A
conversa a seguir não é tão incomum, só mais do que deveria:
-
Fala aí pra mim, em que você acredita, afinal?
-
Eu acredito no que existe, ué.
-
Que cínico! Quer dizer que eu acredito no que não existe? Eu acho que existe e
daí? Ham? Ah, e como você vai garantir a existência de algo?
- Calma, eu não quero acabar com suas
crenças, somente acho que são pessoais e não universais. É o seguinte, à
exceção da matéria tudo pode ser coisa da nossa cabeça. Dizem até que o próprio
mundo é imaginação, mas aí é solipsismo, maluquice. Porém, sem
contra-argumentação.
-
Corta essa, o quadro que eu vejo ali na parede pode não estar lá, mesmo você me
confirmando que está? Eu to vendo, bicho!
-
É assim mesmo, porque eu posso ser uma resposta forçada sua.
-
Esse papo é muito Matrix. Aquilo é ficção, mó viagem dos caras. A realidade é
bem concreta. Assim como a presença divina. Você pode ignorar, mas Ele age em
você.
-
Pô, esse filme é sensacional. Preste mais atenção na história, nas cenas, nos
diálogos, esqueça um pouco das lutas e do tiroteio. Leia as teorias pela
internet. Há muita coisa escondida. Muitas referências para cinéfilos e muita
filosofia para curiosos, além, é claro, de espiritualidade.
-
É, não entendi direito a parada. O maluco fica voando para lá e para cá, leva
mais porrada que o Rocky e não morre, para bala com a mão, tudo porque é o
escolhido. Aquilo eu sei que não existe. Você vem me dizer que Matrix é mais
crível que onde estamos?
-
Não é bem assim, né. Eu sei que é ficção e uma obra complexa realizada após
muita leitura e inspiração. Só digo que não é essa viagem toda não, quem for
atento retirará lições.
-
Tá, um dia vou rever essa merda. Agora, me explica essa história de tudo ser
coisa da nossa imaginação. Você pode não sentir, mas eu sinto a presença do
Senhor. Ele existe, sim!
-
Isso é fé. Todo esse sentimento além de ser difícil de explicar é impossível de
convencer a quem não tem esse acesso. E não dá para ter acesso a algo do mundo
fora dos cinco sentidos. O tal sexto sentido é coisa de Cavaleiros do Zodíaco,
muita adrenalina, porém infantil. Eu posso dizer qualquer coisa e você pode
acreditar ou não em mim, vai depender mais do meu poder de convencimento. É
assim que nasceram as lendas, os mitos, os dogmas, mais pelo palavrório que por
evidências. O pior é que eles continuam sendo fabricados, devido ao excesso de
gente sem pensamento crítico e cético. O adulto não pode continuar vendo o
mundo como criança, um moderno não pode insistir em ver o mundo como um
medievo. Conteste, destrinche, rebata, seja implacável... e humilde. Não é
porque a embalagem é bonita que o produto é bom, muito menos que é durável. A
aceitação geral de bobagens é culpa do sistema educacional que mais manipula e
hipnotiza do que emancipa.
-
Rá! Eu já não tô acreditando em você. Eu consigo duvidar. Tenho minhas
convicções e não é só porque meu pai me ensinou, eu li e vi com meus próprios
olhos. Fala sério, temos evidências, registros, relatos idôneos. Olha o mundo,
como poderia ter surgido do nada? É claro que alguém o criou. Não sou tão bobo,
achando que Deus teve a intenção de fabricar item por item, mas o básico ele
fez, depois as coisas se misturaram e deu no que está aí. Como ele é eterno,
ninguém o fez, Ele simplesmente é. E Ele retribui quem lhe segue, por isso que
eu to bem de vida e você veste esses farrapos.
-
Menos mal você crer na mudança, no fluxo, na transformação de estados. A
química você aceita. Mas é ruim esse preconceito contra os descrentes. Assim
como tem pobre herege, tem pobre fiel, assim como tem rico devoto, tem rico
ateu. Enfim, a física explica quase tudo, e nunca estará completa. É assim que
se funda o conhecimento, e não me venha com essa de que a verdade é exclusiva
do grande criador. A física é uma ciência recente, muito mais que quase todas
as religiões. Ainda não deu tempo para o povo ser exclusivamente fisicista, mas
já tem muita gente que é. Veja, o Big Bang é um fato incontestável como a
evolução das espécies e a lei da gravidade. Descobriram o DNA e ouviram uma tal
de CMBR. Após o mega estouro, as partículas se combinaram, teve uma inflação
cósmica após cerca de meia milhão de anos e bum, o Universo se expandiu e
formou as galáxias, a vida e tal. O som veio desse começo formidável. Mas aí
você vai me perguntar “e antes dessa explosão, o que havia?” Isso é um
problema, difícil de solucionar, há várias teorias, do eterno retorno, por
exemplo, que o universo inexoravelmente vai e volta. Porém, eu creio que havia
uma particulazinha ínfima eterna, estava lá, totalmente estável. Lembre-se, não
havia tempo nem espaço, era só ela. Por algum motivo, que não é difícil
conceber, ela decaiu ou perdeu seu equilíbrio e, pronto, o mundo surgiu. Ouça,
é preciso estudar, mas as pessoas preferem a interpretação mais usual e banal,
como fazem as crianças. Satisfazem-se até acabarem as perguntas espinhosas.
-
Espera aí um pouquinho, os físicos não sabem de tudo, eles mesmos vivem em
polêmica. Um supera o outro, que já não serve mais. Einstein destruiu Newton
que eu sei. A gente estuda esse cara só para aprender a fazer continhas. Os
físicos fodões nem ligam mais pra ele, lá do começo do século dezoito. Em cem,
duzentos anos está ultrapassado. Aí você vê, essas ideias científicas vêm e
vão, mas as religiosas sobrevivem por muito mais tempo. Isso prova qual é a
mais forte. Não é porque há disputas teológicas que Deus é menor, Ele é um só,
e grande. Jesus, Buda, Maomé e vários outros profetas o pessoal louva até hoje.
Ou vai negar que eles existiram e mudaram a história? E vai continuar assim
enquanto o homem existir. Assim como os milagres.
-
Milagre não existe, é má compreensão dos fatos e matemática ruim. Mas concordo
que sempre haverá cultos a personalidades e a deuses, só que isso não ocorre
por motivos racionais. É por interesse pessoal e social, bem como por força do
hábito e por medo, dos tabus, dos pais, do juízo final, do estranho, etc. Por
outro lado, a ciência não está interessada em questões existenciais, místicas,
subjetivas, ela quer resultado prático. E lida com fatos, experiências,
cálculos. Somente a ciência pura, objetiva e estritamente lógica é ciência de
verdade (hard). As ciências humanas (soft) são tentativas de compreender como o
homem pensa e a sociedade opera, no máximo fornecem tratados e conselhos; não
podem assegurar definitivamente se é melhor viver no mato ou na metrópole,
dentro da igreja ou num laboratório, é muito relativo para tamanha pretensão.
Entende que há graus de objetividade? O discurso teológico está no degrau mais
baixo, por isso demanda menor esforço intelectual, depois vêm as explicações
racionais, mas não metódicas o suficiente para serem científicas. Estas são
indispensáveis porque nem tudo a ciência vai responder, existem questões
inverificáveis, nem por isso questões tolas, como “qual é o sentido da vida?”
ou “para quê formar uma família?” ou ainda “sorrir é melhor que chorar?”,
“qualquer prazer é preferível a qualquer dor?”, e por aí vai. Por fim
encontra-se a ciência positiva, que eu já expliquei por cima em que consiste.
Ela é interessante porque, apesar de ser feita pelo homem, esse é um fato
casual, ela não precisa ser exercida por nós, mas por qualquer ser dotado de
lógica operacional. Quando surgirem máquinas inteligentes, talvez elas ocupem
nosso lugar ou então dividam o espaço acadêmico conosco. Logo, a ciência é
feita por e para entes lógicos. É por isso que enviamos mensagens pro espaço em
busca de ETs dotados desse padrão de pensamento. Quem sabe eles existam e
cooperem em prol de uma ciência cada vez mais avançada.
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Porra, tu fala demais! Quem é que aguenta um chato como tu? Aliás, não concordo
com essas divisões... Ah, você ta ficando louco. Já ta falando em ET, daqui a
pouco vai dizer que foi abduzido e recebeu ordens para alertar o povo que eles
estão chegando: “a verdade está lá fora”. Pff, papo furado. É mais fácil crer
em extraterrestre que em Deus? Está ficando difícil conversar contigo, hein.
Tudo isso pertence ao Senhor, se ele quiser, saberemos, senão ficaremos
contentes com o que temos. A religião abarca tudo isso, explicações racionais,
científicas e, sobretudo, a fé. Cara, sem fé não dá para viver, não sei como
você consegue. Quando eu fico mal, pensando em matar alguém ou desistir de
tudo, busco apoio na fé e tiro de lá forças que eu nem sabia que tinha,
enquanto você ta sempre com essa cara abatida e branca. Já sei, você é um
vampiro, por isso não pode ver uma cruz que dá no pé! É pra eu proteger meu
pescoço?
-
Hunf, seu piadista. De fato, a fé dá esperança. A ciência é niilista, tende a
acabar com a graça das coisas; corta pela raiz a fantasia, a brincadeira, o
barato de acreditar em superpoderes e no sobrenatural. Justamente porque há
coisas impossíveis é que elas não existem, isso é fruto da nossa idéia errada
dos eventos externos. Assim como dois com dois não pode ser diferente de
quatro, tudo que não provenha da matéria não pode existir. E Deus não pode ser
exclusivamente matéria, se fosse teria que ter outro nome. Não seria poderoso
nem diferente de mim, você, aquela planta ou este prato. Os átomos e as partículas
subatômicas são a estrutura do cosmos. Como eu disse, antes de existir toda uma
física para explicar como as coisas funcionam havia mitos e lendas, das mais
diversas. Muita gente caía na onda, até porque nem sabia como contestar. Ainda
ser assim é pegar o atestado de ignorante incorrigível e erguê-lo com um
orgulho de panaca. Basta uma ida à biblioteca ou uma busca na net para
verificar que o universo é bem explicadinho, quase tudo se encaixa, exceto
alguns detalhes e a teoria do mundo macro com a do micro. Não vou adentrar
nesse ponto porque é muito técnico, basta eu dizer que eles operam de forma
diferente, contudo não a ponto de escapar do materialismo. Isso tudo pode ser
crença minha, afinal, pode haver algo além da matéria, que um dia (ou não) venha
a ser descoberto, mas não é fé. Crença envolve conjunto de argumentos
racionais, que as evidências e as teorias endossam, enquanto a fé é acreditar
sem ter de passar pelo crivo da razão. Não consigo ser assim. É por isso que
religião (que é baseada na fé) e ciência (que é baseada na razão e na empiria)
não dialogam. As tentativas de uni-las
ou são forçadas ou servem para aplacar a curiosidade dos fiéis em tempos
deveras racionais.
-
Você mesmo admitiu que esse monte de teoria rebuscada pode estar errado, que no
fim de tudo podem ter sido esforços em vão. Se tudo não passa de crença porque
não crer no que é mais confortável e aceito socialmente? Tenho certeza que
sofro menos que você e gasto menos tempo com leituras e pensamentos
extenuantes. Relaxa e goza, tio.
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As implicações práticas de uma sociedade ignorante é dar cartão verde aos mais
espertos usurparem dos incautos crédulos. E se apenas uma elite for detentora
do saber, ou pelo menos dos meios que expões os saberes, estaremos à mercê de
suas vontades. E pode crer, a corrupção é muito sedutora quando a impunidade é
quase uma certeza. Não dá para se relaxar uma vez libertado da ignorância. Esta
pode ser uma bênção, mas é por pouco tempo, em breve algum sacana irá acabar
com sua festa e você não terá armas para se defender. Difundir ciência e
aliá-la à ética evitaria a imensa maioria dos males cuja culpa é do homem,
seria o mais perto de paraíso que poderíamos chegar. Todavia vivemos bem o
contrário, e quando quase todo o povo é tapado o perigo é iminente, o
coronelismo se baseava nisso, e o populismo usa da mesma tática. Se não
educarmos direito a galera essa história perversa vai se repetir
indefinidamente, até um Nero trombar com um Stálin e um jogar bomba de
hidrogênio no outro com a humanidade no meio, sendo ela praticamente extinta,
se porventura algum grupo vier a sobreviver após o inverno nuclear.
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Ih, começou a paranoia, a Teoria da Conspiração, o fim do mundo.
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Não é. De novo recorro a Matrix, a pílula azul é não querer retirar a máscara e
manter-se no mundinho do videogame, sofrendo lavagem cerebral sem nem se dar
conta que não se vive, pois apenas se pluga à Central. A pílula vermelha é
aceitar os riscos da descrença no conto de fadas e sofrer com as dores da carne
sendo dilacerada e comida por bactérias diariamente, porém é estar livre dos
opressores. Entre a feliz segurança idiota e a carrancuda liberdade miserável
opto por saber das coisas e encará-las. A verdade é ingrata, uma megera, faz
seu séquito mendigar na esquina e raramente honra as vitórias com uma medalha.
Mas quem disse que o amante dela é egoísta? Prefere conceder ao maior número de
pessoas os benefícios de saber quem é ela, demandando apenas iniciativa e
esforço intelectual por parte delas. Enquanto isso o rebanho sorri e espera, a
cada comando dá um giro de cabeça e uma ruminada. Sobreviver é moleza, viver é
perigoso.
-
Bah, depois dessa eu vou dormir, não sem antes orar a Deus para zelar por sua
alma pecadora e melancólica e para abençoar a minha ainda mais, de seu servo
compreensivo e misericordioso.
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Pois é, não me acompanham os deuses, só os heróis.
É
o fim do papo, mas não do tema.
P.S.: Aos leigos, mas curiosos, indico lerem Carl
Sagan.
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