Difundir ciência e aliá-la à ética evitaria a imensa maioria dos males cuja culpa é do homem, seria o mais perto de paraíso que poderíamos chegar. Todavia vivemos bem o contrário, e quando quase todo o povo é tapado o perigo é iminente, o coronelismo se baseava nisso, e o populismo usa da mesma tática. Se não educarmos direito a galera essa história perversa vai se repetir indefinidamente, até um Nero trombar com um Stálin e um jogar bomba de hidrogênio no outro com a humanidade no meio, sendo ela praticamente extinta, se porventura algum grupo vier a sobreviver após o inverno nuclear.
- Ih, começou a paranoia, a Teoria da Conspiração, o fim do mundo.
- Não é. De novo recorro a Matrix, a pílula azul é não querer retirar a máscara e manter-se no mundinho do videogame, sofrendo lavagem cerebral sem nem se dar conta que não se vive, pois apenas se pluga à Central. A pílula vermelha é aceitar os riscos da descrença no conto de fadas e sofrer com as dores da carne sendo dilacerada e comida por bactérias diariamente, porém é estar livre dos opressores. Entre a feliz segurança idiota e a carrancuda liberdade miserável opto por saber das coisas e encará-las. A verdade é ingrata, uma megera, faz seu séquito mendigar na esquina e raramente honra as vitórias com uma medalha. Mas quem disse que o amante dela é egoísta? Prefere conceder ao maior número de pessoas os benefícios de saber quem é ela, demandando apenas iniciativa e esforço intelectual por parte delas. Enquanto isso o rebanho sorri e espera, a cada comando dá um giro de cabeça e uma ruminada. Sobreviver é moleza, viver é perigoso.
- Bah, depois dessa eu vou dormir, não sem antes orar a Deus para zelar por sua alma pecadora e melancólica e para abençoar a minha ainda mais, de seu servo compreensivo e misericordioso.
- Pois é, não me acompanham os deuses, só os heróis.
É o fim do papo, mas não do tema.


P.S.: Aos leigos, mas curiosos, indico lerem Carl Sagan.

13 de janeiro de 2014

A Ilusão das Possibilidades

Ficar junto por amor, por vontade própria, por entrega sem coação, sempre foi complicado, algo excepcional. Se antes um casal se mantinha por um longo período (não raro até ambos morrerem), era mais por dever cívico, por tradição, por pressão social, aquela vergonha de ter a reputação maculada. Sem falar no mito da família sagrada e na devoção aos pimpolhos. Nomes para isso não faltaram, o ser humano é um bicho muito criativo. Só que chegou a liberação sexual: o jogo gradualmente mudou de figura e as gerações recentes nem se constrangem em transar antes do casamento (à exceção dos fanáticos religiosos). Portas se abriram, tabus foram quebrados, recalques foram esmagados – o rebu todo em busca da primeira vez e do primeiro orgasmo. A promiscuidade cobrou seu preço. Quero focar em apenas um: a ilusão das possibilidades (como indicado no título), no que se refere ao lado positivo de ter uma margem de escolha que aumente as chances de ser feliz.

Atualmente, costuma-se pensar que liberdade é assunto encerrado. Muitos sequer refletem sobre ela, não é à toa, pois as prateleiras repletas de produtos com marcas, formatos e cores diversas nos dão a opção de preferir A, B ou C, ou ainda de ignorá-los, substituindo-os por algo semelhante e de usufruto mais satisfatório. Não pretendo esmiuçar o fetichismo por trás do consumismo nem a compulsão por compras e novidades do mercado, isso renderia uma tese inteira (uma pesquisa e voilà, vários livros e artigos à disposição), quero simplesmente resvalar nesse aspecto materialista para compará-lo com as relações afetivas, em especial com a intensidade e a duração delas. (Talvez eu esteja repetindo o que Bauman escreveu em Amor Líquido, mesmo assim, exponho minhas ideias.)

Agora, algumas perguntas fundamentais. Se nós somos bombardeados com avisos, selos, imperativos, mensagens, slogans, notícias e afins, como escapar desse evidente jogo de sedução? Como julgar-se livre de fato? A emancipação passa em primeiramente reconhecer-se como indivíduo singular e posteriormente em identificar o senhor/opressor. Mas quem é você e seu chefe/titereiro? Mas como negar interesses maiores em prol de um sistema (ainda que obscuro)? Como resistir à correnteza de convenções? Toda aglomeração de pessoas tem essa característica de restringir comportamentos, diferindo-se em seu modus operandi. É preciso muita força de vontade e sapiência para se autoafirmar mais ou menos rebelde ao status quo. Na sociedade da informação o excesso de estímulos e de ordens para cambiar não afetaria fatalmente outras áreas, tidas como conservadoras e rígidas?  A vontade de mudar é um fato, senão a angústia e o tédio sobrevêm agudamente.

Os jovens serão massacrados pelos parentes e amigos se casarem cedo demais, seria adeus à carreira promissora, ao futuro glorioso e às levezas da juventude. Então adiam firmes namoros até o momento em que cansarem da farra, que julgarem sortudos por terem encontrado o(a) parceiro(a) ideal ou que chegarem à idade de tomar juízo – o que não significa necessariamente maturidade. Não é incomum encontrar solteiros convictos até seus 40 anos. Não é raro conhecer mulheres que não almejam engravidar. Não é nem um pouco difícil ver casais sem filhos. “Até que enfim podemos exercer nossa liberdade!” Será? E compensou? São mais perguntas sem resposta incisiva.

É o fenômeno do adiamento de planos estruturais em prol dos prazeres mundanos, prometidos rotineira e sutilmente por aí, ou por medo de comprometimento. Por isso chamei de “ilusão das possibilidades”. São tantas as tentações ao alcance das mãos e dos cartões que seria um crime (ou pecado se você for um cristão) deixá-las passar. Queremos sempre uma segunda chance para nos redimir das escolhas erradas. Ora, mas elas são inevitáveis. Porém, ao marrento errar parece tortuoso para conseguir dormir em paz, são poucos os que admitem suas limitações e fraquezas de bate-pronto numa conversa informal e displicente. Sendo assim, largamos facilmente nossos parceiros (em relação aos casais de algumas décadas atrás) ou convivemos com o medo da traição e do pé-na-bunda. Alguns se adiantam e sacaneiam logo para preservar o orgulho. Nesse cenário, rompimentos tornam-se corriqueiros. Basta pesquisar as estatísticas de divórcio.

Pelo exposto, compreende-se a noção de que o casamento tem que ser perfeito e os filhos, certeiros: rebentos mimados que jamais desconfiem de serem bastardos ou gerados sem amor, ou melhor, sem planejamento. Até esse momento sublime de povoar ordeiramente o mundo, muita energia deve ser gasta, muita experiência deve ser acumulada e muitos gemidos devem ser ouvidos. Pelo fato de sofrimentos serem evitados ao máximo, essa vida contemporânea parece inofensiva. Contudo, a neurose por coisas em seu devido lugar desmente o conto de fadas. O idealismo retorna, todavia sem metafísicas, apenas com resquícios do romantismo. Porque o amor que vale é o fornece garantias materiais, ou seja, aquele que harmonicamente se encaixa em rótulos, planilhas e listas pré-concebidas e que reflete ao público a vontade de ser um casal felicíssimo. Que bonitinho...

Porém, a sobrevida da miragem desse amor paradisíaco chega até o ponto em que não são identificadas rachaduras no castelinho, ou seja, quando o autoengano se desfaz cai o véu da perfeição e em pouco tempo o implacável desmoronamento do prédio que se pensava sólido expõe a fragilidade de tanto ordenamento. A busca pela verdade é incompatível com o uso de máscaras, mas como se relacionar sem elas? A razão e as emoções que se virem para coexistirem, daí a necessidade do autoengano. Por haver uma massa de jovens egoístas, vingativos, impacientes e ardilosos, fica explicada grande parte da imensa dificuldade de relacionamentos duradouros e sinceros hoje em dia.


Além da química, é preciso haver mágica nos olhos dos enamorados. Sempre foi assim. A diferença é que agora é mais penoso para o mágico iludir sua respeitável e sedenta plateia. O tenaz Cupido que continue alvejando sujeitos racionais e neuróticos, apesar dos japoneses labutarem em antídotos contra esse deus. É provável que o instinto embace a visão mais metódica, ainda que ocasionalmente, para fins de preservação da espécie. O homem é tão curioso por conhecer quanto é ávido por aventuras insensatas. É provável que continuemos chamando esse súbito amolecimento do coração de amor, mesmo sem guardar semelhanças com os clássicos do cinema e da literatura. Duas pessoas com cerca de 20 anos poderiam muito bem crescer juntas e bem como ocorria antigamente. Contudo, dores e prazeres intervêm sorrateira e incomodamente, o que leva a qualquer jovem casal balançar e questionar o amor um pelo outro. Ultimamente a esperança de que um outro alguém surja e seja melhor que o atual fala mais alto que outrora. Otimista por natureza a pessoa conclui: mudar fez bem. Quem sou eu para contestá-la? Mais um iludido. Espero.

11 de janeiro de 2014

Guitar Fool

Trajava camisa preta com estampa de banda, a da manhã era o Metallica. Ajeitou os cabelos bagunçados por dez horas de sono. Não cuidava direito deles, preferia tê-los ensebados a passar creminhos ou tratar no cabeleireiro, evitava este ao máximo. Achava que era coisa de baitola ficar indo ao salão. Era um contra-senso. Então tinha que ouvir diariamente “corta esse cabelo!”. Queria parecer headbanger, mesmo sendo há tempos fora de moda. Quisera ter vivido os anos 80 para, por exemplo, ter viajado para o primeiro Rock in Rio e se deleitar com um vinil de rock de algum amigo, que obviamente iria gravar por cima de algo mais antigo num K-7. Eram sentimentos que ouvira falar dos roqueiros coroas, mas nunca chegara a experimentá-los, pois em época de downloads piratas e You Tube qualquer velharia é facilmente acessada, baixada e ouvida. O único sentimento que podia repassar é aquele dos instrumentos transformados em zeros e uns e que chegam aos ouvidos. Ou a visão de algum clipe com malucos se jogando num mosh pit e com músicos agindo como juvenis.

Foi à geladeira e tomou um energético, era cedo e precisava acordar para tocar sua guitarra. Ficou ligadão, instalou os cabos nos pedais, regulou o equalizador do cubo e afinou uma de suas queridas guitarras. Tinha levado aquela branquinha recentemente ao luthier, que era mais mal encarado que ele, e precisava aproveitar as melhorias enquanto podia. As cordas pareciam mais macias, os dedos fluíam fáceis, só faltava instalar um captador decente para conseguir um timbre profissional. Apenas começou a dedilhar e o celular tocou. De cara, pensou ser o vizinho chato reclamando de novo da “barulheira do rock pauleira”, contudo era só um amigo seu contando alguma façanha galanteadora da noite anterior. Cortou a conversa logo, não queria saber daquela patifaria. Já tinha sua amante curvilínea. Foi à cozinha preparar um suco, afinal ficaria por horas em seu quarto, só com um ventilador batendo, portanto sentiria muita sede. Foi ao banheiro dar um mijão, para tirar um pouco da ansiedade; alongou-se na pia e estalou os dedos deveras calejados por tantos bends e arpejos.

Tirou a camisa, tocou alguns rock clássicos só para aquecer e partiu pro blu-blu. Estava na fase de querer tocar rápido, quanto mais veloz, melhor, pensava mais um tolo metaleiro sem sensibilidade musical. Malmsteen era seu ídolo. Ouvira pouco Blackmore para entender o que o sueco de fato queria transmitir com toda sua virtuose. O cabelo começava a cair na cara, prendeu novamente a juba, dessa vez mais forte, a fim de durar um longo tempo sem perturbar o fritador ruidoso. Capengou em mais alguns solos, por sinal sem ajuda do metrônomo, como convém a todo afobado e autodidata. Um pouco de disciplina e aulas num conservatório dariam a base teórica e musical que faltava a mais um instrumentista esforçado e fracassado nesse país saturado de músicos do tipo “faça você mesmo”.

Acabou a labuta autoimposta lá pelas 13 horas. Fumou metade de um bagulho que tinha guardado numa caixa de Fiat Lux. Queimar a planta queimava os nós que a prática da guitarra ocasionava em sua coluna. Esperou um pouco a onda passar e a fome chegar de vez. Brocadaço, preparou um macarrão com sardinha e um resto mortal de queijo ralado. Repetiu o prato, como convém a toda larica que se preze, e tirou aquela sesta de meio de tarde dos desempregados. Quando acordou, botou alto pra zoar umas bandas novas de thrash metal que trazia em seu pen drive e deu uma lida ligeira nos livros da faculdade.

Estudava mais por dever social do que por sonho profissional. Desde pré-adolescente queria mexer com música, e não com engenharia. Quando ganhou a primeira guitarra de seu pai, seus olhos brilharam.  Mesmo com a evidente falta de qualidade do equipamento e de talento, empolgava-se com o simulacro de roqueiro. Quando descobriu o heavy metal, não conseguiu mais ouvir outra coisa. Chegou até os limites do metal, com aquelas tosquices do black, splatter e gore. Acalmou-se no thrash e nas bandas mais clássicas. Se fosse possível, viveria de música, mas compreendeu que a realidade é outra, que exige uma formação extra para ganhar uma graninha que lhe permita comer e dar uma trepadinha de qualidade de vez em quando. Desistira de sonhar em ser rockstar com seu séquito de groupies chatas, mas no fundo sentia inveja dos posers de L.A. que pareciam moças, porém passavam o rodo geral; possivelmente em uma noitada comiam mais minas que ele comeria a vida inteira.

Agora a camisa preta era do Megadeth. Ignorava a treta do Mustaine com o babaca do Lars. Separava bem o lado pessoal do artístico. Apesar disso, enchia o saco da galera que ouvia hard rock e melódico. “Música de menina, porra nenhuma, escuta um som de macho, caralho”, vociferava aos que julgava posers e cúmplices do pop. Aquela velha picuinha do cenário, que não morre nem que seja para manter em alta o orgulho dos que optam por um dos lados, pensando que não se comunica com o outro, tão decadente e vendido, ou sem futuro. Posições políticas são tomadas mesmo que não se perceba. Arte pela arte é ilusão. Enquanto esperava no ponto o busão, fumou um Marlboro. Hábito adquirido de seus colegas. A garotada prefere arrefecer a ansiedade por ser pobre, largado e fodido do que pensar na agonia de passar anos na fila de espera por um transplante de pulmão. “Dez anos a mil e foda-se o futuro, meu prazer pede passagem, agora seja camarada e me passa o isqueiro”.

Assistiu à aula enquanto rabiscava alguns nomes e mascotes de banda. O professor enchia o quadro com aqueles cálculos e números malditos. Ele compensava toda a irritação no caderno. A sala de aula torna-se um inferno para quem não se esforça para aprender e fica boiando com as explicações do desanimado docente lá na frente. A responsabilidade por uma educação mais cativante e formadora de cidadãos é de todos. No intervalo, conversou umas bobagens sobre vídeos engraçados e assaltos no centro da cidade. Ficou sabendo de uma festinha que ia rolar nas redondezas. Voltou à aula para acompanhar mais um pouco da sonolenta exposição. Quando começou a pescar na cadeira, desistiu de ficar junto com aquela reduzida turma e resolveu se animar um pouco. Haja disciplina para uma quinta à noite.

Chegou ao local combinado para a reunião de estudantes em começo de carreira que sempre aparentam alguém já em fim de carreira, se houvessem mais rugas, calvície e cabelos grisalhos. Não há muita diferença entre ambos. De imediato, poucos desconfiam. Esperam alguma sabedoria dos mais velhos e alguma ingenuidade dos mais novos, porém a realidade não os corrobora. Ainda assim insistem no juízo errôneo. Para não se irritar com a música pop de fundo, o metaleiro bebia rapidamente a cerveja em lata. Queria amortecer o impacto da irritante audição de alguma forma ligeira. É incrível como ninguém fala sobre a composição e a intenção artística desses músicos entre os que se divertem com a pop music. Ele articulava isso para certos roqueirinhos ao redor, que assentiam de volta, sem aprofundar o assunto, afinal não tinham muito conhecimento a repassar. Imitam, é a praxe juvenil.

O pessoal estava deixando as emoções e a libido aflorarem na festança, mais pelo nível etílico da galera do que pela insinuação das garotas do recinto. Mas nosso estudante ainda sentia que faltava algo para se deixar levar. O ambiente estava somente ligeiramente menos enfastioso que as mil contas que seu professor ensinava semanalmente. Um cara magrelo deve ter achado ele com aspecto soturno e sedento por diversão rápida e da pesada e perguntou se ele curtia um pó. Ele respondeu “não curto essa porcaria que ta rolando”, pensando ter ouvido “pop”. O esquelético deu de ombros e saiu oferecendo o produto para outros mal acabados. Enfim o camisa preta entendeu do que se tratava e se retratara como o traficante. “Pô, cara, achei que tu tava falando de música e não de farinha. Quanto é?” Ele pegou uma trouxinha de trinta contos e foi cheirar do banheiro. Ninguém desconfiou.

Sentindo-se amigo da moçada, cumprimentava todo mundo e tagarelava sobre bagatelas. Puxou conversa com estranhos, coisa que nunca fazia, e até deu em cima de uma gatinha, que o rejeitou peremptoriamente. Deu mole para uma baranguinha, que ficou fã do cabeludo. Beijaram-se no muro chapiscado que perdia a pintura. Teve ideias de mil notas por minuto e cogitou escrever a inspiração no papel, mas daria muito trabalho, adiou o intento para quando chegasse em casa. Vislumbrou-se um guitar hero em cima de um chechelento palco num buraco daquele atrasado estado. Imaginou as expressões de assombro diante de tamanha virtuose. Os sons que entravam em seus ouvidos eram barrados pelos inaudíveis sons que saíam de sua mente acelerada. Ninguém desconfiou. E ninguém ligaria.

Pegou carona com um amigo bebaço que dirigia zigue-zagueando, quase atropelando um cachorro ao comer o meio-fio e mais à frente quase batendo numa caçamba amarela. Isso num trecho de meros quatro quarteirões. Se fosse cristão ele teria se benzido quando a velha caranga estacionou. Tomou dois copos d’água para matar a forte sede e dormiu no sofá logo após tirar os tênis. Quando amanheceu é que foi para a cama. As notas haviam se perdido. Continuou tocando as mesmas de sempre. Tanto faz, ninguém ligaria. O esforço de um guitar fool é sempre em vão quando se espera reconhecimento. A transpiração é mais importante. Os breves momentos de inspiração compensam. Ainda que não sejam divinos nem difundidos.


Com o tempo ele foi abandonando as camisas pretas. Ninguém notou. Até vestia umas brancas de vez em quando, exceto quando seu humor estava carregado, quem sabe possuído. Isso os outros notavam. Simpatia é o que eles mais demandam. Se uni-la ao carisma, é meio caminho para o sucesso. Até mesmo em círculos sombrios. Disso ele nunca desconfiou.

8 de janeiro de 2014

O Estranho e o Ego


Sinto-me estranho, na verdade só mais estranho por perceber que vivo ficções. O Ego se rompeu e como defesa finge não se abalar. Doravante, vive o momento, prestando mais atenção aos sinais corporais. O que cair do céu ou se erguer da terra, enfrenta. Sorte eu nunca tive; azar, tampouco: esforço-dependência.

Nada parece empolgar por essas bandas, então o melhor é ignorar a indiferença desse mundinho. No fundo (mais ou menos profundo), quem se presta a se alegrar com pequenas conquistas deve se motivar com elas, simplesmente porque lhe dizem respeito – procedimento contínuo em prol da fortaleza, ainda que de fachada. Nova defesa do Ego. Não mais o meu. Portanto, a imaginação alça voos (mais ou menos etéreos) para compensar a aspereza da realidade. Mitos insistem em nascer e renascer. A superstição é tenaz e matreira. Ainda muitos se dizem pé-no-chão; se de fato assim fossem, desconfiariam de si próprios e fatalmente decairiam.

Mas há as mal compreendidas batalhas. Competições servem (mais entre outras coisas menos) para tentar inflar o Ego, sempre à mercê de descobertas, promovendo a colorida vaidade e o lustroso orgulho, devido à superação de obstáculos em relação aos primórdios, algo deveras incomensurável. Difícil não crer em progresso, mas quão útil ele é? Pregamos nossas medalhas na parede branca a fim de martelar diariamente autoelogios e autopromoção. E cutucamos a infâmia e o ridículo dos outros, também para nos sentirmos por cima do vulgo. Sobressaem-se os “ah, oh, buh e rá”.

Sinto-me estranho, isso tudo não me atrai mais. Os louros da vitória não me aproximam de Apolo. Não ergui uma resplandecente reputação. Deveria, pois é um impactante cartão de visitas, tudo bem que mais voltado aos adultos, que, ao contrário dos jovens, não estão esboçando uma. Ao menos não visei imitar ninguém. E de que essa invisível ousadia me serviu?

A autenticidade nunca foi tão desmerecida. Ela rompe com a zona de conforto e com os nichos tão bem amarrados, o que resulta na parvoíce dessa homogeneidade insípida. Em grupinhos as surpresas apenas são bem-vindas se trazem consigo diversão, não se portarem enfados, incômodos e sérias reflexões. “Sai daqui, seu chato” é dito tácita ou explicitamente.

Ah, como a perturbação é útil. De início, é claro, o Ego se refugia em algum canto para esperar a tempestade passar, contudo após um tempinho nota as qualidades dessa simplória má afamada. (Flamejante discórdia?) Sem distúrbios não haveria critérios de comparação. Porém, a tendência de optar pela via mais cômoda deixa a sociedade blasé. “Deixa que eu deixo”. É o reinado do politicamente correto e do pessoal do contra que pentelha só para chamar atenção, não traz muita coisa considerável nem simpaticamente perturbável.

Sintoma estranho, nunca satisfeito. Identidade perdida. Confusão de papéis, mixórdia de interesses, miríade de tentações e excesso de versatilidade. Será mesmo? Ou seria somente conversa mole de quem não se especializa e restou incapaz de produzir algo diferenciado e rentável? Ou seria desilusão? Fim das esperanças por reconhecimento além do pequeno círculo íntimo, sempre disposto a dar apoio, ainda que discorde de tudo, pois o que vale é um pouco de carinho e a boa convivência; o laço deve perdurar. Chamam a isso de amor, dizem que combate a ira e o rancor.


Intimista e circunspeto. O eremita caminha por terrenos acidentados e pouco trilhados, sua fiel sombra e seu rígido cajado o acompanham. Seu amigo quase caiu da corda bamba e por pouco não se estrepou no irregular solo. Quando este desceu, abraçaram-se e rumaram a uma caverna, não para falar de seus honrosos feitos, como faria a maioria de seus conterrâneos, mas para debater sobre o gosto das romãs e das graviolas.  Frugalidades fundamentais – inteireza de espírito? Beberam a água do rio que captaram com a cabaça e, contentes, criticaram-se sinceramente. Não se incomodaram, pelo contrário, brindaram com seus humildes recipientes. Todo estranho sonha com uma terra não estranha, contudo o outro será sempre um mistério, ainda que interrogatórios reduzam o assombro e a estranheza de tamanha complexidade.