26 de dezembro de 2011

Liberdade... pt 4

IV

Liberdade de opinião, de expressão, de contestação, de voto, de veto, de associação e de gosto. Essas garantias institucionais fazem um país democrático e livre. O Estado deve assegurá-las, ainda que certos grupos tramem para impedi-las. Os censores sempre existirão, eles não suportam a idéia de contrariedade. A presunção de certeza absoluta impede discussões, como se uma opinião não fosse apenas mais do que isto, uma doxa, carregada de preconceitos e limites técnicos e teóricos, o que apenas atesta a falibilidade de qualquer um que se aventure em algum assunto dinâmico. A Verdade não existe. Porém, os semideuses, os Ph.D(euses), os arautos do conhecimento sem modéstia e os ignorantes sobranceiros inviabilizam quaisquer debates entre livres e iguais. A historicidade comprova o relativismo dos valores. Tudo pode ser dito, mesmo a burrice, mas é a boa argumentação que persuade solida e legitimamente uma ética longeva, ainda que em constante mutação.

Sobre si mesmo há independência, e sobre os outros há interdependência, é no limite do direito que os crimes devem ser prevenidos e o respeito assegurado. A autoproteção deveria ser o único propósito para o poder intervir, a fim de evitar danos sociais. As pessoas podem se regular pelas leis ou normas, pela moral, pelos princípios e bons costumes, pelo medo, pela vergonha e pelo anseio de ser agradável e manter a boa reputação. Mas para a maioria basta a religião, com a punição ou premiação divina, e a legislação, com o horror de ser enjaulado. As normas de condutas devem ser formuladas tendo por bases questões técnicas e analíticas, mas principalmente as políticas e práticas, para que humilde e consensualmente as leis se consolidem e façam os cidadãos cumprirem-nas conscientemente de que estão realizando o maior bem possível, e evitando que condutas perigosas sejam difundidas.

Exigências de responsabilidade, controles institucionais e agências reguladoras surgiram para limitar a atuação unilateral do Estado, esse Leviathan que assombra os “civilizados”. Mas a concessão à vontade popular também deve ser restrita, ainda que ninguém goste de admitir ser um monstrinho ganancioso; cada um de nós carrega em si uma besta ou um dragão, e tenta escondê-los atrás das cortinas da moral. Porém o mais intriguista bicho-papão é o fofoqueiro. A interferência da opinião coletiva sobre a individualidade, com suas preferências que não devem satisfação, muitas vezes tomba reprimida, para alegria das comadres recalcadas. A mídia e a idolatria servem de vigilância a desvios. A mesma mão dá e toma, afaga e apedreja. É isto, um lado exigirá deveres e o outro lutará por direitos e mais privilégios. Disciplinar pode ser a saída, desde que não se exceda, a ponto de degenerar em adestramento e covardia.

Para alguns, ser coagido a praticar algum bem é pior do que deixá-los à própria vontade. Saber se regular e ajudar aos outros quando solicitado, ou voluntariamente, é um certificado tácito de que esse cidadão merece a liberdade a que foi destinado. É provável que uma sociedade populosa jamais abdique de registrar leis e contratos, mais por receio do homem lobo do homem do que pela capacidade inerente de se autogovernar. Pode ser um lirismo o homem voltar a conviver sine Rex, sine Lex, sine Dei, ou seja, uma utopia anárquica, mas quem sabe chegaremos a esse patamar civilizatório de dispensar imposições e seremos felizes e cordiais. Enquanto isso, teorias e práticas tentam melhorar a ética e a política dos povos no mundo inteiro.

Autogoverno não significa cada um por si, ou “o que é meu, é meu, e o que é seu, é nosso”, mas isto: cada um por todo o resto. Num primeiro momento posso cuidar apenas de mim mesmo, porém superada essa fase de sobrevivência, é natural que eu zele pelo bem-estar de pessoas próximas, e posteriormente de todos os seres que fazem parte do ambiente. Esse utiliritarismo parte do pressuposto de que eu sou diferente dos demais, contudo possuo uma essência que me une à natureza, que é estar vivo e buscando um equilíbrio de forças. Com a consciência dessa alteridade, todo ato meu será pensado e concluído após considerações sobre o impacto dele no meio, o que não é pouca coisa, visto que restringe a minha liberdade, em troca de um ganho maior. Então, como suportar e convir com a observação de um mal, ou atitude antiética, ou o melhor seria protestar logo e pressionar o “agressor” pela conduta ética? Questões éticas nunca são tenras, ou alguém discorda? É árduo o trânsito entre o silêncio e a cobrança sem ser intruso (moralista), contudo é possível.

Idealmente, liberdade e felicidade devem conviver em níveis e padrões idênticos, e altos, para haver sentido, tanto no âmbito individual quanto no coletivo, sendo não apenas discurso vago. A realização pessoal e a auto-estima, que por alguns é definida como plenitude, são buscas pessoais, afinal os valores e a experiência adquiridos e defendidos são inalienáveis, ainda que a reciprocidade disso e do próprio indivíduo com o restante da comunidade e do contexto histórico seja marcante. É claro que a sociedade e o Estado pressionam seus membros a pensarem e agirem conforme planos e padrões, e a recíproca é verdadeira, no entanto quase sempre o elo mais fraco pende para o lado do indivíduo isolado, ou então somos condicionados a pensar dessa maneira, um erro, tornando-nos desistentes dos sonhos juvenis de mudar o mundo para melhor. Quantos males seriam evitados se, pensando e agindo com bem senso, reivindicássemos pela efetivação de nossos desejos e direitos.

Posto isso, quem deve tomar a iniciativa: cada cidadão ou os governantes? A superestrutura, tal como foi defendido por Platão, Marx e Durkheim, deve planejar os valores norteadores, fazendo com que os indivíduos pautem sua vida a partir das ordens de cima, esmagadoras e indiscutíveis; ou a infra-estrutura, recomendada por Aristóteles, Weber e Mauss, deve ser a base que, gradualmente, tornará uma nação mais complexa, sendo que os valores serão adquiridos e professados por cada estrato ou nicho social. Penso que no segundo caso a liberdade se faz mais presente; cada pessoa, ainda que sem uma autonomia total, poderá se associar, ou não, a grupos que combinem mais com seu estilo de vida, e podendo adentrar e sair quando bem quiser. Para muita gente esse alvará de atuação é um incômodo que enfraquece a sociedade e cria egoístas sem um pingo de solidariedade, o que é uma falácia, pois na grande maioria dos casos é a partir do associativismo que as pessoas se desenvolvem e realizam. O axioma de que é impossível ser feliz sozinho pode ser discutível, mas quando a felicidade não é compartilhada grande parte de seu valor é perdido.

Somos fruto do meio, a cultura nos condiciona, se não seremos eremitas. Entretanto, os afetos, advindos do inconsciente, é que nos movem e norteiam os interesses. O problema é quando essas paixões dominam a pessoa, tornando-se uma moral fanática. A intolerância sempre ronda um dogma teológico, como se um deus se importasse com o número de adeptos. Esses juízes convictos da verdade que professam pensam que suas crenças são indispensáveis à sociedade como um todo, ou ao menos à seita da qual participam, sendo assim, esta moral, tão humana e forjada a partir de fraquezas, se julga superior para que seus defensores se sintam importantes e merecedores de honrarias. A liberdade comumente é misturada com o poder de influência, e então se torna tirania; quem se acha senhor se sente no direito de subjugar os escravos, os não-livres, e pensa que ser livre é só para os fortes, portanto um bem para si e um mal para os outros, que podem derrubar seu poder. Todavia, penso que essa ação política se dá entre os ressentidos, aqueles que precisam pisar sobre os outros para se elevar ou puxar o tapete para se nivelarem. A liberdade é ubíqua, saber dosá-la é a sabedoria para o bem-estar.

Na sociedade moderna a razão passou a predominar sobre os outros aspectos subjetivos do sujeito. Isso quer dizer que devemos analisar os fatos, para que, uma vez cientes das causas e efeitos, agíssemos em busca do melhor resultado. Isso vai de encontro com a necessidade universal de possuir poder e controle sobre as coisas. Ora, mas não somos máquinas, o inconsciente, os afetos, as emoções, as reações e os pensamentos ilógicos ainda balizam nossos atos, em sua maioria. O medo é um grande freio, que pode ser visto como falta de controle sobre a situação, ou seja, sentir-se inferiorizado em relação ao objeto causador do temor. De posse dessa emoção, na maior parte das vezes infundada, aceita-se a restrição da liberdade, para que seja preservado um bem maior, seja a própria vida, a dos parentes, a dos amigos, sejam bens materiais ou seja o trauma de ser ameaçado por um animal ou por um .38.

Será que vale a pena trocar a aventura de viver em liberdade pela comodidade da segurança e da redoma do lar? Bem, isso faz movimentar a economia, a cultura do medo é estimulada para que o dinheiro circule entre os vários setores e estratos da sociedade. É preciso inventar nichos de mercado para haver emprego para todos, ainda que o custo seja a desconfiança. Uma vida humana hoje é muito mais valorizada do que há alguns séculos, ou mesmo décadas, atrás. Isso nos deu mais conforto e qualidade de vida, no entanto retirou nossa coragem e ousadia em enfrentar os acasos e perigos da natureza. Inclusive sendo desestimulado e estigmatizado o comportamento de risco, como o dos jovens aventureiros e inconseqüentes que se vê no noticiário. Dizem que entre uma atitude corajosa e heroica e uma tola e suicida há pouca diferença, mas esse pensar é de quem não sabe o que quer e não sente a mesma coisa que o outro, o bravo. Enquanto que para uns a vida deve ser vivida “a mil”, com todas as benesses que a liberdade proporciona, para outros o correto é ser comedido e esperar serenamente pela recompensa que um dia virá, ainda que não haja mais tanta energia para desfrutá-la. A razão pode ser hostil à liberdade, mas os impulsos podem ser hostis à vida. Como sempre, um equilíbrio aristotélico pode garantir sabedoria e felicidade.

(...et c'est fini)

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