6 de julho de 2014

O crime só compensa se você for [totalmente] psicopata





Neste post interpretarei o conteúdo de Breaking Bad, sem me prender a detalhes, apenas expondo a mensagem que eu captei da série. Eu sei que Walter White já morreu faz tempo, eu sei que muito foi dito nesses 9 meses de término da aclamada série, eu sei que estou sendo mais uma vez retardatário e eu sei que isto aqui não é um blog de análise de seriados. Ainda assim insisto em escrever, porque achei muito interessante o enredo e a descrição realista, ainda que ficcional, do “traficante pai de família” pelos roteiristas, fazendo jus ao sucesso de público e de crítica. Eu não li nada em lugar algum, talvez eu apenas repita o que há por aí, mas para manter a fidelidade e a crueza das minhas impressões, escrevo como se fosse novidade, como se a série tivesse acabado há apenas um dia, o que no meu caso é verdade.

Quero focar na relação ‘sociedade civilizada e pacata’ versus ‘bandidagem marginal’. Acho que isso ficou bem claro em todos os episódios e personagens principais (Walter, Jesse, Hank e Skyler), sempre aparecia um retrato do americano médio ao mesmo tempo envolvido, intencionalmente ou não, com a criminalidade. Adianto que meu personagem preferido era o Gus, mas só entrarei em detalhes sobre ele mais à frente. O sr. White era um cara legal, um professor respeitado por colegas e adorado por alunos. Todos ficaram com pena por seu câncer e até doaram uma grana para o tratamento. Foi então que sua veia psicopata aflorou, situação inesperada que não levantou suspeita em ninguém, afinal quem desconfiaria dum cara de meia-idade quase senil que suportou sua vida burocrática sem ambições nem reclamações? É assim mesmo, psicopatas estão a nosso redor e passam despercebidos como se fossem gente boa, apesar de ligeiramente excêntrica. A ocasião faz o ladrão e o desespero libera a fera. Freud insistia em nos alertar sobre nossa natureza ora amorosa ora destrutiva. Ninguém é santo, pois o princípio de prazer nos domina, azar de quem pensa que pode reprimir seus interesses sem sofrer danos colaterais.

“O poder corrompe”, como esse jargão é mal usado pelo senso comum! O poder só corrompe quem o deseja, quem na verdade está corrompido a priori, esperando pela oportunidade em que será derrubada a máscara, fazendo-o sorrir com as benesses e a vanglória, prontamente disponibilizadas. Quer dizer então que todo ambicioso é antissocial e possui um caráter duvidoso? É o que eu afirmo. Amarras éticas jamais prenderão desejos exacerbados, fortes o suficiente para atropelar avisos e conselhos da maioria acomodada e moralista. Eu não acho que apenas existam presas e predadores, acredito nos avulsos, que podem até ser presas, mas que preferem se manter distantes do jogo de rato e rato da cadeia alimentar. A sociedade é uma 2ª natureza, um mundo inventado justamente para coibir essa selvageria que tanto sofrimento trouxe aos mais fracos e tanto prazer trouxe aos mais espertos. Portanto, é possível se manter alheio a esse maniqueísmo (senhor ou escravo), ainda que não de forma completa, a essa violência (quase sempre velada). Se de alguma forma eu faço parte da nata, eu tenho condições de sair dela, não que isso seja fácil; Walter teve várias chances de dar o fora, mas só o fez de forma momentânea e com muita angústia, devido à sua condição sociopata. Por outro lado, Jesse conseguiu abdicar desse trono. Ele não se deixava intimidar e nem intimidava.

Jesse é uma figura-chave na trama. Poucos entenderam sua fundamental participação na estória, achando-o dispensável e incompreensivelmente protegido por Walter. Jesse era o elo de ligação – desculpem, mas eu gosto dessa redundância – entre a pacata civilização e a perversa bandidagem. Talvez seu sobrenome pudesse ser Grey ou Gray e não Pinkman, pois ele representava essa zona cinzenta entre o bem e o mal, entre o que se deve fazer e o que se quer fazer. Seus pais não o compreenderam, mas Walter sim. Jesse o segurava para não sair passando o rolo compressor por cima de quem aparecesse na frente. Porém, aos poucos os freios se desgastaram e a “maldade” de Walter restou incontrolável. Jesse não suportou e se manteve distante, tentou sair do negócio, mas o sr. Perigo não o deixava sair. O garoto precisava do aval do mestre, que queria ser o papai protetor. Contudo, o filho rebelde não era um pau mandado, ele tinha consciência moral fortalecida, apesar de sua aparência não transmitir isso. Ele era o oposto, o espelho desfocado da figura de Walter, tornado Heisenberg, o cientista nazista inescrupuloso. Eles chegaram a se odiar no fim da série, mas não foram capazes de se matar, havia muita consideração e algum tipo de corrente inquebrável entre eles. 

Foi interessante a moral da história de que o “mocinho” tenha se safado e o “vilão” tenha morrido. Jesse sofreu muito, tanto fisicamente, levando porrada a cada dois episódios, quanto psicologicamente, via drogas, mortes, torturas e culpas. Talvez os escritores tenham nos passado a mensagem de que se você fizer cagada a vida inteira, mas sem querer provocar necessariamente o mal para alguém, fazendo as coisas mais por prazer e inconsequência do que por sacanagem e crueldade, você terá algum tipo de redenção. Ninguém sabe se Pinkman foi pra cadeia, se ficou com uma bolada, se voltou às drogas, se se matou ou se mudou de identidade, mas ficou implícita a ideia de alívio e de arrependimento. Todos erram, ele errou bastante, mas nem por isso não merecia uma vida confortável, pois não era de todo corrupto. Ele poderia ter ganhado muito mais dinheiro, mas por não ser meticuloso nem frio contentou-se com o que caiu em seu colo. Não existe bem ou mal de forma absoluta, existem escolhas, e as opções costumam ser entre o que é tolerável e o que não se pode tolerar. Pinkman representa a maioria das pessoas, que tenta se divertir quando a situação parece razoável, e se ela ficar insustentável, pula fora para não se mostrar nem se julgar conivente com a vileza sem limites. Você não se identificou com Jesse? Pode até ser, porém é provável que após uma autoanálise mais acurada acabará concordando comigo.

Falemos agora de Gus Fringe. Esse era “O Cara”, o grandessíssimo feladaputa que ninguém desconfiava. Por décadas a fio manteve-se firme com um plano perfeito, de ações constantes e bem calculadas. Contudo, ele cometeu dois erros cruciais. Um psicopata modelo não pode se dar ao luxo desses erros, que até são compreensíveis, pois ninguém é perfeito; todos em algum momento se deixam levar pela emoção e fazem concessões a fim de não parecerem tão injustos e terem um pouco de alegria em suas miseráveis vidas. Seus erros foram: ter se associado a Walter White e ter guardado rancor por tanto tempo de Salamanca pela morte de seu parceiro/bofe. Quando Walter começou a fazer cagadas e trairagens, ele até tentou apagar o químico, mas este foi mais esperto e passou a perna no negão. Nem por isso ele deveria ter desistido do plano, todavia, como a série se concentrava na história do sr. White, Gus deixou quieto e tentou administrar a situação, pagando caro por isso no final, pois dois bicudos não se beijam. Sobre o 2º erro, este foi mais estapafúrdio: não precisava humilhar o velhinho Hector, já caquético e no ostracismo. Sua raiva se transformou num rancor maior que ele mesmo e dominou seu ser, voltando contra ele, literalmente, na cena final da 4ª temporada. Para Gus o crime até compensou, por anos se manteve o chefão misterioso e impecável, até o dia em que seu reino veio abaixo, por causa de dois errinhos bobos, inadmissíveis a um sociopata que tinha apenas um desejo: ser o maior traficante da América, de preferência no anonimato. Aparentemente Walter vencera essa disputa, matando Fringe, porém ainda penso que ele foi o moleque ressentido que não suporta ver o colega se dando bem na festinha e puxa as calças do mesmo, ridicularizando-o para a escola toda. Walter não venceu, ele se perdeu, apenas não podia admitir isso.

Nessa altura não havia mais volta, sua família, mais cedo ou mais tarde (e na série isso foi imediatamente) iria pagar o preço, fosse via prisão ou fosse via fofocas. Não tem essa de “tudo que eu fiz foi por minha família”, como o próprio Walter revelou a sua mulher na última conversa deles, são desculpas que consolam (má-fé); todas essas ações canalhas foram por mais uma dose de satisfação. O natural instinto de se dar bem custe o que custar nos persegue, está em nosso DNA, e é por isso que foi forjado o contrato social, para que seja suportável viver em sociedade e que seja possível um pouco de felicidade para um grande número de pessoas. Contudo, psicopatas não se satisfazem com tão pouco, eles precisam se sobressair e se sentir acima dos demais mortais otários. É isso que os move, se diferenciar, querendo que o pobre se exploda. A bandidagem convicta e contumaz está se lixando se seus amigos e familiares apoiam sua conduta desviada; Walter jamais perguntou a Skyler ou a Flynn se eles queriam mais dinheiro e poder. Ele achava que eles gostariam, afinal é o sonho americano, mas ao contrário dele, todos ali se sentiam bem naquela vidinha ordinária no subúrbio do Novo México. Para alguns vale o “se melhorar estraga”, portanto foi sem propósito (além de um prazer perverso) que Walter fez tudo que fez, ou seja, não houve um “bom” legado.

Para fechar, concluo que não havia como Walter ser criminoso e se dar bem, a menos que ele virasse Heisenberg. Gus fez isso, trocou de identidade e vestiu inteiramente a carapuça de chefão do tráfico, o Pablo Escobar americano. Walter queria entregar suas conquistas a seus descendentes, mas não conseguiu. A polícia não fica perseguindo o cidadão comum para saber se ele é bandido, ela foca as investigações nos suspeitos de sempre, daí porque Gus e Walter lucravam com a venda de drogas, tinha liberdade para tanto. Porém, como eles não podiam esbanjar, o dinheiro ficava parado. Eles deviam se perguntar: por que diabos estou fazendo isso? Então inventavam subterfúgios para prosseguir no crime. Não há sentido se você não pode ser psicopata ou um mafioso exemplar, de nada adiantará todo seu esforço, isto é, o crime não compensará pra você. Por outro lado, se você de fato está se lixando para o que (todos) os outros pensam, fazem, comem ou sofrem, aí sim você tem chance de ser um bandido de sucesso infindo. Como isso é raro, onde há lei, justiça eficiente e polícia equipada, é mais vantajoso ceder às tentações da agressividade e se contentar com a vidinha pacata e reclamona. Na terra de ninguém, valerá mais a pena ser pirata, furando o olho de todo e qualquer concorrente. É fácil ver onde vale mais a pena viver, investir e incentivar. É suado, mas de pequenas vitórias é feita a vida civilizada, então zelemos por ela.

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