11 de janeiro de 2014

Guitar Fool

Trajava camisa preta com estampa de banda, a da manhã era o Metallica. Ajeitou os cabelos bagunçados por dez horas de sono. Não cuidava direito deles, preferia tê-los ensebados a passar creminhos ou tratar no cabeleireiro, evitava este ao máximo. Achava que era coisa de baitola ficar indo ao salão. Era um contra-senso. Então tinha que ouvir diariamente “corta esse cabelo!”. Queria parecer headbanger, mesmo sendo há tempos fora de moda. Quisera ter vivido os anos 80 para, por exemplo, ter viajado para o primeiro Rock in Rio e se deleitar com um vinil de rock de algum amigo, que obviamente iria gravar por cima de algo mais antigo num K-7. Eram sentimentos que ouvira falar dos roqueiros coroas, mas nunca chegara a experimentá-los, pois em época de downloads piratas e You Tube qualquer velharia é facilmente acessada, baixada e ouvida. O único sentimento que podia repassar é aquele dos instrumentos transformados em zeros e uns e que chegam aos ouvidos. Ou a visão de algum clipe com malucos se jogando num mosh pit e com músicos agindo como juvenis.

Foi à geladeira e tomou um energético, era cedo e precisava acordar para tocar sua guitarra. Ficou ligadão, instalou os cabos nos pedais, regulou o equalizador do cubo e afinou uma de suas queridas guitarras. Tinha levado aquela branquinha recentemente ao luthier, que era mais mal encarado que ele, e precisava aproveitar as melhorias enquanto podia. As cordas pareciam mais macias, os dedos fluíam fáceis, só faltava instalar um captador decente para conseguir um timbre profissional. Apenas começou a dedilhar e o celular tocou. De cara, pensou ser o vizinho chato reclamando de novo da “barulheira do rock pauleira”, contudo era só um amigo seu contando alguma façanha galanteadora da noite anterior. Cortou a conversa logo, não queria saber daquela patifaria. Já tinha sua amante curvilínea. Foi à cozinha preparar um suco, afinal ficaria por horas em seu quarto, só com um ventilador batendo, portanto sentiria muita sede. Foi ao banheiro dar um mijão, para tirar um pouco da ansiedade; alongou-se na pia e estalou os dedos deveras calejados por tantos bends e arpejos.

Tirou a camisa, tocou alguns rock clássicos só para aquecer e partiu pro blu-blu. Estava na fase de querer tocar rápido, quanto mais veloz, melhor, pensava mais um tolo metaleiro sem sensibilidade musical. Malmsteen era seu ídolo. Ouvira pouco Blackmore para entender o que o sueco de fato queria transmitir com toda sua virtuose. O cabelo começava a cair na cara, prendeu novamente a juba, dessa vez mais forte, a fim de durar um longo tempo sem perturbar o fritador ruidoso. Capengou em mais alguns solos, por sinal sem ajuda do metrônomo, como convém a todo afobado e autodidata. Um pouco de disciplina e aulas num conservatório dariam a base teórica e musical que faltava a mais um instrumentista esforçado e fracassado nesse país saturado de músicos do tipo “faça você mesmo”.

Acabou a labuta autoimposta lá pelas 13 horas. Fumou metade de um bagulho que tinha guardado numa caixa de Fiat Lux. Queimar a planta queimava os nós que a prática da guitarra ocasionava em sua coluna. Esperou um pouco a onda passar e a fome chegar de vez. Brocadaço, preparou um macarrão com sardinha e um resto mortal de queijo ralado. Repetiu o prato, como convém a toda larica que se preze, e tirou aquela sesta de meio de tarde dos desempregados. Quando acordou, botou alto pra zoar umas bandas novas de thrash metal que trazia em seu pen drive e deu uma lida ligeira nos livros da faculdade.

Estudava mais por dever social do que por sonho profissional. Desde pré-adolescente queria mexer com música, e não com engenharia. Quando ganhou a primeira guitarra de seu pai, seus olhos brilharam.  Mesmo com a evidente falta de qualidade do equipamento e de talento, empolgava-se com o simulacro de roqueiro. Quando descobriu o heavy metal, não conseguiu mais ouvir outra coisa. Chegou até os limites do metal, com aquelas tosquices do black, splatter e gore. Acalmou-se no thrash e nas bandas mais clássicas. Se fosse possível, viveria de música, mas compreendeu que a realidade é outra, que exige uma formação extra para ganhar uma graninha que lhe permita comer e dar uma trepadinha de qualidade de vez em quando. Desistira de sonhar em ser rockstar com seu séquito de groupies chatas, mas no fundo sentia inveja dos posers de L.A. que pareciam moças, porém passavam o rodo geral; possivelmente em uma noitada comiam mais minas que ele comeria a vida inteira.

Agora a camisa preta era do Megadeth. Ignorava a treta do Mustaine com o babaca do Lars. Separava bem o lado pessoal do artístico. Apesar disso, enchia o saco da galera que ouvia hard rock e melódico. “Música de menina, porra nenhuma, escuta um som de macho, caralho”, vociferava aos que julgava posers e cúmplices do pop. Aquela velha picuinha do cenário, que não morre nem que seja para manter em alta o orgulho dos que optam por um dos lados, pensando que não se comunica com o outro, tão decadente e vendido, ou sem futuro. Posições políticas são tomadas mesmo que não se perceba. Arte pela arte é ilusão. Enquanto esperava no ponto o busão, fumou um Marlboro. Hábito adquirido de seus colegas. A garotada prefere arrefecer a ansiedade por ser pobre, largado e fodido do que pensar na agonia de passar anos na fila de espera por um transplante de pulmão. “Dez anos a mil e foda-se o futuro, meu prazer pede passagem, agora seja camarada e me passa o isqueiro”.

Assistiu à aula enquanto rabiscava alguns nomes e mascotes de banda. O professor enchia o quadro com aqueles cálculos e números malditos. Ele compensava toda a irritação no caderno. A sala de aula torna-se um inferno para quem não se esforça para aprender e fica boiando com as explicações do desanimado docente lá na frente. A responsabilidade por uma educação mais cativante e formadora de cidadãos é de todos. No intervalo, conversou umas bobagens sobre vídeos engraçados e assaltos no centro da cidade. Ficou sabendo de uma festinha que ia rolar nas redondezas. Voltou à aula para acompanhar mais um pouco da sonolenta exposição. Quando começou a pescar na cadeira, desistiu de ficar junto com aquela reduzida turma e resolveu se animar um pouco. Haja disciplina para uma quinta à noite.

Chegou ao local combinado para a reunião de estudantes em começo de carreira que sempre aparentam alguém já em fim de carreira, se houvessem mais rugas, calvície e cabelos grisalhos. Não há muita diferença entre ambos. De imediato, poucos desconfiam. Esperam alguma sabedoria dos mais velhos e alguma ingenuidade dos mais novos, porém a realidade não os corrobora. Ainda assim insistem no juízo errôneo. Para não se irritar com a música pop de fundo, o metaleiro bebia rapidamente a cerveja em lata. Queria amortecer o impacto da irritante audição de alguma forma ligeira. É incrível como ninguém fala sobre a composição e a intenção artística desses músicos entre os que se divertem com a pop music. Ele articulava isso para certos roqueirinhos ao redor, que assentiam de volta, sem aprofundar o assunto, afinal não tinham muito conhecimento a repassar. Imitam, é a praxe juvenil.

O pessoal estava deixando as emoções e a libido aflorarem na festança, mais pelo nível etílico da galera do que pela insinuação das garotas do recinto. Mas nosso estudante ainda sentia que faltava algo para se deixar levar. O ambiente estava somente ligeiramente menos enfastioso que as mil contas que seu professor ensinava semanalmente. Um cara magrelo deve ter achado ele com aspecto soturno e sedento por diversão rápida e da pesada e perguntou se ele curtia um pó. Ele respondeu “não curto essa porcaria que ta rolando”, pensando ter ouvido “pop”. O esquelético deu de ombros e saiu oferecendo o produto para outros mal acabados. Enfim o camisa preta entendeu do que se tratava e se retratara como o traficante. “Pô, cara, achei que tu tava falando de música e não de farinha. Quanto é?” Ele pegou uma trouxinha de trinta contos e foi cheirar do banheiro. Ninguém desconfiou.

Sentindo-se amigo da moçada, cumprimentava todo mundo e tagarelava sobre bagatelas. Puxou conversa com estranhos, coisa que nunca fazia, e até deu em cima de uma gatinha, que o rejeitou peremptoriamente. Deu mole para uma baranguinha, que ficou fã do cabeludo. Beijaram-se no muro chapiscado que perdia a pintura. Teve ideias de mil notas por minuto e cogitou escrever a inspiração no papel, mas daria muito trabalho, adiou o intento para quando chegasse em casa. Vislumbrou-se um guitar hero em cima de um chechelento palco num buraco daquele atrasado estado. Imaginou as expressões de assombro diante de tamanha virtuose. Os sons que entravam em seus ouvidos eram barrados pelos inaudíveis sons que saíam de sua mente acelerada. Ninguém desconfiou. E ninguém ligaria.

Pegou carona com um amigo bebaço que dirigia zigue-zagueando, quase atropelando um cachorro ao comer o meio-fio e mais à frente quase batendo numa caçamba amarela. Isso num trecho de meros quatro quarteirões. Se fosse cristão ele teria se benzido quando a velha caranga estacionou. Tomou dois copos d’água para matar a forte sede e dormiu no sofá logo após tirar os tênis. Quando amanheceu é que foi para a cama. As notas haviam se perdido. Continuou tocando as mesmas de sempre. Tanto faz, ninguém ligaria. O esforço de um guitar fool é sempre em vão quando se espera reconhecimento. A transpiração é mais importante. Os breves momentos de inspiração compensam. Ainda que não sejam divinos nem difundidos.


Com o tempo ele foi abandonando as camisas pretas. Ninguém notou. Até vestia umas brancas de vez em quando, exceto quando seu humor estava carregado, quem sabe possuído. Isso os outros notavam. Simpatia é o que eles mais demandam. Se uni-la ao carisma, é meio caminho para o sucesso. Até mesmo em círculos sombrios. Disso ele nunca desconfiou.

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